Memórias Escolares de Travestis: Narrativas de um "Não Lugar"
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Memórias Escolares de Travestis - Bruno do Prado Alexandre
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO E DIREITOS HUMANOS:DIVERSIDADE DE GÊNERO, SEXUAL, ÉTNICO-RACIAL E INCLUSÃO SOCIAL
Às meninas travestis que participaram desta pesquisa, pelo aprendizado, pelas resistências e pela vontade de superar as desigualdades que nos oprimem.
AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente, a Deus, pela vida, pela saúde e pela oportunidade de poder desenvolver um estudo acadêmico que agora se torna livro.
À minha família, que mesmo sem ter concluído o ensino fundamental ou reconhecer a real importância dessa etapa formativa, sempre me apoiou, cada um à sua maneira.
Aos amigos e amigas, que me acompanharam e suportaram os meus desabafos ante os desafios impostos pela escrita; em especial, ao professor Iziquiel (Zico), que sempre me incentivou e acreditou no meu potencial, e ao amigo e confidente Leonardo Nascimento, pelas contribuições na presente obra e pelos momentos de descontração.
À Associação Koblenz Brasil (KoBra), que desde o ensino fundamental tem me incentivado e apoiado financeiramente.
À Prof.ª Dr.ª Raquel Gonçalves Salgado, que, sempre compreensiva, esteve disposta a me ajudar nas idas e vindas da pesquisa que deu origem a este livro.
Ao Prof. Dr. Leonardo Lemos de Souza, pela sensibilidade e pelas preciosas contribuições.
Ao Prof. Dr. Flávio Vilas-Boas Trovão, pelo olhar crítico sobre o estudo.
Ao Prof. Dr. Tiago Duque, pela acessibilidade e pelas preciosas contribuições.
Aos professores e colegas do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Rondonópolis, pelas valiosas partilhas.
Às meninas travestis, minha gratidão mais sincera.
Eu sou o avesso do que o senhor sonhou para o seu filho.
Eu sou a sua filha amada pelo avesso.
A minha embalagem é de pedra, mas meu avesso é de gesso.
Toda vez que a pedra bate no gesso, me corta toda por dentro.
Eu mesma me corto por dentro, só eu posso, só eu faço.
Na carne externa quem me corta é o mesmo que admira esse meu avesso pelo lado de fora.
Eu sou a subversão sublime de mim mesma.
Sou o que derrama, o que transborda da mulher.
Só que essa mulher sou eu, sou o que excede dela.
Ou seja, eu sou ela com um plus, com um bônus.
Sou a mulher que tem força de homem, que tem o coração trabalhado no gelo.
Que pode ser várias, uma em cada dia da semana.
Eu tenho o cabelo que eu quiser, a unha da cor que eu quiser.
Os peitos do tamanho que eu quiser, e do material que puder pagar.
O que eu não trocaria por uma armadura medieval, uma prótese blindada talvez.
A prova de balas, a prova de facas. Uma prótese dura o suficiente para me proteger de um tiro e maleável o suficiente para ainda deixar o amor entrar.
Bailarina troglodita de pernas de pau.
Eu fui expulsa da escola de dança e aprovada em primeiro lugar na escola da vida. Vestibular de morte, na cadeira da bombadeira
, minha primeira lição.
Era a pele que crescia e me dava a aparência que eu sonhava.
Conosco, a beleza e a morte andam de mãos dadas.
No mesmo trilho de uma vida marcada por dedos que apontam até o fim da existência. Na minha esquina.
Sim, aqui as esquinas têm donos.
À noite, meninas como eu ou como outra qualquer, usando um pedaço de tecido fingindo ser uma saia, brincos enormes, capazes de fazer uma mulher comum perder o equilíbrio e um salto de acrílico de altura inimaginável, que a faz sentir-se inatingível.
Ela merece uma medalha.
Para um carro, um homem ao volante que deixa em casa sua mulher, e quer ser mulher, até mais feminina que nós talvez.
Porque dessa vez os litros de silicone, os cabelos tingidos, os brincos enormes, os saltos altíssimos não impressionaram a ele.
Seu desejo é pelo que ela não mostra nas ruas, ela vai ter que se ver como homem mais uma vez.
E a vida segue.
Muitas morrem, outras nascem cada vez mais novas.
E assim elas vão, desviando dos tiros, esbarrando no preconceito, correndo da polícia. Mas sempre com um batom nos lábios, um belo salto nos pés e na maioria das vezes um vazio no coração.
Ela não precisa de redenção.
(RAFAEL MENEZES, 2010)¹
PREFÁCIO
Escrevo este prefácio no verão de 2019, em um Brasil já difícil de reconhecer e com o qual se identificar, mesmo tendo nascido e vivido minha infância nos anos sangrentos da ditadura militar. Digo isso ao me assombrar com a conjuntura política que estamos vivendo, arrebatadora pelos ataques à democracia e à luta contra as desigualdades sociais tão acirradas e violentas que marcam a história brasileira.
Do tempo em que compartilhei com Bruno as experiências, as histórias, as reflexões, os desafios, as perguntas e os conhecimentos que dão corpo a este livro aos dias de hoje, já transcorre um par de anos. Nesse tempo, o anúncio de dias difíceis já batia à porta. Passamos, juntos, a presenciar e nos inquietar com a fabricação de temas malditos
, merecedores de escárnio, censura e profanação, principalmente no contexto das escolas. Dentre esses temas, a palavra gênero
ganha notoriedade como a encarnação de uma espécie de ideologia do mal
, de efeitos danosos e destrutivos aos principais pilares da ordem social vigente. O tripé infância, família e escola, sob os efeitos da amaldiçoada ideologia de gênero
, fica à beira do abismo e suas estruturas seculares e tradicionais passam a correr o risco iminente de sucumbir por completo. Os guardiões da moral e dos bons costumes entram em estado de alerta e vigilância para detectar de onde vêm, como se produzem, por onde circulam e quem enuncia os discursos da mal-dita ideologia de gênero
. Mobilizados e atentos às coisas que estão fora da ordem, fora da nova ordem mundial
(VELOSO, 1991), acionam um dos primeiros e mais imediatos dispositivos de controle que têm às mãos: a varredura das palavras nos documentos oficiais da educação brasileira, na tentativa de arrancá-las de uma só vez das marcas da história. Opera-se o expurgamento da palavra gênero
dos planos de educação do país (nacional, estaduais e municipais) como uma investida de políticos conservadores, aliados a grupos religiosos fundamentalistas.
Que efeitos a fabricação do gênero como uma ideologia do mal
tem para a vida social? Muitos, certamente. Não conseguiria precisar todos aqui. Entretanto é possível afirmar que a convergência desses efeitos está nas vidas que não se alinham a um modo de viver chancelado para existir no mundo ao estar consagrado como normal
. As vidas das travestis, pessoas que protagonizam as memórias que compõem a tessitura deste livro, são essas vidas não alinhadas à norma e, por essa razão, rechaçadas por estatutos de reconhecimento social e de inteligibilidade da existência, que têm como um de seus pilares a heteronormatividade como uma verdade da vida
, tal como argumenta Judith Butler (2018). São essas as vidas que, por não se encaixarem às normas implacáveis de gênero, são passíveis de violências e precisam desaparecer, seja pela fabricação de não ditos, das palavras-discursos-histórias que visibilizam as suas existências, como é o caso do debate de gênero; seja pelo extermínio dessas vidas sem deixar rastros, sem que se cometa um crime.
Vidas nuas
, assim define Giorgio Agamben (2002), as vidas que, sob o arbítrio de um Estado totalitário, são privadas de seus direitos, inclusive o de existir, e estão à mercê de violações, abusos e torturas. São vidas cuja destruição não se configura como crime; tornam-se, portanto, vidas para as quais não deve haver proteção ou sacrifício, posto que estão submetidas à suspensão do direto.
O trabalho de Bruno traz, com as memórias das travestis, as denúncias de como a produção de vidas nuas já acontece na infância, dentro da escola, ao pôr em prática regimes de reconhecimento e aparecimento social que arbitram sobre as existências válidas ou não. Nas memórias da infância vivida na escola, as travestis narram o tempo-espaço do corpo do menino diferente
, do estranho, do queer, da criança que só pode ser reconhecida como viadinho
. É o tempo-espaço do corpo que está fora de lugar, desse lugar-escola que, para essa infância-estranha, é o não lugar, em função do corpo que não suporta e, por isso, promove o seu banimento: da sala de aula, durante os intervalos; do recreio; do banheiro. As travestis, em suas memórias de escola, narram o sofrimento de viverem sob a força de muitas arbitrariedades institucionais, mas também ressaltam suas resistências nas práticas de fuga para seguir existindo em meio às hostilidades e às injúrias.
Bruno, com rigor e competência acadêmicos e muitos afetos, faz do trabalho de pesquisa o livro que aqui está. Da consistência teórica e das argutas reflexões que dão estofo a esta obra, é possível extrair algo imprescindível nos tempos atuais do Brasil: a urgente necessidade política de fazer aparecer as vidas decretadas como nuas no nosso cotidiano.
Este livro, portanto, nasce do posicionamento político de interrogar e dar visibilidade às formas diferenciais de poder, que, desde a infância e na escola, sustentam mecanismos de apagamento social. Ele é um grito pelo direito de existir e de aparecer socialmente, o que traduz a posição ética e política que impregna e transborda a escritura de Bruno. É a defesa pela vida, pelo princípio ontológico de que todas as vidas importam e são merecedoras de dignidade. É a luta pela quebra dos silêncios, que sufocam e matam vidas, pela recuperação da palavra, pela sobrevivência das memórias, pelo aparecimento social dos corpos, com suas linguagens e movimentos. É a luta contra as injustiças sociais e os decretos das vidas nuas.
Termino este prefácio com um alento, que vai na contramão do lamento com o qual o iniciei: a existência deste livro como resistência ao esquecimento.
Prof.ª Dr.ª Raquel Gonçalves Salgado
(Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso/Rondonópolis)
Rondonópolis – MT, 2 de fevereiro de 2019.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
VELOSO, Caetano. Fora da ordem. Rio de Janeiro: Phonogram/Philips, 1991.
APRESENTAÇÃO
O livro de Bruno do Prado Alexandre, fruto de sua dissertação de mestrado em Educação, defendida na Universidade Federal de Mato Grosso – campus Universitário de Rondonópolis –, tem o mérito de escancarar as histórias de exclusão e violência vividas pela população trans no contexto escolar.
O objetivo de Bruno foi o de visibilizar e problematizar os processos de (re)significação sobre os corpos, gêneros e sexualidades a partir das memórias de travestis sobre suas experiências escolares.
O campo de estudos de gêneros e sexualidades é um dos aliados de Bruno no trabalho de diálogo constante com as travestis colaboradoras da pesquisa, possibilitando análises sobre os processos de subjetivação que envolvem a escolarização da população trans e como a escola, em suas artimanhas, (re)produz as hegemonias heterocisnormativas no seu cotidiano.
Outro aliado é Mikhail Bakhtin, com sua teoria da enunciação. Ao trabalhar as narrativas e memórias de travestis por essa perspectiva, o trabalho de Bruno faz emergir as contradições e tensões dos discursos institucionais sobre os corpos, gêneros e sexualidades das crianças que as travestis, colaboradoras deste estudo, um dia foram na escola.
Nessas contradições emergem, também, discursos potentes de vida na sua luta constante de fazer valer as existências de corpos, gêneros e sexualidades fora da norma.
O trabalho de Bruno é um convite aos desafios de se pensar a educação de maneira mais ampla do que apenas se concentrar nas aprendizagens de disciplinas e técnicas. Ele nos desafia a pensar como a educação necessita ser reinventada para aprendizagens que façam valer o respeito à vida e às diferenças de maneira ética.
Leonardo Lemos de Souza
Professor associado do Departamento de Psicologia Social e Educacional da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(Unesp), campus de Assis
Assis – SP, 17 de março de 2019.
SUMÁRIO
Sumário
1
INTRODUÇÃO 19
2
INFÂNCIA, ESCOLA, RELAÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADES 25
2.1 Escola, disciplina e controle dos corpos 28
2.2 Relações de gênero, sexualidade e poder 39
3
CORPO, TRAVESTILIDADES E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO FEMININO TRAVESTI 63
3.1 A produção cultural do corpo 63
3.2 Afinal, quais são os corpos que importam? 68
3.3 Entre o subversivo e o normativo: as tensões que permeiam os meandros das travestilidades 80
4
RESSIGNIFICANDO MEMÓRIAS, TRAVESTILIZANDO HISTÓRIAS: MEMÓRIAS DE ESCOLA NAS NARRATIVAS DE PESSOAS TRAVESTIS 85
4.1 O interesse pela temática e o percurso teórico-metodológico da pesquisa 86
4.2 Perspectivas teórico-metodológicas do discurso em diálogo na pesquisa 90
4.3 Memória e narração como ressignificação do tempo presente 91
4.4 Quem são elas? 93
4.4.1 Jully Andrews e Fox 94
4.4.2 Adriana Liário 96
4.4.3 Dê Silva 97
4.4.4 Suzi Bellison 102
4.4.5 July Cristiny 102
4.5 O dialogismo como perspectiva de análise das narrativas das travestis 103
4.6 Os corpos que não cabem
e a ideia de não lugar
104
4.7 Normas, resistências, subversões e as experiências vividas na escola 111
4.7.1 Travestilidades e a problemática do banheiro na escola 116
4.7.2 O nome social e a hora da chamada 121
4.7.3 A Educação Física e as tensões que permeiam suas práticas 123
4.8 A produção do feminino no corpo travesti 129
4.9 Travestilidades, violências e prostituição 145
4.10 A ressignificação do queer e a instauração do processo de politização das identidades subalternizadas
151
4.11 Algumas proposições para a educação 154
4.12 Direitos, resistências e a noção de cidadania 157
5
algumas considerações 163
REFERÊNCIAS 167
ÍNDICE REMISSIVO 173
1
INTRODUÇÃO
Os debates que elegem como foco as questões das diversidades sexuais têm se intensificado nos últimos tempos, tensionados, principalmente, pela emersão das identidades de gênero e sexuais, ocasionando grandes discussões, nem sempre pacíficas. No âmbito cultural, tudo o que se contrapõe às normas hegemônicas do gênero e da sexualidade tem sido visto sob um olhar de inferioridade e, ao mesmo tempo, concebido como ameaça.
Direcionar essa perspectiva para o campo da Educação, considerando todos esses tensionamentos que se intensificam com a presença de corpos, sexualidades e identidades que destoam da matriz heteronormativa é algo imperioso, desafiador e, quiçá, perigoso, tendo em vista o atual contexto político, em que todas essas questões têm sido cassadas dos planos de educação em todas as esferas, ou seja, nacional, estadual e municipal. Isso serve de pista, por vezes, para demonstrar o caráter fluido das identidades, derrubando por terra o discurso hegemônico de uma sexualidade imanentemente natural. Se assim o fosse, não haveria tanta preocupação em preservar crianças, adolescentes e jovens dessas discussões, sob o argumento de não influenciar suas vidas e, sobretudo, suas constituições subjetivas.
Discutir tais temas em diálogo com a escola requer um posicionamento político compromissado, que não negue os processos dialógicos que nela são estabelecidos, bem como as negociações, veladas ou não, que ocorrem em resposta às inúmeras disputas que são produzidas por meio da interação dos estudantes, principalmente no tocante ao que se institui como normativo, disciplinador e docilizador, sobretudo quanto às questões de gênero e sexualidade.
À escola tem se colocado uma árdua tarefa. Se, de um lado, ela precisa abafar as questões relacionadas à sexualidade, de outro, ela precisa produzir uma orientação que tenha como foco as práticas heterossexuais, repelindo, por meio de distintos mecanismos, por vezes dissimulados, as sexualidades ditas desviantes ou periféricas
, como bem nomeou Foucault (2015). Para tanto, é salutar perceber como os corpos têm sido interrogados em relação a todas essas questões e que práticas têm sido empreendidas a fim de disciplinar ou confrontar o que se estabelece enquanto normativo.
Significativamente, proponho, nesta obra, instaurar um profícuo diálogo envolvendo essas nuances que atravessam a escola e os corpos que ela recebe ou estrategicamente expulsa. A escola é aqui entendida como espaço de