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Prisão, educação e remição de pena no Brasil
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Prisão, educação e remição de pena no Brasil
E-book431 páginas5 horas

Prisão, educação e remição de pena no Brasil

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Sobre este e-book

"Prisão, Educação e remição de pena no Brasil" examina a gênese do dispositivo jurídico da remição de pena pelo estudo e a luta pela garantia de direitos à educação nas prisões. Processos gestados, imersos à constituição de uma "questão carcerária", demarcada por superencarceramentos, motins, organização de facções criminosas e constantes rebeliões no sistema penitenciário. A obra demonstra como os conflitos penitenciários, gradualmente, influenciaram para a formação do espaço de militância que se ocupou em combater violações aos direitos civis e para, inclusive, mobilizar intelectuais e militantes engajados, dispostos em institucionalizar políticas educacionais para pessoas privadas de liberdade no Brasil.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento28 de fev. de 2020
ISBN9788546219926
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    Prisão, educação e remição de pena no Brasil - Eli Narciso da Silva Torres

    2018.

    PREFÁCIO

    Quando a banca examinadora de uma tese recomenda a sua publicação em livro constitui um indicador de qualidade. O fato de uma tese suscitar mais perguntas do que respostas é um sinal da complexidade, riqueza e polemicidade da temática. O trabalho da Eli Narciso da Silva Torres foi recomendado para publicação e para ser submetido ao Prêmio Capes de Tese. Com respeito à complexidade da temática, uma investigação cujo foco é a mobilização que levou à aprovação de um dispositivo jurídico, reconhecendo o direito à remição de pena pelo estudo para pessoas privadas de liberdade, lida com questões que não são consensuais.

    Para poder analisar as complexidades da questão carcerária, a autora lançou mão de três estratégias para se aproximar ao objeto da pesquisa. Em um primeiro momento, foi realizado um levantamento bibliográfico exaustivo dos estudos realizados no Brasil e em outros países sobre os processos de institucionalização de dispositivos jurídicos, que regulam a remição de pena e, em particular, sobre aqueles que levam em conta a educação. Em segundo momento, a autora examinou documentos de tipos diversos que expressam tomadas de posição sobre a questão no espaço nacional e internacional e entrevistou 14 pessoas, cujo levantamento e documentos indicaram como sendo atuantes nessa causa, nos diferentes momentos de sua história. E, por último, a pesquisa buscou registrar como vem se efetivando a oferta educacional e a aplicação da lei de remição de pena pelo estudo. Dessa forma, a pesquisadora levanta evidências empíricas de diversas fontes – jurídicas, bibliográficas, documentais e de depoimentos pessoais, para fundamentar a sua interpretação dos dados.

    Confesso que eu não sou observador desinteressado nessa questão. Defendo o direito de todos à educação, independentemente de qualquer variável, bem como aos outros direitos humanos fundamentais. Por esse motivo, eu não apenas li a tese da professora Eli Torres, eu a vivi intensamente. Fez-me lembrar de uma frase do poeta inglês W. H. Auden que disse A preliminar necessária em qualquer atividade humana, seja ela a descoberta científica ou a visão artística, é a intensidade da atenção, ou, sendo menos pomposo, o amor⁵. Ao analisar e discutir a questão da remição pelo estudo para pessoas privadas de liberdade, Eli Torres trata a questão da forma científica que se espera de uma tese de doutorado. Porém, como mulher e como servidora do Departamento Penitenciário Nacional, na função de Agente Federal de Execução Penal, ela dedica o que Auden identificou como uma intensidade de atenção para entender o processo pelo qual o direito à educação se tornou mais factível para um dos segmentos da população mais marginalizadas – a população carcerária.

    Em se tratar da educação de jovens e adultos para um segmento específico da população, enfrentamos uma dupla negação. Em geral, a população carcerária demonstra índices baixos de escolaridade formal – em torno do 65% não concluíram o ensino formal. O termo analfabeto é usado para desqualificar pessoas de pouca escolaridade pelo simples fato de não dominar as convenções formais da leitura e da escrita. Porém, o analfabetismo é superável. Uma vez inserida no processo de alfabetização a pessoa pode superar as barreiras da leitura e escrita e se tornar uma pessoa alfabetizada. No caso da pessoa adulta presa, além de ser considerada analfabeta ou analfabeta funcional em termos de escolaridade, ela é classificada como criminosa. Porém, nesse caso, apesar de seus esforços de mudar de vida e se reinserir na sociedade de uma forma mais ética e produtiva, o passado de criminoso não é superado. Apesar de pagar prisão, a pessoa continua em dívida permanente.

    Não há como questionar o direito à educação, que não exige outra justificativa para a sua efetivação, mas ao ser incorporado no processo de ressocialização a educação da pessoa presa, mesmo reconhecido formalmente como meio para reduzir a pena, não possui força para vencer o preconceito do público geral sobre a segunda etiqueta de criminosa. Enfrentamos um dilema pelo qual, juridicamente, a educação é reconhecida como direito e como meio de resgate social, mas, na realidade, se encontra sem poder para efetivar a reinserção da pessoa na sociedade.

    No fundo, esse dilema cria outro desafio educacional. A educação se constitui de uma via de mão dupla. Os resultados de um processo educativo incorporam impactos individuais e sociais. As evidências sobre os impactos de participar de processos educativos para pessoas privadas de liberdade têm sido crescentemente bem documentadas. A aceitação e reconhecimento por parte da sociedade, desse esforço, ainda são bastante limitados. Em geral, os meios de comunicação optam por divulgar somente o lado negativo das diversas iniciativas do sistema prisional no chamado campo da ressocialização.

    As Regras Mínimas para Tratamento de Presos preconizadas pela Organização da Nações Unidas (ONU), conhecidas como as Regras de Mandela na sua versão revisada de 2015, explicitam princípios basilares da preservação da dignidade da pessoa privada de liberdade:

    Todos os presos devem ser tratados com respeito, devido a seu valor e dignidade inerentes ao ser humano. Nenhum preso deverá ser submetido a tortura ou tratamentos ou sanções cruéis, desumanos ou degradantes e deverá ser protegido de tais atos, não sendo estes justificáveis em qualquer circunstância. A segurança dos presos, dos servidores prisionais, dos prestadores de serviço e dos visitantes deve ser sempre assegurada⁶.

    Nelson Mandela (Krolak, 2019, p. 5) reforçou a sua compreensão da centralidade da dignidade humana ao afirmar que: Ninguém conhece verdadeiramente uma nação até que tenha estado em suas prisões. Uma nação não deveria ser julgada pela forma como trata os seus cidadãos das classes mais elevadas, mas os das menos elevadas. Não conhecemos as prisões porque, em geral, concebemos a prisão como uma forma de nos livrar de pessoas que a sociedade considera indesejáveis. Se uma das funções do sistema prisional é de propiciar as ferramentas fundamentais para a volta à sociedade, a questão da educação para pessoas privadas de liberdade deveria ser uma preocupação social. Em geral, a opinião pública considera que no caso das pessoas privadas de liberdade, a educação não é um investimento, é um gasto desnecessário. E dessa forma, voltamos para o fundamento do direito à preservação da dignidade inerente ao ser humano da pessoa privada de liberdade.

    O lançamento do livro se torna um ato importante para garantir o acesso de um maior número de leitores ao texto. Espero que seja disponível para os leitores presos que frequentam as bibliotecas também garantidas pelas Regras de Mandela e pelas Diretrizes nacionais para a oferta de educação para jovens e adultos em situação de privação de liberdade nos estabelecimentos penais, de 2010. Como a própria autora informa, o seu objetivo ao iniciar a pesquisa que serviu de alicerce ao livro era:

    Compreender os processos sociais que conduziram à institucionalização da remição pelo estudo e suas vinculações ao fortalecimento da luta pelo direito à educação dos custodiados no sistema penitenciário (...).

    Ela aponta dois movimentos recentes que tiveram um impacto sobre a questão carcerário no Brasil. De um lado, a superlotação nas prisões junto com a falta de investimento em infraestrutura e na formação e contratação de agentes penitenciários. De outro, a influência da política de tolerância zero implementada nos EUA que passou a impactar as políticas de encarceramento em vários países da América Latina incluindo o Brasil. É o que Wacquant chama da criminalização da pobreza.

    No entanto, paralelamente a esse processo de endurecimento que resulta na superpopulação, aparece uma gradativa institucionalização da remição da pena pelo estudo em vários países da América Latina que a autora aponta como um contraponto ou moderador de demandas, frente aos altos índices de aprisionamento. E é por meio dos processos sociais, que conduziram a essa institucionalização, que vemos a força da sociedade civil organizada e sua busca de alianças capazes de mudar a lei.

    A conquista da remição pelo estudo para pessoas privadas de liberdade constitui um avanço no sentido da reafirmação do direito à educação e do potencial da educação a contribuir para a mudança na vida das pessoas. A remição pela leitura, estabelecida pela Recomendação n. 44 do Conselho Nacional de Justiça, em 2013, representa mais um passo em entender, inclusive, que a educação não se reduz à escolaridade. Educar constitui um processo lento, seja a educação da população carcerária seja a educação da sociedade. Nesse processo, as universidades desempenham um papel científico fundamental. O livro de Eli Torres faz parte dessa contribuição da ciência para entender o direito fundamental à dignidade humana que pertence a todos os seres humanos.

    João Pessoa, 10 de agosto de 2019

    Timothy D. Ireland

    Cátedra Unesco de Educação de Jovens e Adultos

    Universidade Federal da Paraíba (UFPB).


    Notas

    5. Mario Sérgio Conti, Triste está Eros, Afrodite chora, Folha de S. Paulo, ilustrada, 23 jun. 2018, C6.

    6. Unodc. Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos. Viena: Unodc, 2015, p. 16, grifo nosso.

    INTRODUÇÃO

    A remição de pena pela educação é um mecanismo jurídico, criado no Brasil por meio do Projeto de Lei Complementar (PL) n. 265/2006 aprovado no Congresso Nacional, que deu origem à legislação n. 12.433/2011 de 29 de junho de 2011.

    Este livro procura compreender o processo de institucionalização dessa legislação que se vincula, paralelamente, ao fortalecimento das políticas educacionais para o sistema penitenciário. O objetivo foi analisar os processos sociais que culminaram na aprovação da Lei n. 12.433/2011, que alterou a Lei de Execução Penal (LEP) e institucionalizou a remição de pena pelo estudo no Brasil. Para isso, resgata o contexto sociopolítico, particularmente no que se refere ao sistema penitenciário, em vigor entre as décadas de 1990 e 2000, período no qual foi gestado o dispositivo e identifica as forças atuantes no processo.

    Como veremos com mais detalhe, os anos de 1990, em especial, foram caracterizados por crises no interior do sistema de justiça criminal, em parte associadas ao que Zaluar (1999) tratou como a organização social dos criminosos no Brasil.

    Afinal, foi naquele período que surgiu a organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), que passou a atuar dentro do aparelho penal, coordenando, inclusive, rebeliões de encarcerados (Dias, 2011a). Em outro episódio, conhecido como o Massacre do Carandiru, 111 internos foram mortos por policiais militares, em 2 de outubro de 1992, durante ação de contenção de um possível motim na Casa de Detenção de São Paulo. Em decorrência da intervenção e mortes dos homens alojados no Pavilhão 9 da Casa de Detenção/Carandiru, no estado de São Paulo, foram denunciados, criminalmente, 120 policiais militares pelos crimes de homicídio e lesão corporal (Machado; Machado, 2015).

    A visibilidade alcançada por esses episódios expôs uma face inglória e pouco conhecida do país, tanto nacional quanto internacionalmente: a superlotação do sistema prisional aliada às condições precárias e desumanas de aprisionamento, provocando reações de diversos setores da sociedade.

    Uma das consequências foi o fortalecimento de indivíduos e grupos ativistas que já desenvolviam trabalhos voltados para a população encarcerada, visto que a ocorrência do massacre possibilitou o fortalecimento de um terreno propício à luta; e fez diminuir as resistências a ponto de medidas que privilegiassem as orientações de garantia de direitos, sobretudo humanos, passassem a ser discutidas num momento de especial sensibilização da opinião pública, e talvez, principalmente, do governo federal e de parlamentares. A mobilização desses ativistas contribuiu para a construção de uma questão carcerária que, ao longo dos vinte anos seguintes, serviu como mobilizadora de uma série de esforços voltados para a garantia de direitos às pessoas encarceradas.

    Esses ativistas compunham um grupo bastante heterogêneo, que incluía políticos profissionais, especialistas, juristas, atuando individualmente ou vinculados a ONGs, fundações, inclusive organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e a Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, Ciência e Cultura (OEI), dentre outros.

    Essa mobilização esteve na origem de várias políticas. Entre elas encontra-se a gradativa efetivação da oferta de educação, respaldadas por diretrizes emanadas de organismos internacionais voltados para a população encarcerada, o que auxiliou na aprovação da Lei n. 12.433/2011 que alterou e incluiu a previsão da remição pelo estudo ao rol da Lei de Execução Penal.

    O campo de estudos sobre a educação em espaços de privação de liberdade desenvolveu-se de maneira significativa nos últimos vinte anos, o mesmo período caracterizado pelo crescente ativismo que permitiu consolidar uma questão carcerária no Brasil. Esse ativismo foi particularmente fortalecido por alguns episódios, como: (I) o motim de 1992, conhecido como o Massacre do Carandiru no qual foram executados, pela polícia militar, 111 homens na Casa de Detenção de São Paulo; (II) o aumento da população encarcerada em detrimento de poucos investimentos; (III) o surgimento da facção criminosa Primeiro Comando da Capital em 1993; e (IV) as sucessivas rebeliões iniciadas no estado de São Paulo, cujo ápice teve lugar em maio de 2006, quando ocorreu a maior rebelião de presos no país.

    Esses acontecimentos foram essenciais à constituição de uma questão carcerária no país, dando força a ideias e manifestações que questionavam a eficiência social do aprisionamento. Contribuindo para difundir a percepção de que o encarceramento deveria se tornar objeto de políticas públicas, essas ideias permitiram aglutinar defensores da garantia do direito à educação nas prisões e substanciaram gradativamente os argumentos em favor da remição pela educação, proposta, pela primeira vez no Congresso Nacional, pelo Projeto de Lei n. 216/1993, de autoria do deputado José Abrão⁷ do PSDB/SP, no ano de 1993 (Brasil, 1993), não por coincidência, menos de um ano depois do massacre do Carandiru.

    Junto com a mobilização por mudanças na política carcerária e, em particular, pela garantia da educação nas prisões, desenvolveu-se progressivamente um campo de estudos, responsável por muitas análises. Aqueles que discutiam a educação e a garantia de direitos em prisões (Julião, 2003; 2009; Vieira, 2008; Araújo, 2005; Sousa, 2009; Silva, 2009; 2011; Graciano, 2005; 2010a; Salustiana; Araújo, 2013), encaminharam-se na direção de atribuir à educação a possibilidade de contribuir para a reintegração social das pessoas que haviam cumprido penas em prisão. A visão geral veiculada por esses estudos apoia-se na ideia de que o indivíduo privado de liberdade deve ser beneficiário das garantias sociais oferecidas ao conjunto dos cidadãos, inclusive à educação, compreendida como um direito humano universal.

    Os estudos existentes, dentre eles os de Oliveira (2013) e Onofre (2009), abordam a possibilidade educativa como mecanismo de tratamento penal, sob o enfoque da ressocialização. Esses estudos afirmam a viabilidade da escola prisional [...] competente, solidária, produtiva e libertadora como propõe Onofre (2009, p. 241), e perseguem, como ideal, a concepção de escola de Paulo Freire (1979; 1998; 2002). Por sua vez, as pesquisas de Fábio Moreira (2008; 2016), sob a orientação do professor Roberto da Silva (USP) oferecem pistas sobre as complexidades que envolvem o surgimento de uma política educacional para presos.

    Os trabalhos examinados convergem em tratar a consolidação da educação ofertada nas prisões como o mecanismo mais viável de ressocialização da população encarcerada. Nesses escritos, a educação aparece como uma espécie de redutor de danos capaz de recuperar e reinserir internos do sistema penitenciário à sociedade.

    Partindo desses pressupostos, observou-se, também, durante o levantamento da literatura especializada sobre o tema, que a maioria dos trabalhos se dedica a estudar as práticas educativas desenvolvidas em estabelecimentos prisionais. Desse modo, a gestação e processo de institucionalização da remição de pena pelo estudo não obtiveram visibilidade nas análises.

    Por outro lado, são poucos os estudos sobre a remição de pena no Brasil. Fudoli (2002), Chies (2006) e Rocha (2006) são pioneiros na investigação do tema, entretanto, com ênfase na remição pelo trabalho prisional. Porém, vários autores se referem a possibilidade do pagamento de pena pela educação.

    A aprovação do dispositivo legal que a tornaria possível foi considerada pelo professor Roberto da Silva (USP), como mecanismo fundamental de motivação da população encarcerada, pois se destina a garantir a frequência escolar daqueles que, segundo Silva (2011), tiveram um processo de socialização incompleto e são mais vulneráveis à marginalidade devido à falência das instituições brasileiras.

    Pode-se notar que os estudos procuram realçar o caráter positivo do dispositivo jurídico remição de pena pelo trabalho, como foco principal das análises, atribuindo a ele uma dupla função: a possibilidade de premiar o preso pelos esforços despendidos na execução do trabalho e de desenvolver nele o sentimento de reparo à sociedade pelo crime cometido (Fudoli, 2002; Chies, 2006).

    Entretanto, Rocha (2006), apesar de não refutar a tese da ressocialização, apresenta argumento divergente ao observar, por meio de pesquisa empírica, que o trabalho e o estudo não são desenvolvidos em prisões como garantia de direitos e, sim, como privilégios para poucos, na medida em que não existe uma oferta de escolarização e trabalho a todos os internos do sistema prisional brasileiro.

    Na mesma direção, a análise da literatura permite ver que a escolarização tem encontrado um lugar no discurso oficial, sobretudo, como mecanismo ressocializador de presos no Brasil (Torres, 2011). Assim, a educação em espaços de privação de liberdade foi se tornando uma "categoria de ação política⁸, indo ao encontro da concepção de Lenoir (1996, p. 102). Nesta perspectiva, compreende-se por que a luta por direitos humanos pode, no espaço das ações desenvolvidas em torno da questão carcerária", tomar a forma de militância em prol de consolidar novas práticas para o sistema carcerário no Brasil, privilegiando, entre elas, a luta pela educação nas prisões e a adoção do dispositivo de remição da pena educacional.

    A análise desse espaço de debates sobre o sistema penitenciário e suas pautas revela os processos que levaram à aglutinação de especialistas em grupos, assim como seu envolvimento na questão penitenciária, a partir da convergência de discursos na maioria das vezes circunscritos à garantia do direito à educação. Tal análise revela também embates e enfrentamentos em que se envolvem esses especialistas que ocupam posições diferentes nos campos político e intelectual.

    Para compreender esses processos, o estudo mobilizou a hipótese de que a evidenciação dos conflitos do sistema prisional brasileiro favoreceu a aglutinação de indivíduos e a composição de grupos de ativistas, intelectuais e políticos, com trajetórias sociais específicas, que passaram a militar pela garantia dos direitos humanos às pessoas presas e gradativamente pela institucionalização da remição de pena pela educação.

    Trata-se de um grupo de indivíduos que, em função de ampla dedicação à militância pela garantia dos direitos a pessoas encarceradas e/ou à produção de conhecimento nessa área, obtiveram certo reconhecimento social ou político, assim como se constituíram em redes que lhes permitiam participar eficazmente dos debates marcados por conflitos e tensões institucionais de vários tipos (Lagroye; Offerlé, 2011).

    Ao mesmo tempo, a institucionalização, neste caso, da legislação que consolidou a remição de pena pelo estudo, resulta da dinâmica e objetivação paradoxal das práticas sociais a priori e do engajamento/militância que refletem em ações ou posicionamentos diversos tomados pelos diferentes indivíduos envolvidos (Lagroye; Offerlé, 2011, p. 270).

    Os contornos institucionais também são permeados pela trajetória social desses indivíduos, que Lahire (2013, p. 24) define como um conjunto de modelagem social, referindo-se às relações pessoais vivenciadas no interior das instituições sociais em diferentes campos: escola, igreja, família, etc., que servem para [...] compreender as ‘razões’ pelas quais tal indivíduo particular agiu do modo como fez [...].

    Para o autor, a investigação que se interesse em compreender essas razões deve privilegiar [...] a relativa singularidade de um indivíduo, produzida sob o efeito de uma complexa rede de determinações sociais (Lahire, 2013, p. 24). Nessa direção, este livro também se preocupou em observar em que medida essas práticas incorporadas orientam as ações atuais dos agentes, por intermédio do estudo [...] das disposições que fazem parte do patrimônio individual (Lahire, 2004, p. 39).

    As ações políticas destes agentes entrelaçam-se, por sua vez, a suas biografias a que temos acesso por meio de depoimentos que expõem um repertório de posicionamentos marcados pelas trajetórias pessoais ou familiares, pela formação, pelo maior ou menor prestígio dos certificados a que tiveram acesso⁹. Assim, as biografias e depoimentos foram examinados, considerando os conceitos que permitiram construir relações explicativas tanto sobre suas tomadas de posição a respeito da questão, quanto sobre a maneira como tais tomadas de posição influíram na aprovação final da lei.

    Em outra direção, a identificação dos agentes, assim como o mapeamento das relações que estabeleceram entre si ao longo do processo de luta pela produção e institucionalização do dispositivo de remição da pena pela educação, levou ao exame das redes de articulação estabelecidas no estado de São Paulo, Distrito Federal, as relações interministeriais e internacionais, dentre outros. Exame instrumentalizado pela compreensão de Elias (1994, p. 22), que toma a sociedade, em resumo, como uma rede de funções sociais confeccionada por:

    [...] laços invisíveis, sejam estes laços de trabalho e propriedade, sejam de instintos e afetos. Os tipos mais díspares de funções tornaram-na dependente de outrem e tornaram outros dependentes dela. Ela vive, e viveu numa rede de dependências.

    Assim, buscou-se entender como foram construídas as relações e o modus operandi empregados pelos indivíduos relevantes, considerando os campos de atuação e as interações que estabeleceram entre si em seus respectivos campos de luta como sistemas de relações objetivas de atuação, seja político ou intelectual, que se articula a todo tempo¹⁰ (Bourdieu, 2007, p. 151).

    Nesse cenário, a investigação explora as dinâmicas que levaram à efetivação da garantia do direito à educação e ao dispositivo jurídico da remição penal no Brasil, demonstrando a simbiose entre eles. Para isso, aprofunda a discussão sobre os processos que conduziram à aprovação da remição pela educação como política de dedução de tempo de pena no país.

    Tal análise nos permitiu observar em que medida a mobilização de pessoas em torno do problema carcerário no Brasil está imbricada e se articula com outros processos. Dentre eles: (a) a elevação da população encarcerada; (b) as condições inumanas de detenção; (c) o desdobramento na organização de presos, em especial, à formação do PCC, e às rebeliões no país.

    A análise parte ainda da constatação de que a introdução desse dispositivo alterou significativamente a maneira como a população encarcerada é concebida pela lei e pela política pública, que passa a tratá-la, mesmo que de maneira ainda incipiente, como um grupo social também sujeito de direitos. Trata-se aí de uma transformação de grande magnitude, sobretudo, se considerarmos que foi alcançada em uma sociedade desigual e com pouca tradição democrática como a brasileira.

    Assim, a pesquisa examina os processos que levaram a essa transformação, tomando a institucionalização da remição da pena pelo estudo no Brasil como objeto de estudo. Dedicou-se, portanto, a estudar a gênese desse processo, por meio do exame das características sociais dos indivíduos envolvidos com a produção e aprovação da lei que regula a remição da pena no Congresso Nacional, reconstruindo as redes que constituíram, assim como as lutas e disputas de que participaram.

    Porém, antes de apresentar esse lado da questão, vale a pena levar em conta o quanto essas relações devem à intensificação do encarceramento que teve lugar no mesmo período.

    Como será visto mais à frente, o período analisado aqui não foi caracterizado apenas pela construção da questão carcerária. Foi um período de endurecimento da legislação e de aumento no encarceramento, não apenas no Brasil, mas em praticamente todos os países da América Latina, correspondendo às mudanças similares as ocorridas nos Estados Unidos em décadas anteriores e estudadas por Loïc Wacquant (2007; 2011).

    Esse autor compreende tais processos como parte de uma estratégia de reestruturação do Estado, de inspiração neoliberal, que teria tido lugar nos últimos vinte e cinco anos. Nesse caso, o aparelho penal estaria destinado a atuar como modelador social em duas frentes: primeiro, consistiria na expressão material da soberania do Estado; segundo, traduziria a imposição simbólica que visa a moldar, seletivamente, a vida e os atos sociais.

    Segundo esse argumento, o sistema de justiça criminal, representado pelas forças policiais, judiciais e prisões, cumpriria uma função de propagação daquilo que se convencionou como uma política da realidade que potencializa a necessidade de vigilância das populações segregadas em territórios segmentados aos pobres (Wacquant, 2011). O autor adianta a hipótese de que tais transformações no sistema punitivo teriam culminado na criminalização e aprisionamento dos indivíduos oriundos das camadas populares já estigmatizados pela condição de pobreza.

    Apesar da pertinência dessa hipótese para o caso dos Estados Unidos, é importante notar que sua mobilização para analisar o caso do Brasil e, mais amplamente, o caso da América Latina nas décadas de 1990 e 2000, confronta-se com alguns obstáculos. O mais importante deles consiste no fato de que, apesar da visível sincronia na tendência de aumento dos índices de encarceramento em países da América Latina e nos Estados Unidos que pode ser verificado, há distinção no fato que dez países latino-americanos introduziram no seu ordenamento jurídico, no mesmo período, o dispositivo da remição de pena com base na escolarização.

    Trata-se aí de um fenômeno particular, que não se repete nos Estados Unidos e que parece funcionar, em certa medida pelo menos, como procuro demonstrar no Capítulo 6 deste livro, como contraponto ao crescente encarceramento, ainda que de alcance bastante limitado.

    Os caminhos da pesquisa

    A pesquisa que deu origem a esse texto foi organizada em três eixos. O primeiro eixo reuniu as operações de pesquisa relacionadas com a revisão da literatura e o aprofundamento da discussão sobre os conceitos teóricos que estruturam a análise proposta aqui, assim como sobre as técnicas pensadas como as mais apropriadas para sustentar a análise pretendida.

    Tratou-se, por um lado, de realizar um levantamento bibliográfico exaustivo dos estudos realizados no Brasil e em outros países sobre os processos de institucionalização de dispositivos jurídicos que regulam a remição de pena e, em particular, sobre aqueles que levam em conta a educação. Este levantamento permitiu a sistematização das experiências que tiveram ou têm lugar em países latino-americanos. Em paralelo, foi realizado o levantamento e estudo de obras-chave que permitiram avançar na discussão da perspectiva analítica adotada.

    O segundo eixo reuniu as operações de pesquisa destinadas a compreender os aspectos jurídico-políticos que envolveram os esforços pela garantia do direito à educação e, também, aqueles relativos à remição de pena pelo estudo, delimitando-se ao período que antecedeu a institucionalização pela Lei n. 12.433, de 29 de junho de 2011.

    Trata-se aqui, por um lado, de reunir e examinar documentos de tipos diversos (relatórios, diretrizes, exposições de motivo, entre outros) que expressem tomadas de posição sobre a questão no espaço nacional e internacional e, por outro lado, reunir e examinar versões diversas da legislação.

    Os objetivos do trabalho desenvolvido neste eixo foi construir a cronologia, evidenciando os caminhos percorridos na formulação de políticas educacionais para a população encarcerada; identificar os organismos e indivíduos envolvidos com a sua elaboração e com a sua aprovação no Congresso Nacional e sistematizar as respectivas tomadas de posição desses agentes. Esta

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