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Filosofia da Educação e Formação de Professores: Contribuições da Filosofia para Pensar a Educação
Filosofia da Educação e Formação de Professores: Contribuições da Filosofia para Pensar a Educação
Filosofia da Educação e Formação de Professores: Contribuições da Filosofia para Pensar a Educação
E-book373 páginas5 horas

Filosofia da Educação e Formação de Professores: Contribuições da Filosofia para Pensar a Educação

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Sobre este e-book

Esta coletânea de textos é resultado de dois felizes encontros.
O primeiro ocorrido em abril de 2015 e o segundo, no mês de maio de 2016. Em ambos, o objetivo era o mesmo: promover a alegria da conversa, do debate e do encontro entre pesquisadores, professores e alunos, na intersecção da filosofia com a educação. Este livro é, portanto, a materialização desses dois momentos que agora podem ser revisitados a partir da seleção de textos apresentados no evento, além de outros que se somaram ao primeiro volume da série Seminários. Esta série compõe a Coleção Filosofia & Formação, publicação decorrente da parceria entre o Grupo de Filosofia da UFG, Campus Catalão e a Paco Editorial. Neste primeiro volume da série o leitor encontrará cinco seções em que o elemento comum entre elas é o investimento filosófico sobre a questão da formação, respeitando a multiplicidade dos pensamentos evocados em cada uma das abordagens. Transversalmente, foram postos em movimento o pensamento pedagógico contemporâneo e sua relação com as filosofias de Hannah Arendt, Emmanuel Mounier, Friedrich Nietzsche e Jean Jacques Rousseau.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento26 de set. de 2017
ISBN9788546208302
Filosofia da Educação e Formação de Professores: Contribuições da Filosofia para Pensar a Educação

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    Pré-visualização do livro

    Filosofia da Educação e Formação de Professores - Bruno Gonçalves Borges

    final

    APRESENTAÇÃO

    Esta coletânea de textos é resultado de dois felizes encontros. O primeiro ocorrido em abril de 2015 e o segundo, no mês de maio de 2016. Em ambos, o objetivo era o mesmo: promover a alegria da conversa, do debate e do encontro entre a filosofia e a educação. Nasceu assim o Seminário de Filosofia e Formação de Professores, dedicado ao diálogo da filosofia com os problemas educacionais a partir das necessidades dos cursos de formação de professores de uma universidade pública em uma cidade do interior goiano. Na sua primeira edição o seminário reuniu pesquisadores dedicados à articulação dos pensamentos de Hannah Arendt e Friedrich Nietzsche com a educação, e na segunda estiveram presentes pesquisadores dedicados a apreender a contribuição educativa das filosofias de Emmanuel Mounier e Jean-Jacques Rousseau.

    Este livro faz parte da série Seminários, que por sua vez compõe a Coleção Filosofia & Educação, publicação decorrente da parceria entre o Grupo de Filosofia da Universidade Federal de Goiás, Campus Catalão e a Paco Editorial. Esta série tem como objetivo divulgar os resultados desses valorosos encontros, como uma forma de revisitar a qualquer tempo as discussões e reflexões realizadas no âmbito do seminário, desafiando o impetuoso distanciamento que se produz pouco a pouco depois de momentos tão intensos. Os textos aqui apresentados são frutos das exposições dos pesquisadores, bem como de autores convidados que enriquecem o debate em torno da filosofia da educação e a formação de professores.

    Neste primeiro volume da série Seminários, o leitor encontrará cinco seções cujo elemento comum é o investimento filosófico sobre a questão da formação respeitando a multiplicidade dos pensamentos evocados em cada uma das abordagens. Transversalmente, foram postos em movimento o pensamento pedagógico e sua relação com as filosofias de Hannah Arendt, Emmanuel Mounier, Friedrich Nietzsche e Jean-Jacques Rousseau.

    Por fim, este livro é, acima de tudo, uma homenagem ao nosso amigo, o professor doutor Sérgio Pereira da Silva, quem corajosamente ousou realizar um evento de filosofia e educação, rompendo as limitações locais e transpondo barreiras da cultura da formação de professores instando a comunidade acadêmica regional a um debate que transcendesse o movimento aparente educacional. Fez isso ao mesmo tempo em que propunha um rigor teórico nas atividades do evento, acolhendo perspectivas filosóficas diversas e não apenas aquelas alçadas ao posto de preferência. Animado com a criação da coleção decorrente dos trabalhos do seminário e trabalhando diretamente neste primeiro volume, o nosso amigo Sérgio não pôde ver a concretização deste livro, por ter deixado este mundo no dia 21 de maio de 2016. Nesta publicação, destaca-se, especialmente, o artigo de sua autoria intitulado Diógenes e Nietzsche no julgamento das ‘ações afirmativas’ na educação brasileira que lança pistas para algum futuro descontente e corajoso, assim como ele, capaz de dar continuidade às suas suspeitas. Que suas qualidades inspirem a construção de novos valores pautados em uma ética afirmativa da vida, assim como ele mesmo defendia, ao ser um filósofo que amava a vida!

    Uma boa leitura!

    CAPÍTULO 1

    DIÓGENES E NIETZSCHE NO JULGAMENTO DAS AÇÕES AFIRMATIVAS NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA

    Sérgio Pereira da Silva (in memoriam)

    Considerações iniciais

    Para evitar a óbvia e fácil interpretação de que seria impossível tanto por causa do tempo quanto do espaço juntar, numa praça pública brasileira, os filósofos Diógenes de Sinope¹ (412-323 a.C.) e o alemão F. W. Nietzsche (1844-1900), de Röcken², e simular um confronto de ideias que tornasse públicas diferentes perspectivas das ações afirmativas (AFs), no Brasil, sobretudo das últimas duas décadas, optamos por colocá-los juntos num julgamento ficcional, porém verossímil, através do qual construiremos nossa argumentação teórico-científica. Em sendo este o nosso procedimento, o que poderíamos dizer das reações destes filósofos diante dos discursos e das práticas em torno das AFs que observamos, há décadas, na sociedade brasileira, em geral, e na educação, mais específica e recentemente?

    Não faltariam, por mais paradoxal que parecesse, a indiferença, os risos, as gargalhadas, as sonoras flatulências, o escárnio, os gestos obscenos, as críticas mordazes, pungentes e pertinentes, com sua probidade e transparência sui generis etc., que ruborizariam, escandalizariam e divertiriam os transeuntes e os cidadãos que ali estivessem para ouvi-los e assisti-los.

    Nosso capítulo, inspirado nos estilos filosóficos de Diógenes e de Nietzsche, será uma tentativa satírica, rebelde e insolente, própria de quem não receia a contenda, de julgar e desconstruir as AFs reativas. Ora, esta ousadia nos coloca em sintonia com estes dois filósofos outsiders³, não sem um misto de prazer e receio. Deste modo, pedimos ao leitor que releve nossas limitações literárias e descritivas e libere seu espírito para voos dionisíacos e reflexões politicamente incorretas, incomuns entre a grande maioria dos pensadores da educação brasileira.

    Afinal, diante de tantos defensores das AFs, no atual (2016) cenário da educação brasileira, seremos os acusadores, reconhecidamente tão necessários para o escrutínio da verdade, porém não facilmente aceitos, posto que, dialeticamente, operam a negação⁴, fazem o serviço sujo da crítica e da denúncia. Tudo isso visando convencer o juiz e os jurados, além de prender a atenção da plateia, constituída, em grande parte, por indivíduos infantis, psicológica e emocionalmente falando, ou idealistas, do ponto de vista filosófico. Tarefa difícil, porque estes grupos desejam o conforto hermenêutico e a ilusão comum aos amantes dos contos de fadas e dos filmes com happy endings.

    Desde o início, quando pensamos o problema dessas reflexões, os ímpetos irreverentes, filosóficos e artísticos de Diógenes e Nietzsche remeteram-nos a uma obra ficcional que, para alguns leitores, por aproximar-se da literatura, não seria um texto acadêmico e científico. Preocupados com esta possível interpretação, argumentamos que uma fiel e coerente reflexão, apoiada nestes filósofos, não poderia ser transcrita através de um estilo hermético e sistematizado, comum ao discurso filosófico acadêmico e ao científico. Entretanto, destes não nos distanciaremos, na prática, porque nossas reflexões trazem a teoria e a empiria explicitamente, ou não, em cada frase, em cada parágrafo deste capítulo. Há, ainda, o fato de que Nietzsche e Diógenes são filósofos que afirmam a vida, o cotidiano e os valores imanentes, em detrimento do dualismo idealista platônico que afasta o sensível do mundo das ideias, das reflexões.

    Do mesmo modo, alertamos o leitor não familiarizado com as filosofias de Diógenes e de Nietzsche, e propenso a interpretações preconceituosas, que os conceitos e as deduções que o escandalizarem terão o sentido e serão inferências intrínsecas a estes pensadores outsiders e cínicos⁵ o mais fielmente possível imersos nos seus pensamentos e nas tragédias de suas existências.

    Nossas reflexões blasfemas, na estruturação deste capítulo, terão início com uma primeira seção provocadora acusando a inexistência, no Brasil atual, de promotores (filósofos) que possibilitem um julgamento tão importante, o que nos força a buscar em tempos e locais tão diferentes nossas referências filosóficas. Em seguida, há três seções que caracterizam momentos diferentes do julgamento (O réu: as ‘ações afirmativas, As ‘ações afirmativas’ (AFs) na educação brasileira, Promotores cínicos e blasfemadores, A reatividade da defesa e "Tragédia e crueldade versus piedade: a argumentação da promotoria e o ardil emocional da defesa), confluindo para os juízos conclusivos ou considerações finais". O leitor perceberá que nossas reflexões encontram abrigo nos e identificação com os argumentos da promotoria. Esta identificação ocorre em função da identificação teórica e existencial do autor com estes filósofos e também porque há no estado da arte sobre as AFs, no Brasil excessivo número de defensores, carecendo-se, portanto, de críticas e dissensos.

    O julgamento: onde estão os promotores?

    Questões assim tão polêmicas exigem uma promotoria ousada e que saiba provocar grandes adversários, a defesa, diria Nietzsche. Onde estão eles – os grandes adversários e os grandes promotores? Certamente esta promotoria necessita de superadvogados (super-homens!), jamais reles repetidores e adeptos dos clichês filosóficos, jurídicos ou legais. Os promotores não originais, os pouco ousados, os não esclarecidos, os amantes do consenso, os ávidos pelo senso de pertença identitária a um grupo ou a uma corporação, os carreiristas acadêmicos, os políticos de um modo geral não possuem vontade nem condições morais, intelectuais e profissionais para sustentarem a acusação que será feita.

    Portanto, excluídos deste empreendimento questionador e descrutinador, já de início, estão os que resistem às aventuras no cume das altas montanhas, os idealistas, os dogmáticos, os crentes etc. A promotoria, assim constituída, com propósitos nobres, para este caso específico, há de ser excelente, provocadora, conhecedora dos limites das ações gestoras da res pública, assim como sensível às contradições e às limitações contingentes da existência humana. De outro modo, sem o conhecimento sobre gestão, sobre os ardis da psiché e da vontade de poder⁶, não conseguiremos eludir os escorregadios e deturpadores caminhos do idealismo.

    Queremos, para compor a promotoria, grandes profissionais da axiologia e do direito que queiram filosofar como o fazem os espíritos livres⁷! Ou seja, grandes promotores assim precisam ser.

    Ah, mas como existem tão poucos filósofos e juristas deste tipo no Brasil! Como são pouquíssimos os que filosofam ou filosofaram sobre a educação brasileira, desconstruindo, radicalmente, as obviedades, gerando espantos e desconfortos, produzindo dissensos! Às dezenas são aqueles que propuseram e defenderam panaceias, consensos (sensos comuns?). Um, ou outro, ousou, com a virulência que cabe a um amante da sabedoria, desconstruir estas panaceias. Obviamente, suas argumentações não tiveram eco, tampouco este ousado livrou-se da pecha de moralista, reacionário etc. (Mello, 1980, 1986).

    Os críticos ferozes, onde estão? Não vemos filósofos ferozes e cruéis (no viés nietzschiano do conceito de crueldade) como suas funções o exigem! Nestas terras tupiniquins sobram historiadores de e professores da filosofia; mas teóricos e teólogos existem aos milhares: nas artes, nas ciências, nas humanas (Japiassu, 1997). E, se faltam-nos filósofos, é justamente porque há deuses em demasia!

    E o que dizer da Filosofia da Educação? Ocorre o mesmo dilema: estamos impregnados de arroubos sociológicos, teológicos, pedagógicos, políticos, antropológicos, psicológicos etc., definindo, reativa e piedosamente, os rumos da educação neste país (Saviani, 1989, 2008; Gadotti, 1988, 1990⁸). A promotoria precisará das garras de dois filósofos stricto sensu analisando um fenômeno educativo. Se não temos, no Brasil, a ousada e viril filosofia da qual necessitamos, busquemos alhures, na Grécia antiga e na Alemanha do século XIX.

    De início, a estratégia da promotoria será martelar os otimistas porque ela crê na premissa básica de que as opiniões otimistas⁹ (as hegemônicas, de consenso, sempre universalistas e salvacionistas), além de serem fracas, nos quesitos radicalidade política, pedagógica, existencial, amadurecimento humano e psicológico, não se constituem como um instrumento epistemológico e argumentativo para a empreitada proposta.

    A tese da promotoria (posto que, em um julgamento, o termo hipótese, como elemento importante da estrutura de uma argumentação científica, poderia ensejar dúvidas, suspeitas e insegurança próprias de um argumento frágil) será a de que as políticas afirmativas na educação brasileira que nos são contemporâneas, principalmente nas duas últimas décadas, estão impregnadas de reatividade, na forma de um desprezo-pelo-avesso, de um desrespeito-pelo-avesso ou, ainda, de um apequenamento-pelo-avesso das pessoas para as quais são criadas: os excluídos e os oprimidos. Ora, isso se dá exatamente porque seus fundamentos, notadamente platônico-cristãos, ou marxistas cristãos, não são do âmbito das ações cri-ativas, mas o das re-ativas (Nietzsche, 2006), assunto que será aprofundado em outra seção. A defesa das AFs, face aos argumentos já disponibilizados e publicizados, trouxe evidências em demasia e, portanto, não faltarão brechas e elementos nos quais a promotoria encontrará o caráter reativo dos defensores.

    A partir daquelas brechas e daqueles elementos, a tese da promotoria sustenta que as AFs, de matiz reativa, no afã de produzirem redenção e justiça históricas, confundem e impedem o surgimento de outro tipo de afirmação, uma que seja mais efetiva, que estimule uma formação para a autossuperação, para o resgate da vontade de potência inerente a todo ser humano. Referimo-nos a uma afirmação sem emoções pueris e modismos que, com a mesma velocidade com que chegam, se vão, levados e superados pela falta de consistência, probidade e ousadia teóricas e práticas.

    O réu: as ações afirmativas

    No Brasil, as últimas décadas, 1980-2010, período no qual se concentra a formação acadêmica do autor, além da sua atuação como docente de licenciaturas, avaliador dos cursos de Pedagogia e Filosofia e pesquisador, ficaram carentes de uma séria crítica e de uma criteriosa análise do estado da arte das publicações e pesquisas sobre as AFs na educação, mas também em outras áreas. Não é que sejam poucas as publicações em livros, periódicos, dissertações de mestrado e teses de doutoramento sobre estas ações, é que elas evidenciam a hegemonia de humores e tendências políticas salvacionistas e redentores como reação oficialmente plausível e pertinente às seculares exclusões de grupos, de classes, de etnias etc. ocorridas neste país. A educação, tanto para quem dela usufrui quanto para quem a oferece, surge como panaceianos projetos políticos e sociais, discursivamente tão eivados de indignação emotiva, de culpa de classe, de arroubos pietistas, entre outros atributos de uma classe média acadêmica politicamente correta¹⁰.

    Entre as principais teses que sustentam a defesa das AFs, duas são fundamentais. A primeira é a de que o processo de constituição do Estado brasileiro (Colônia, Império e República) foi marcado pela exploração, pela opressão dos povos nativos e africanos, pelo assalto às riquezas naturais, mantendo a nação brasileira como uma eterna colônia com a função de prover, através das suas riquezas naturais (agricultura, sobretudo), o mundo desenvolvido (Prado Jr., 1972). Acresce-se a isso um fenômeno social brasileiro, porém relacionado à lógica universal do capital, que diz respeito à exclusão social das massas trabalhadoras oriundas do êxodo rural brasileiro, em meados do século XX. A segunda tese, de natureza político-pedagógica (Freire, 1987), traz, além da realidade da exclusão e da opressão, a crítica freireana sobre a construção das consciências do oprimido e a do opressor pela dialética operada nas relações de produção da vida material. Nestas relações, o oprimido torna-se excluído não somente da riqueza material, mas, sobretudo, da cultural, ou seja, fica sem acesso ao conhecimento que lhe proporcionaria condições sociais de sobrevivência digna.

    Ora, as interpretações desses fenômenos sociais (opressão e exclusão) feitas pelos historiadores, antropólogos, economistas, sociólogos, filósofos, educadores, teólogos etc. brasileiros, no século passado, usualmente exacerbaram, segundo a promotoria, a dimensão do drama colonizador pela ação de uma concepção político-reativa, salvacionista e subjetiva, responsável, sobretudo, por estratégias redentoras no âmbito da educação, entre as quais se inscrevem as AFs, aqui em julgamento.

    Os grupos politicamente corretos e progressistas se juntaram à luta redentora das AFs, que objetiva: a) deslegitimar a apropriação e a destruição históricas dos bens materiais, culturais, religiosos etc. dos grupos dominados; b) operar a redenção através de leis e ações que devolvam os ou proporcionem acesso dos oprimidos’ e excluídos" aos bens conquistados, entre os quais se enfatiza o direito universal à saúde, à habitação, ao emprego e à educação.

    A promotoria, no julgamento das AFs, entende, inicialmente, que os redentores, que buscam corrigir injustiças de batalhas passadas, veem a história humana pelo viés civilizatório e moral. Ainda, utilizam a memória de forma reativa, mantendo-se fixos e ruminando detalhes e momentos de derrotas. Ora, esse tipo de memória que sustenta a moral do ressentimento¹¹, ocupa, entre os redentores, relevância fundamental (Barrenechea, 2006; Nietzsche, 2006), em oposição ao esquecimento que, pelo contrário, representa a atitude ativa, por excelência, daquele que supera uma eventual derrota e se prepara para a próxima batalha, de olho no presente e exteriorizando sua vontade de vida e de potência.

    A História do Brasil, na perspectiva salvacionista e idealista, obviamente reativa, traz uma ilustração apropositada. Ao invés de estimular nos oprimidos a exteriorização de sua vontade de poder (crueldade ativa, conceito que será aprofundado mais adiante) e todo seu potencial criativo e bélico, os pietistas reativos perdem demasiado tempo fustigando atitudes e pensamentos ativos que buscam ações originais e ousadas, acusando-as de reacionárias e opressoras.

    Na realidade, porém, o que ocorreu foi a vitória dos projetos políticos lusitano, trópico-imperial e republicano (projetos das classes dominantes da época que são discutíveis, sim, mas legítimos, do ponto de vista da moral ativa das guerras, com seus procedimentos e com sua crueldade ativa) que destruíram o idílico mundo do bom selvagem tupiniquim, das florestas sagradas e de suas riquezas até então intocadas. Estas argumentações ruborescem o homem do ressentimento porque ele crê que a crueldade é sempre má, destituída de racionalidade e sonha com uma existência sem guerras ou, na sua impossibilidade, aceita exceções como as guerras e as dominações humanas, dialogais, civilizadas e – pasmem! – respeitosas, quiçá que agradem o dominado. Horror! Horror!

    Deste modo, a defesa utiliza os lamentos e a nostalgia dos reativos, ora revestidos com explícitos argumentos morais religiosos, ora político-ateus e revolucionários, porém, ainda assim, eivados de moralidade transcendente, sobretudo a cristã. A promotoria, além de ter como referência as filosofias e o estilo de Nietzsche e Diógenes, se inspira na sociologia e na axiologia, inferidas de ambos, sobretudo do pensamento nietzschiano (Nietzsche, 2006), com nuanças trágicas, suas dinâmicas de conquista de território, de espólio etc. Assim sendo, os promotores argumentam que as AFs, de matiz reativa, são exemplos de militâncias e de projetos políticos que desconhecem, ignoram, subestimam ou negam valores ativos, que eram dominantes nos tempos do mito e da tragédia gregos.

    A promotoria entende que convém o esclarecimento e a ênfase de que somente as AFs, de matiz reativa, com seus equívocos e suas contradições, são o foco da promotoria, mesmo porque nem todas as AFs são reativas e isto ficará esclarecido ao longo do julgamento. Este esclarecimento buscou distensionar os jurados e melhorar a imagem, inicialmente austera, dos promotores.

    Porém, este distensionamento durou pouco, apenas até que quatro indagações desta promotoria, à guisa de provocação e polêmica, já no início do julgamento, fizeram tremer os antigos imperativos da moralidade cristã-marxista-salvacionista: 1) a nação brasileira atual deve, ou não, assumir o ônus pelos descaminhos histórico-político-culturais que o Estado acumulou em cinco séculos de ocidentalização desastrada? 2) é legítimo ou moral corrigir os erros do passado em termos de devolução material ou cultural do que foi espoliado, conquistado, ou negligenciado pelos vencedores nas batalhas que constituíram a história do país? Não seria uma concessão humilhante do conquistador, reforçando a aura de excluído do conquistado? Quais são os limites da moral quando ela adentra o território da guerra ou da ganância, da vontade de potência e se arvora a decidir sobre o futuro do espólio conquistado?

    Antes que descrevamos as características cínicas e blasfemas que a promotoria assumirá, e que são responsáveis pelas duas indagações do parágrafo anterior, consideramos pertinente uma breve descrição e análise do processo de implementação das AFs.

    As ações afirmativas (AFs) na educação brasileira

    Em sua dissertação de mestrado em educação, A Política de cotas na Universidade Federal de Goiás (UFGINCLUI): concepção, implementação e desafios, Rosa (2013)¹², no CAPÍTULO II, produz um interessante e esclarecedor panorama das políticas de AFs e do debate sobre o acesso à educação superior no Brasil.

    A autora, através de um histórico da criação e da implementação das AFs no Brasil, esclarece que estas visam coibir qualquer manifestação de discriminação, não apenas racial, mas também aquelas que prejudiquem o indivíduo por causa de gênero, idade, origem nacional e compleição física. O conceito de AFs, segundo Rosa (2013, p. 72), remonta aos anos 1940, nos EUA,

    quando o então presidente Franklin Roosevelt proibiu, via decreto, a discriminação racial contra negros nos processos de seleção pessoal para ocupação de cargos no governo.

    No Brasil (2003, p. 72), objetivando a não discriminação dos trabalhadores brasileiros, as AFs aparecem nas normas trabalhistas chamadas de Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943, art. 354:

    A proporcionalidade será de 2/3 (dois terços) de empregados brasileiros, podendo, entretanto, ser fixada proporcionalidade inferior, em atenção às circunstâncias especiais de cada atividade.

    Em relação à discriminação de gênero, a mesma CLT, no art. 373-A procura corrigir distorções que prejudiquem o acesso da mulher ao mercado de trabalho.

    A Carta Cidadã, da Constituição Federal de 1988, no seu art. 37, inciso VII, por sua vez, reserva um percentual de cargos e empregos públicos para os portadores de deficiência física, o que é extensivo às empresas privadas, de acordo com a Lei 8.213 de 1991. Segundo Rosa (2013, p. 73), em 2001, o

    Ministério da Justiça criou vagas para que (20%) negros, (20%) mulheres e (5%) portadores de deficiências físicas ou mentais pudessem trabalhar, sem vínculo empregatício, no próprio ministério.

    Além disso, em 2002, visando preparar os estudantes negros para o ingresso no Instituto Rio Branco, o governo federal criou bolsas de estudos para os que se autocaracterizassem como negros, pardos ou mulatos.

    A autora ainda cita outra lei, a 12.288, que criou o Estatuto de Igualdade Racial, em cujo art. 1º se compromete a ser

    destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.

    Mais especificamente na educação, em 2002, surgiu o Programa Diversidade na Universidade, através da Lei 10.558, com a intenção de ser um instrumento de inserção social dos afrodescendentes e dos povos indígenas na educação superior brasileira. Estabelece o art. 1º desta lei que

    Fica criado o Programa Diversidade na Universidade, no âmbito do Ministério da Educação, com a finalidade de implantar e avaliar estratégias para a promoção do acesso à educação superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, especialmente dos afrodescendentes e dos indígenas brasileiros.

    A operacionalização destas conquistas engendrou polêmicas AFs, no que diz respeito ao acesso e à permanência nas universidades públicas brasileiras. Por exemplo, o projeto de Lei 3.627, que criou, segundo Rosa (2013), o ‘Sistema Especial de Reservas de Vaga’ para estudantes egressos de escolas públicas, em especial negros e indígenas, nas instituições públicas federais de educação superior (p. 77-78).

    Entretanto, foi através do Projeto de Lei n. 180, da deputada Nice Leão, em 2008, que foram unidas todas as demandas em relação à criação de cotas nas instituições de ensino superior brasileiras. A citação abaixo sintetiza:

    O Projeto de Lei 180/2008 estabeleceu um percentual de 50% de vagas nos processos seletivos para estudantes que tivessem cursado o ensino médio integralmente em escolas públicas. Além da cota para os egressos de escola pública, ficou instituído que 50% dessas vagas deveriam ser destinadas aos estudantes cujas famílias possuíssem renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo per capita. Também ficou estabelecido que as vagas deveriam ser preenchidas por negros, pardos e indígenas, obedecendo à proporção desses grupos étnicos em cada estado da federação, de acordo com dados do IBGE (Rosa, 2013, p. 78)

    Além de nestes dados empíricos e teóricos, este capítulo, por fim, apoia-se nas informações coletadas na pesquisa, em andamento (2016), intitulada

    Estudo das dissertações de mestrado e das teses de doutorado que tematizam as concepções e as práticas das ações afirmativas na educação brasileira das últimas décadas.

    Esta pesquisa tem corroborado as reflexões sobre o caráter ativo ou reativo das AFs, à luz da filosofia contemporânea. Alguns elementos indicativos das contradições e limitações das AFs, que neste capítulo foram apontados, estão sendo reiterados e evidenciados nessa pesquisa: algumas ações são ativas e outras, em maioria, são reativas e o martelo, assim como o cajado, da promotoria mira apenas este último tipo de ações.

    A título de exemplo, enfatiza-se uma ação e um grupo específico que têm sido relevantes na universidade brasileira, nas últimas duas décadas. Trata-se dos alunos que adentraram a universidade por meio das cotas ou das reservas de vagas para indivíduos que, pelos méritos curriculares, sempre estiveram à margem das universidades brasileiras.

    O desprezo, o apequenamento e o desrespeito, pelo avesso, efetivados, na prática, por esta inclusão são evidenciados na ausência de estrutura física, curricular e pedagógico-administrativa destas instituições de ensino superior para receber, nivelar e manter esses alunos nos aspectos cultural, técnico e epistemológico acadêmicos. Via de regra, são alunos que não têm sequer conhecimento de um nível de um razoável ensino fundamental e, apesar disso, são jogados em uma sala de aula e expostos às comparações e ao escárnio de colegas e – pasmem! – ao humor, nem sempre solidário, dos docentes. A desorganização dessa inclusão e seu caráter político, uma vez que o jeitinho fazer para inglês ver destas iniciativas salta aos olhos, não oferecem as condições básicas para que o incluído possa acompanhar o ritmo e processo ensino-aprendizagem que acontece em sala de aula. Os docentes argumentam que não podem baixar o nível do curso e que os próprios alunos têm que correr atrás do conteúdo perdido na sua formação básica. Enfim, ocorre uma exclusão ao invés de uma inclusão!

    E desse mesmo modo ocorre a inclusão do aluno portador de necessidades especiais. Suas limitações cognitivas são desfavoráveis ao ritmo e à complexidade de conteúdos técnicos, humanos etc., oferecidos ao aluno comum, o que faz eclodir o pietismo emocional e o psicológico dos que promovem as AFs para este grupo específico. Neste caso, o desprezo, o apequenamento e o desrespeito, pelo avesso, adquirem uma sutileza imperceptível ao senso comum acadêmico porque falam mais alto os determinantes subjetivos inconscientes dos gestores e atores destas ações. No afã de firmarem o respeito à diferença, o que sucede é uma ode à normalidade e não uma à alteridade. Na prática, não são respeitados os limites destes portadores de necessidades especiais (que em muitos casos são limites impeditórios) e é prometida, ou cobrada, uma performance cognitiva idealizada.

    Não raro, diplomas e chancelas acadêmicas são conferidos aos discentes que não possuem condições objetivas ou subjetivas de aquisição da complexidade dos conteúdos do ensino superior, o que constitui uma mentira acadêmica, profissional e política. A mendacidade desta atmosfera pietista é dissimulada através de um teatro romântico, ingênuo e culpado dos atores destas ações afirmativas. Seu caráter mendaz mantém-se, ainda e na melhor das hipóteses, quando presente não na má-fé política, não na incompetência dos gestores,

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