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Reformas estruturais e o estado de coisas inconstitucional
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Reformas estruturais e o estado de coisas inconstitucional
E-book319 páginas4 horas

Reformas estruturais e o estado de coisas inconstitucional

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Sobre este e-book

Pretende-se, nesta obra, analisar o modo de atuação das Cortes Constitucionais no enfrentamento de problemas estruturais. Nesse contexto, a partir dos resultados práticos obtidos na jurisprudência comparada (Estados Unidos, Argentina, Colômbia e Peru), o livro examina o grau de efetividade do reconhecimento do estado de coisas inconstitucional ECI pelo STF, tanto na ADPF nº 347/DF (que trata do sistema carcerário brasileiro), quanto nos vindouros processos estruturais que baterão à porta do Supremo Tribunal Federal STF.

Como forma de subsidiar a crítica sobre a aplicabilidade do ECI no sistema jurídico brasileiro, o livro traz um estudo analítico da structural reform (norte-americana) e do desenvolvimento do ECI na Corte Constitucional colombiana. Por se relacionar à cogente necessidade de remoção de estruturas burocráticas (que impedem a concretização de direitos fundamentais), esta obra submerge em temas vitais dos processos estruturais, os quais possibilitam ao STF lançar mão do reconhecimento do ECI no Brasil: a constitucionalização de direitos fundamentais na CF/88, a aplicabilidade dos direitos fundamentais, as omissões inconstitucionais e a imperiosa necessidade de correção das falhas estruturais.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento24 de out. de 2022
ISBN9786525256207
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    Reformas estruturais e o estado de coisas inconstitucional - Felipe Viégas

    1. PROCESSOS ESTRUTURAIS NO DIREITO COMPARADO

    Como é consabido, a jurisdição presta-se essencialmente ao enfrentamento de problemas político-sociais que reclamam soluções jurídicas eficazes. É o que se denota das ações judiciais individuais ou coletivas, marcadas por pretensões resistidas e relacionadas mormente a fatos passados entre sujeitos processuais.

    As faculdades de direito ensinaram, por décadas, que o litígio entre partes processuais demanda soluções objetivas do Poder Judiciário, conforme o brocardo da mihi factum, dabo tibi ius (dá-me o fato, dar-te-ei o direito), sendo-lhe constitucionalmente conferida a incumbência de indicar o vencedor e o perdedor do caso concreto. Esta, resumidamente, é a clássica visão do que se entendia até então por tutela jurisdicional.

    Dissemelhantemente ao referido modelo bipolarizado de jurisdição, o processo estrutural se apresenta como uma nova concepção de litígio. Edilson Vitorelli, ex-Procurador da República (MPF) e atual Desembargador do novel TRF-6, inclui essa nova espécie de processo coletivo como parte daquilo que cunhou de litígios irradiados³⁰, assim classificados em razão de a violação a direitos fundamentais e valores públicos afetar, de modo desigual e variável, tanto em intensidade, quanto em natureza, uma sociedade que se subdivide em vários subgrupos, in verbis:

    De todos os tipos de litígios coletivos, certamente os que representam o maior desafio ao desenvolvimento de um modelo processual são os irradiados. A raiz do problema, em termos simples, reside no fato de que esses litígios não são apropriados para a resolução pela via do processo. Eles envolvem um vasto grupo de pessoas afetadas de modos distintos pela controvérsia, com visões diferentes sobre como ela deveria terminar e, por isso mesmo, com interesses diversos a serem representados no processo. Esses litígios estão de tal modo entranhados na vida da sociedade que é difícil elaborar um corte que permita simplificar a realidade para fazer com que ela caiba nos estreitos limites de um processo judicial que, espera-se, chegará ao fim um dia. Em razão dessas características, os litígios irradiados têm o mais elevado grau de complexidade e conflituosidade de todos os tipos propostos. (...) A construção de uma usina hidrelétrica em região habitada, a interrupção de uma conduta ambientalmente lesiva, mas importante para o desenvolvimento da economia local são exemplos rotineiramente verificados no Brasil.³¹

    Aqui, delineia-se a atuação contemporânea do Poder Judiciário, voltada à resolução de problemas estruturais, complexos e burocráticos, que tratam da falta de efetividade de direitos fundamentais ou valores públicos. Os processos estruturais, na referida classificação proposta por Vitorelli, são espécie do gênero litígios irradiados, pois seu objetivo específico reside em modificar o modus operandi de instituições estatais complexas, como o sistema de saúde, ou o funcionamento de escolas e creches.³²

    Aliás, cumpre-se destacar estar de há muito ultrapassada a visão de Poder Judiciário com azo em concepções estáticas, amarradas à premissa clássica de separação dos poderes - que não mais se justifica³³. Exige-se, ao revés, que a prestação jurisdicional tenha igual serventia na resolução de problemas estruturais, avultados na transgressão a valores públicos em litígios irradiados. Esta é a nova concepção de adjudication, consentâneo dos litígios estruturais e canalizado ao desembaraço de arquétipos burocráticos mitigadores de direitos essenciais.

    Ao juiz de hoje não mais se espera o simples olhar para trás, que visa remediar fatos pretéritos com o exercício da subsunção, mas defronte, apresentando soluções perenes para solver litígios irradiados, que se protraem no tempo. Examinando a difusão desta nova estrutura processual - que não mais se limita ao litígio entre dois adversários (um afirmativo e outro negativo) -, Chayes conclui:

    The litigation is often extraordinarily complex andextended in time, with a continuous and intricate interplay be-tween factual and legal elements. It is hardly feasible and, absent a jury, unnecessary to set aside a contiguous block of timefor a trial stage at which all significant factual issues will bepresented. The scope of the fact investigation and the sheervolume of factual material that can be exhumed by the discoveryprocess pose enormous problems of organization and assimilation. All these factors thrust the trial judge into an active role inshaping, organizing and facilitating the litigation. We maynot yet have reached the investigative judge of the continentalsystems78 but we have left the passive arbiter of the traditionalmodel a long way behind.³⁴

    Evolui-se, como propõe Chayes, da visão adversarial de lide - a partir da qual o magistrado, em prestígio aos princípios da demanda e da congruência, se vincula ao raciocínio binário de construção processual (inércia, causa de pedir, pedidos, coisa julgada, destinatários, etc.) -, para um modelo processual contemporâneo, aberto, cooperativo e dialógico.³⁵ O autor traz os elementos processuais de mudança e conclui que a complexidade dos bloqueios institucionais existentes acaba por conferir ao juiz um papel ativo que modela, organiza e facilita o litígio.³⁶

    Está evidente, pois, que o direito processual somente apresentará resultados de larga legitimidade quando buscar o seu fundamento de validade nos direitos e garantias fundamentais da Carta constitucional.³⁷ Não por outra razão que o art. 1º do Código de Processo Civil consagrou o princípio da supremacia da Constituição, ou, princípio da constitucionalização do código adjetivo civil.³⁸

    Nesta sonda, as decisões judiciais de cunho estrutural (structural injunction) mostram-se consentâneas com a reforma estrutural do Estado (structural reform), sendo a solução encontrada pelo Judiciário de chamar à ordem as instituições e os agentes competentes para solucionar disfunções de estruturas burocráticas, reconstruindo, colaborativamente, o modo e o âmbito de atuação de cada um no arranjo político-constitucional.

    Sobre o tema, Jobim defende que o processo estrutural, embora tenha a faculdade de utilizar institutos criados para reger processos bipolares e coletivos, provavelmente deverá ganhar num futuro próximo uma base teórica própria, indispensável para cessar os perenes questionamentos acerca da possível agressão das medidas estruturantes à teoria da tripartição dos poderes.³⁹

    Fato é que o abissal traço diferenciador dos processos estruturais reside na indicação do aperfeiçoamento institucional (desburocratização) de entes públicos e/ou privados como condição sine qua non para a concretização de valores públicos. Nestas dobras, conforme preconiza Vitorelli, as lides estruturais exigem do operador do direito uma visão jurídica prospectiva e resolutiva, de sorte que a tradicional disposição do direito obrigação-violação-reparação seja genuinamente rompida, a exemplo do que se viu na public law litigation estadunidense.⁴⁰

    Bem por isso, a correta análise da aplicabilidade das decisões estruturais no Brasil - notadamente com o hodierno reconhecimento de ECI pelo STF - pressupõe um acurado revolvimento histórico dos litígios estruturais, a partir da compreensão sobre a origem, evolução e resultados obtidos por este modo de atuação irradiado da jurisdição constitucional.

    1.1. ORIGEM DA STRUCTURAL INJUNCTION NO DIREITO NORTE-AMERICANO.

    É possível afirmar que os processos estruturais, tal como compreendido, têm nascedouro no sistema jurídico dos Estados Unidos.⁴¹ A rigor, os Tribunais norte-americanos foram pioneiros no uso de liminares estruturais, por intermédio das quais eram prescritas regras para a resolução de burocracias governamentais.

    A implementação dessas regras, acreditavam os juízes, eliminaria as violações constitucionais nos fundamentos dos processos. Neste sentido, copiosas decisões proferidas no século XX pela Suprema Corte estadunidense são adotadas pela doutrina para explicar a concepção e a evolução da Structural Injunction, tendo como baluarte as decisões exaradas no caso "Brown v. Board of Education of Topeka"⁴², que possuíam como plano de fundo a segregação racial no sistema educacional norte-americano.⁴³

    Contudo, para além da umbilical conexão do caso Brown com a tomada de decisões estruturantes, a melhor percepção acerca da adjudication suscita o prévio revolvimento cronológico da conjectura na qual a marginalização dos negros norte-americanos esteve inserida.

    A escravidão nos Estados Unidos (especialmente de africanos e afro-americanos) foi aceita e defendida, inclusive institucionalmente, desde o período colonial (1520), até os anos de seu apogeu, nos séculos XVIII e XIX. Sem dúvida, hoje é possível dessumir que a base da utilização de pessoas como propriedade foi reflexo direto da ambição humana pela prospecção e acumulação de riquezas.

    Em meados da década de 1850, havia uma clarividente divergência federativa acerca da continuidade da escravidão no país: de um lado, o Estados do norte, economicamente voltados ao comércio, apoiavam a abolição da escravatura como forma de alargamento do nicho consumidor; de outro, os Estados do sul, ainda apoiados na produção agrícola (sobretudo de algodão), defendiam fervorosamente a escravidão, dada a necessidade de força de trabalho para produzir insumos com baixo custo.⁴⁴

    Neste mesmo período, mas já no âmbito judicial, a Suprema Corte amiudadas vezes referendou atos discriminatórios praticados pelos Estados federados, pautando-se no silogismo de que a escravidão seria um instituto protegido pela própria Constituição, a exemplo do que se viu no paradigmático caso Dred Scott v. Stanford (1857).⁴⁵

    Dred Scott era um cidadão norte-americano, conhecido por ter guerreado pela fruição do direito constitucional à liberdade e à igualdade junto ao Judiciário estadunidense. A ideia desenvolvida na ação ajuizada por Scott era clara e objetiva: o autor reconhecia a sua anterior condição de escravo no Estado de Missouri, mas defendia que a ulterior modificação de sua residência para Estados que proibiam a escravidão teria a aptidão de abolir em definitivo a inicial qualidade de propriedade, isto é, o Scott entendia que deveria ser considerado homem livre, ainda que precisasse retornar ao território dos Estados até então escravistas.

    Bem por isso, ao regressar para o sul dos Estados Unidos e ter sua liberdade de logo contestada, Scott litigou contra a viúva de seu antigo proprietário, saindo vencedor em primeira instância, no ano de 1850. Contudo, no segundo grau de jurisdição, a decisão vestibular foi reformada e a Corte estadual decidiu que Scott permaneceria escravo (tese da propriedade familiar), já que teria retornado a Estados do sul por ato voluntário, com deliberada consciência dos riscos

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