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Viagens na minha terra
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E-book322 páginas4 horas

Viagens na minha terra

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Sobre este e-book

Obra-prima do romantismo de Portugal, Viagens na minha terra foi publicada inicialmente na Revista Universal Lisbonense, em 1845. A inovadora narrativa de Almeida Garrett, composta por diversos gêneros, mistura um enredo novelesco a relatos da viagem de Lisboa a Santarém que o autor realizou em 1843. O enredo retrata a atmosfera cultural, social e, sobretudo, política que o país vivia na época, dependente da Inglaterra, e interage com a história de Frei Dinis, Carlos e sua prima Joaninha. O amor entre os dois primos parece inabalável, mas reviravoltas externas e um segredo são capazes de comprometer a estabilidade da relação. Além disso, os personagens da obra assumem simbologias políticas: Frei Dinis, como o Portugal obsoleto e absolutista, e Carlos, como o liberal incentivador da renovação.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento6 de out. de 2016
ISBN9788577994236
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    Viagens na minha terra - Almeida Garrett

    EDIÇÕES BESTBOLSO

    Viagens na minha terra

    O escritor e dramaturgo português Almeida Garrett (1799-1854), pseudônimo de João Baptista da Silva Leitão, foi um dos principais incentivadores do teatro em Portugal e figura de destaque na introdução do Romantismo naquele país. O traço marcante de suas obras é o enfoque na história nacional e a naturalidade dos diálogos numa época em que os enredos privilegiavam a Antiguidade Clássica. O autor também deixou sua marca na poesia com as coletâneas Flores sem fruto e Folhas caídas. Viagens na minha terra é considerada uma obra-prima por mesclar a digressão autobiográfica de uma viagem que Garrett realizou de Lisboa a Santarém, em 1843, com a história envolvendo os personagens Carlos, Frei Dinis e Joaninha.

    1ª edição

    RIO DE JANEIRO - 2012

    CIP-BRASI. CATALOGAÇÃO NA FONTE

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    G224v

    Garret, Almeida, 1799-1854

    Viagens na minha terra [recurso eletrônico] / Almeida Garret. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Best Bolso, 2016.

    recurso digital

    Formato: epub

    Requisitos do sistema: adobe digital editions

    Modo de acesso: world wide web

    ISBN 978-85-7799-423-6 (recurso eletrônico)

    1. Ficção portuguesa. 2. Livros eletrônicos. I. Título.

    16-36491

    CDD: 869.3

    CDU: 821.134.3-3

    Viagens na minha terra, de autoria de Almeida Garrett.

    Título número 319 das Edições BestBolso.

    Primeira edição impressa em agosto de 2012.

    Texto revisado conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

    Título original português:

    VIAGENS NA MINHA TERRA

    www.edicoesbestbolso.com.br

    Design de capa: Sérgio Campante sobre imagem de Buena Vista Images (Getty Images).

    Todos os direitos desta edição reservados a Edições BestBolso um selo da Editora Best Seller Ltda.

    Rua Argentina 171 – 20921-380 – Rio de Janeiro, RJ – Tel.: 2585-2000

    Produzido no Brasil

    ISBN 978-85-7799-423-6

    Sumário

    Prólogo

    Citação

    Volume I

    Capítulo 1

    Capítulo 2

    Capítulo 3

    Capítulo 4

    Capítulo 5

    Capítulo 6

    Capítulo 7

    Capítulo 8

    Capítulo 9

    Capítulo 10

    Capítulo 11

    Capítulo 12

    Capítulo 13

    Capítulo 14

    Capítulo 15

    Capítulo 16

    Capítulo 17

    Capítulo 18

    Capítulo 19

    Capítulo 20

    Capítulo 21

    Capítulo 22

    Capítulo 23

    Capítulo 24

    Capítulo 25

    Volume II

    Capítulo 26

    Capítulo 27

    Capítulo 28

    Capítulo 29

    Capítulo 30

    Capítulo 31

    Capítulo 32

    Capítulo 33

    Capítulo 34

    Capítulo 35

    Capítulo 36

    Capítulo 37

    Capítulo 38

    Capítulo 39

    Capítulo 40

    Capítulo 41

    Capítulo 42

    Capítulo 43

    Capítulo 44

    Capítulo 45

    Capítulo 46

    Capítulo 47

    Capítulo 48

    Capítulo 49

    Anexos

    Anexo I

    Anexo II

    Anexo III

    Anexo IV

    Anexo V

    Anexo VI

    Anexo VII

    Anexo VIII

    Anexo IX

    Anexo X

    Prólogo

    Os editores desta obra, vendo a popularidade extraordinária que ela tinha alcançado quando publicada em fragmentos na Revista, intenderam fazer um serviço às letras e à glória do seu país, imprimindo-a agora reunida em um livro, para melhor se poder avaliar a variedade, a riqueza e a originalidade de seu estilo inimitável, da filosofia profunda que encerra, e sobretudo o grande e transcendente pensamento moral a que sempre tende, já quando folga e ri com as mais graves coisas da vida, já quando seriamente discute por suas leviandades e pequenezas.

    As Viagens na minha terra são um daqueles livros raros que só podiam ser escritos por quem, como o autor de Camões e de Catão, de D. Branca e do Portugal na balança da Europa, do Auto de Gil Vicente e do Tratado de educação, do Alfageme e de Frei Luís de Sousa, do Arco de Sant’Ana e da História literária de Portugal, de Adozinda e das Leituras históricas e de tantas produções de tão variado gênero, possui todos os estilos e, dominando uma língua de imenso poder, a costumou a servir-lhe e obedecer-lhe; – por quem com a mesma facilidade sobe a orar na tribuna, entra no gabinete nas graves discussões e demonstrações da ciência – voa às mais altas regiões da lírica, da epopeia e da tragédia, lida com as fortes paixões do drama, e baixa às não menos difíceis trivialidades da comédia; – por quem ao mesmo tempo, e como que mudando de natureza, pode dar-se todo às mais áridas e materiais ponderações da administração e da política, e redigir com admirável precisão, com uma exação ideológica que talvez ninguém mais tenha entre nós, uma lei administrativa ou de instrução pública, uma constituição política, ou um tratado de comércio.

    Orador e poeta, historiador e filósofo, crítico e artista, jurisconsulto e administrador, erudito e homem de Estado, religioso cultor da sua língua e falando corretamente as extranhas¹ – educado na pureza clássica da antiguidade , e versado depois em todas as outras literaturas – da meia-idade, da renascença e contemporânea – o autor das Viagens na minha terra é igualmente familiar com Homero e com o Dante, com Platão e com Rousseau, com Tucídides e com Thiers, com Guizot e com Xenofonte, com Horácio e com Lamartine, com Maquiavel e com Chateaubriand, com Shakespeare e Eurípides, com Camões e Calderón, com Goethe e Virgílio, Schiller e Sá de Miranda, Sterne e Cervantes, Fénelon e Vieira, Rabelais e Gil Vicente, Addison e Bayle, Kant e Voltaire, Herder e Smith, Bentham e Cormenin, com os Enciclopedistas e com os Santos Padres, com a Bíblia e com as tradições sânscritas, com tudo o que a arte e a ciência antiga, com tudo o que a arte enfim e a ciência moderna têm produzido. Vê-se isto dos seus escritos, e especialmente se vê deste que agora publicamos apesar de composto bem claramente ao correr da pena.

    Mas ainda assim, e com isto somente, ele não faria o que faz se não juntasse a tudo isso o profundo conhecimento dos homens e das coisas, do coração humano e da razão humana; se não fosse, além de tudo o mais, um verdadeiro homem do mundo, que tem vivido nas cortes com os príncipes, no campo com os homens de guerra, nos gabinetes com os diplomáticos e homens d’Estado, no parlamento, nos tribunais, nas academias, com todas as notabilidades de muitos países – e nos salões enfim com as mulheres e com os frívolos do mundo, com as elegâncias e com as fatuidades do século.

    De tantas obras de tão variado gênero com que, em sua vida ainda tão curta, este fecundo escritor tem enriquecido a nossa língua, é esta talvez, tornamos a dizer, a que ele mais descuidadamente escreveu: mas é também a que, em nossa opinião, mais mostra os seus imensos poderes intelectuais, a sua erudição vastíssima, a sua flexibilidade de estilo espantosa, uma filosofia transcendente, e por fim de tudo, o natural indulgente e bom de um coração reto, puro, amigo da justiça, adorador da verdade, e inimigo declarado de todo o sofisma.

    Tem sido acusado de cético: é a acusação mais absurda e que só denuncia, em quem a faz, ou grande ignorância ou grande má fé. Quando o nosso autor lança mão da cortante e destruidora arma do sarcasmo, que ele maneja com tanta força e dexteridade, e que talvez por isso mesmo, cônscio de seu poder, ele rara vez toma nas mãos – veja-se que é sempre contra a hipocrisia, contra os sofismas, e contra os hipócritas e sofistas de todas as cores, que ele o faz. Crenças, opiniões, sentimentos, respeita-os sempre. As mesmas suas ironias que tanto ferem, não as dirige nunca sobre os indivíduos; vê-se que despreza a fácil vingança que, com tão poderosas armas, podia tomar de inimigos que o não poupam, de invejosos que o caluniam, e a quem, por cada ditério insulso e efêmero com que o têm pretendido injuriar, ele podia condenar ao eterno opróbrio de um pelourinho imortal como as suas obras. Ainda bem que não o faz! mais imortais são as suas obras e, quanto a nós, mais punidos ficam os seus êmulos com esse desprezo do homem superior que se não apercebe de sua malignidade insulsa e insignificante.

    Voltando à acusação de ceticismo, ainda dizemos que não pode ser cético o espírito que concebeu, e em si achou cores com que pintar tão vivos, caracteres de crenças tão fortes como o Catão, de Camões, de Frei Luís de Sousa, – e aqui nesta nossa obra, os de Frei Dinis, de Joaninha, da Irmã Francisca.

    Não analisamos agora as Viagens na minha terra: a obra não está ainda completa e não podia completar-se portanto o juízo: dizemos somente o que todos dizem e o que todos podem julgar já.

    A nosso rogo, e por fazer mais digna da sua reputação esta segunda publicação da obra, o autor prestou-se a dirigi-la ele mesmo, corrigiu-a, aditou-a, alterou-a em muitas partes, e a ilustrou com as notas mais indispensáveis para a geral inteligência do texto: de modo que sairá muito melhorada agora do que primeiro se imprimiu.²

    Nota:

    1. Optamos pela manutenção da grafia utilizada por Garrett. O autor fazia distinção entre as formas das palavras iniciadas com ex e es. A primeira refere-se ao que é exterior ao país, e a segunda a tudo que é estranho, inesperado. (N. do E.)

    2. Este prólogo é consensualmente considerado da autoria de Garrett. (N. do E.)

    Qui’il est glorieux d’ouvrir une nouvelle carrière, et de paraître tout à coup dans le monde savant un livre de découvertes à la main, comme une comète inattendue étincelle dans l´espace!¹

    X. DE MAISTRE

    Nota:

    1. Como é glorioso começar uma carreira nova e aparecer de repente no mundo sábio, com um livro de descobertas na mão, como um cometa inesperado que cintila no espaço! (N. do E.)

    Volume I

    1

    De como o autor deste erudito livro se resolveu a viajar na sua terra, depois de ter viajado no seu quarto; e como resolveu imortalizar-se escrevendo estas suas viagens. Parte para Santarém. Chega ao Terreiro do Paço, embarca no vapor da Vila Nova; e o que aí lhe sucede. A Dedução Cronológica e a Baixa de Lisboa. Lorde Byron e um bom charuto. Travam-se de razões os ílhavos e os bordas-d´água: os da calça larga levam a melhor.

    Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes,¹ de inverno, em Turim, que é quase tão frio como São Petersburgo – entende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal.

    Eu muitas vezes, nestas sufocadas noites de Estio, viajo até à minha janela para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua, e me enganar com uns verdes de árvores que ali vegetam sua laboriosa infância nos entulhos do Cais do Sodré. E nunca escrevi estas minhas viagens nem as suas impressões: pois tinham muito que ver! Foi sempre ambiciosa a minha pena: pobre e soberba, quer assunto mais largo. Pois hei de dá-lo. Vou nada menos que a Santarém: e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há de fazer crônica.

    Era uma ideia vaga; mais desejo que tenção, que eu tinha há muito de ir conhecer as ricas várzeas desse Ribatejo, e saudar em seu alto cume a mais histórica e monumental das nossas vilas. Abalam-se as instâncias de um amigo, decidem-me as tonterias de um jornal, que por mexeriquice quis encabeçar em desígnio político determinado a minha visita.²

    Pois por isso mesmo vou: – pronunciei-me.

    São 17 deste mês de julho, ano da graça de 1843, uma segunda-feira, dia sem nota e da boa estreia. Seis horas da manhã a dar em São Paulo, e eu a caminhar para o Terreiro do Paço. Chego muito a horas, envergonhei os meus madrugadores dos meus companheiros de viagem, que todos se prezam de mais matutinos homens que eu. Já vou quase no fim da praça quando ouço o rodar grave mas pressuroso de uma carroça d’ancien régime: é o nosso chefe e comandante, o capitão da empresa, o Sr. C. da T. que chega em estado.

    Também são chegados os outros companheiros: o sino dá o último rebate. Partimos.

    Numa regata de vapores³ o nosso barco não ganhava decerto o prêmio. E se, no andar do progresso, se chegaram a instituir alguns ístmicos ou olímpicos para este gênero de carreiras – e se para elas houver algum Píndaro ansioso de correr, em estrofes e antístrofes, atrás do vencedor que vai coroar de seus hinos imortais – não cabe nem um triste minguado epodo a este cansado corredor de Vila Nova. É um barco sério e sisudo que se não mete nessas andanças.

    Assim vamos de todo o nosso vagar contemplando este majestoso e pitoresco anfiteatro de Lisboa oriental, que é, vista de fora, a mais bela e grandiosa parte da cidade, a mais característica, e onde, aqui e ali, algumas raras feições se percebem, ou mais exatamente se adivinham, da nossa velha e boa Lisboa das crônicas. Da Fundição para baixo tudo é prosaico e burguês, chato, vulgar e sensabor como um período da Dedução Cronológica, aqui e ali assoprado numa tentativa ao grandioso do mau gosto, como alguma oitava menos rasteira do Oriente.

    Assim o povo, que tem sempre melhor gosto e mais puro do que essa escuma descorada que anda ao de cima das populações, e que se chama a si mesma por excelência a Sociedade, os seus passeios favoritos são a Madre de Deus e o Beato e Xabregas e Marvila e as hortas de Chelas. A um lado a imensa majestade do Tejo em sua maior extensão e poder, que ali mais parece um pequeno mar mediterrâneo; do outro a frescura das hortas e a sombra das árvores, palácios, mosteiros, sítio consagrados todos a recordações grandes ou queridas. Que outra saída tem Lisboa que se compare em beleza com esta? Tirando Belém, nenhuma. E ainda assim, Belém é mais árido.

    Já saudamos Alhandra, a toureira; Vila Franca, a que foi de Xira, e depois da restauração, e depois outra vez de Xira, quando a tal restauração caiu, como a todas as restaurações sempre sucede e há de suceder, em ódio e execração tal que nem uma pobre vila a quis para sobrenome.

    – A questão não era de restaurar nem de não restaurar, mas de se livrar a gente de um governo de patuscos, que é o mais odioso e engulhoso dos governos possíveis.

    É a reflexão com que um dos nossos companheiros de viagem acudiu ao princípio de ponderação que eu ia involuntariamente fazendo a respeito de Vila Franca.

    Mas eu não tenho ódio nenhum a Vila Franca, nem a esse famoso círio que lá foi fazer a velha monarquia. Era uma coisa que estava na ordem das coisas, e que por força havia de suceder. Este necessário e inevitável reviramento por que vai passando o mundo, há de levar muito tempo, há de ser contrastado por muita reação antes de completar-se...

    No entretanto vamos acender os nossos charutos, e deixemos os precintos aristocráticos da ré: à proa, que é país de cigarro livre!

    Não me lembra que lord Byron celebrasse nunca o prazer de fumar a bordo. É notável esquecimento no poeta mais embarcadiço, mais marujo que ainda houve, e que até cantou o enjoo, mais prosaica e nauseante das misérias da vida! Pois num dia destes, sentir na face e nos cabelos a brisa refrigerante que passou por cima da água enquanto se aspiram molemente as narcóticas exalações de um bom cigarro da Havana, é uma das poucas coisas sinceramente boas que há neste mundo.

    Fumemos!

    Aqui está um campino fumando também gravemente o seu cigarro de papel, que me vai emprestar lume.

    – Dou-lho eu, senhor... – acode cortesmente outra figura mui diversa, cujas feições, trajo e modos singularmente contrastam com os do moçárabe ribatejano.

    Acenderam-se os charutos, e atentamos mais devagar na companhia em que estávamos.

    Era com efeito notável e interessante o grupo a que nos tínhamos chegado, e destacava pitorescamente do resto dos passageiros, mistura híbrida de trajos e feições descaracterizadas e vulgares – que abunda nos arredores de uma grande cidade marítima e comercial. – Não assim este grupo mais separado com que fomos topar. Constava ele de uns doze homens; cinco eram desses famosos atletas da Alhandra que vão todos os domingos colher o pulverem olympicum da Praça de Santana, e que, à voz soberana e irresistível de: à unha, à unha, à cernelha!... correm a arcar com mais generosos, não mais possantes, animais que eles, ao som das imensas palmas, e a troco dos raros pintos por que se manifesta o sempre clamoroso e sempre vazio entusiasmo das multidões. Voltavam à sua terra os meus cinco lutadores ainda em trajo de praça, ainda esmurrados e cheios de glória da contenda da véspera. Mas ao pé destes cinco e de altercação com eles – já direi por quê – estavam seis ou sete homens que em tudo pareciam os seus antípodas.

    Em vez do calção amarelo e da jaqueta de ramagem que caracterizam o homem do forcado, estes vestiam o amplo saiote grego dos varinos, e o tabardo arrequifado siciliano de pano de varas. O campino, assim como o saloio, tem o cunho da raça africana; estes são da família pelasga: feições regulares e móveis, a forma ágil.

    Ora os homens do norte estavam disputando com os homens do sul: a questão fora interrompida com a nossa chegada à proa do barco. Mas um dos ílhavos – bela e poética figura de homem – voltando-se para nós, disse naquele seu tom acentuado: – Ora aqui está quem há de decidir: vejam os senhores. Eles, por agarrar um touro, cuidam que são mais que ninguém, que não há quem lhes chegue. E os senhores, a serem cá de Lisboa, hão de dizer que sim. Mas nós...

    – Nenhum de nós é de Lisboa: só este senhor que aqui vem agora.

    Era o C. da T. que chegava.

    – Este conheço eu; este é dos nossos – bradou um homem de forcado, assim que o viu. – Isto é um fidalgo como se quer. Nunca o vi numa ferra, isso é verdade; mas aqui de Valada a Almeirim ninguém corre mais do que ele por sol e por chuva, e há de saber o que é um boi de lei, e o que é lidar com gado.

    – Pois ouçamos lá a questão.

    – Não é questão – tornou o ílhavo – mas se este senhor fígado anda por Almeirim, para Almeirim vamos nós, que era uma charneca o outro dia, e hoje é um jardim, benza-o Deus! – mas não foram os campinos que o fizeram, foi a nossa gente que o sachou e plantou, e o fez o que é, e fez terra das areias da charneca.

    – Lá isso é verdade.

    – Não, não é! Que está forte habilidade fazer dar trigo aqui aos nateiros do Tejo, que é como quem semeia em manteiga. É uma lavoura que a faz Deus por sua mão, regar e adubar e tudo: e o que Deus não faz, não fazem eles, que nem sabem ter mão nesses mouchões com o plantio das árvores: só lá por cima é que algumas têm metido; e é bem pouco para o rio que é, e as ricas terras que lhes levam as enchentes. Mas nós, pé no barco pé na terra, tão depressa estamos a sachar o milho na charneca, como vimos por aí abaixo com a vara no peito, e o saveiro a pegar na areia por não haver água... mas sempre labutando pela vida.

    – A força é que se fala – tornou o campino para estabelecer a questão em terreno que lhe convinha. – A força é que se fala: um homem do campo que se deita ali à cernelha de um touro que uma companhia inteira de varinos lhe não pegava, com perdão dos senhores, pelo rabo!...

    E reforçou o argumento com uma gargalhada triunfante, que achou eco nos interessados circunstantes que já se tinham apinhado a ouvir os debates.

    Os ílhavos ficaram um tanto abatidos; sem perderem a consciência da sua superioridade, mas acanhados pela algazarra.

    Parecia a esquerda de um parlamento quando vê sumir-se, no burburinho acintoso das turbas ministeriais, as melhores frases e as mais fortes razões dos seus oradores.

    Mas o orador ílhavo não era homem de se dar assim por derrotado. Olhou para os seus, como quem os consultava e animava, com um gesto expressivo, e voltando-se a nós, com a direita estendida aos seus antagonistas:

    – Então agora como é de força, quero eu saber, e estes senhores que digam, qual é que tem mais força, se é um touro ou se é o mar.

    – Essa agora!...

    – Queríamos saber.

    – É o mar.

    – Pois nós que brigamos com o mar, oito e dez dias a fio numa tormenta, de Aveiro a Lisboa, e estes que brigam uma tarde com um touro, qual é que tem mais força?

    Os campinos ficaram cabisbaixos; o público imparcial aplaudiu por esta vez a oposição, e o Vouga triunfou do Tejo.

    Nota:

    1. É visível alusão ao popular e inimitável opúsculo de Xavier de Maistre, Voyage autour de ma chambre, que decerto foi principiado a escrever em Turim, e que muitos supõem que fosse concluído em São Petersburgo. (Com exceção da nota da página 26, todas as notas indicadas com asterisco a partir desta página são notas do autor.)

    2. É puramente histórico isto; e também é verdade que em grande parte daqui se originou a perseguição brutal que sofreu o A. daí a poucos meses.

    3. Regata chamavam, e não sei se chamam ainda, em Veneza às carreiras de barcos apostados ao desafio. A palavra e a coisa introduziu-se em Inglaterra, onde é moda e popularíssima.

    2

    Declaram-se típicas, simbólicas e míticas estas viagens. Faz o A. modestamente o seu próprio elogio. Da marcha da civilização: e mostra-se como ela é dirigida pelo cavaleiro da Mancha D. Quixote, e por seu escudeiro Sancho Pança. • Chegada a Vila Nova da Rainha. Suplício de Tântalo. • A virtude galardão de si mesma: e sofisma de Jeremias Bentham. • Azambuja.

    Estas minhas interessantes viagens hão de ser uma obra-prima, erudita, brilhante de pensamentos novos, uma coisa digna do século. Preciso de o dizer ao leitor, para que ele esteja prevenido; não cuide que são quaisquer dessas rabiscaduras da moda que, com o título de Impressões de viagem, ou outro que tal, fatigam as imprensas

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