Jean Piaget: Razão e Adaptação
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Jean Piaget - Marília Gouvea de Miranda
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS
PREFÁCIO
Acompanhei, na condição de orientador, a realização do trabalho que deu origem a este livro, cuja versão original foi apresentada como tese de doutorado em defesa pública realizada no dia 4 de outubro de 1991. Já faz, portanto, quase 30 anos que a pesquisa foi concluída. Por que, então, o livro não foi publicado àquela época quando o construtivismo recebia grande difusão surfando na onda das reformas educativas neoconservadoras que emergiam no quadro político-econômico do neoliberalismo? A autora, em suas memórias póstumas
à defesa da tese, recorre a Brás Cubas para dizer que, diante da tese publicada em livro, receava ficar privada da estima dos graves adeptos de Piaget nada propensos a aceitar estudos críticos sobre o autor instituído como sua máxima referência teórica; e receava, igualmente, ficar privada do amor dos críticos para os quais o que podia ser dito da teoria de Piaget já estava dito e seria coisa fútil uma nova crítica. Assim, a publicação foi sendo sempre adiada.
De minha parte, fui agradavelmente surpreendido com a notícia da publicação da tese acompanhada do gratificante convite para prefaciar o livro. E como, parafraseando Brás Cubas, espero angariar para esse importante livro as simpatias da opinião tanto dos adeptos como dos críticos de Piaget, o primeiro remédio é fugir a um prefácio longo.
Para começar – já que escrevo na ocasião da festividade do Natal – eu parafrasearia também as Escrituras que exclamam Oh! Felix culpa
, referindo-se ao pecado original que propiciou que o próprio filho de Deus se encarnasse fazendo-se homem para, com seu sacrifício, salvar a humanidade do pecado. Digo, então: Oh! feliz adiamento
, porque o lançamento desta obra hoje se revela bem mais propício do que há 30 anos. Com efeito, àquela época a disputa era entre duas visões científicas sobre como compreender o desenvolvimento da inteligência para, a partir daí, orientar a atividade educativa: as visões piagetiana e vigotskiana. Agora, a disputa é do obscurantismo beligerante
, ou seja, a negação da ciência contra a visão científica.
Assim, como mostrei no livro História das ideias pedagógicas no Brasil (SAVIANI, 2019, p. 434-436), partindo da biologia, Piaget, respaldado em um kantismo evolutivo
, desenvolve uma teoria do conhecimento cuja ideia central é a ação como ponto de partida do conhecimento. A inteligência é concebida não como um órgão contemplativo, mas como um mecanismo operatório. Como em Kant, em Piaget o sujeito epistêmico é um sujeito universal que constrói esquemas de apreensão dos objetos ou acontecimentos. Esses esquemas são, fundamentalmente, de dois tipos: sensório-motor e conceitual, cujas diferenças nos permitem compreender por que a inteligência sensório-motora não chega a se constituir em pensamento lógico.
O entendimento de que a fonte do conhecimento não está na percepção, mas na ação, conduz à conclusão de que a inteligência não é um órgão que reproduz os dados da sensibilidade, mas que constrói os conhecimentos. Está aí a origem da denominação construtivismo
, que acabou tendo grande fortuna no campo da pedagogia. No entanto, ao ser apropriado nesse novo contexto, o construtivismo se metamorfoseou, o que justifica a denominação de neoconstrutivismo. Isso porque, nessas novas condições, a ênfase das pesquisas de Piaget e de seus colaboradores e seguidores, que buscavam compreender cientificamente o desenvolvimento da inteligência, cede lugar a uma retórica posta em sintonia com a visão pós-moderna incrédula dos metarrelatos, inclusive os de ordem científica, privilegiando uma narrativa de sentido pragmático.
Nesse discurso neoconstrutivista, tão disseminado nos dias de hoje, são pouco frequentes as menções aos estádios psicogenéticos (sensório-motor, pré-operatório, operatório concreto, operatório formal). Dir-se-ia que, recordando as quatro diferenças estabelecidas por Piaget entre a inteligência sensório-motora e a inteligência conceitual, mencionadas por Zélia Ramozzi-Chiarottino (1984, p. 58), a sensório-motora predomina. A retórica neoconstrutivista funciona como um filme em câmara lenta que representaria uma imagem imóvel depois da outra, em vez de chegar à fusão de imagens
[primeira diferença]; tende ao êxito e não à verdade: encontra sua satisfação na conquista do fim prático perseguido e não na construção ou na explicação
, sendo puramente vivida e não pensada ou representada de forma organizada
[segunda diferença]; ela só trabalha sobre as realidades, os índices perceptivos e os sinais motores, e não sobre os signos, os símbolos e os esquemas representativos ou os conceitos verdadeiros que implicam inclusão de classes e relações
[terceira diferença]; ela é essencialmente individual, por oposição aos enriquecimentos sociais adquiridos graças ao emprego dos signos
[quarta diferença].
Compreendem-se, então, as afinidades do discurso neoconstrutivista com a disseminação da teoria do professor reflexivo
, que valoriza os saberes docentes centrados na pragmática da experiência cotidiana. E compreende-se, também, o elo com a chamada pedagogia das competências
.
Ora, nesse contexto, cai como uma luva a publicação deste livro de Marília Gouvea de Miranda, Jean Piaget: razão e adaptação, que realiza uma leitura competente, penetrando por dentro da obra de Piaget. Para tanto, após uma Introdução em que situa, para os leitores, a proposta geral da obra, reconstitui, no primeiro capítulo, a trajetória biográfica pela qual o biólogo Piaget, deparando-se com a questão das condições de possibilidade do conhecimento, envereda pela filosofia kantiana, transformando-se num epistemólogo que acaba por converter a epistemologia, de uma teoria filosófica do conhecimento como se apresentava em Kant, em uma ciência positiva do desenvolvimento da inteligência, por isso denominada de epistemologia genética
. A partir da apreensão do percurso realizado por Piaget, o segundo capítulo põe em evidência a sua formação em Biologia com a forte marca do lamarckismo na fundamentação da sua epistemologia genética, e explicitam-se, no terceiro capítulo, as relações entre filosofia e ciência para caracterizar a epistemologia como disciplina científica fundamentada no estruturalismo genético. Finalmente, o quarto capítulo, Razão e Adaptação
, desenvolve a tese central do livro relativa ao caráter adaptativo e, portanto, naturalizante do significado da razão segundo Piaget.
Vê-se, assim, que o estruturalismo genético de Piaget corresponde, com fidelidade, ao dito de Paul Ricoeur, reiterado por outros autores, segundo o qual o estruturalismo é um kantismo sem sujeito transcendental
. De minha parte, eu diria que Piaget está para Kant assim como Aristóteles esteve para Platão. Ou seja, assim como Aristóteles trouxe para o mundo sensível as formas expressas no eidos platônico localizado no mundo das ideias, Piaget trouxe para o mundo natural o sujeito epistêmico que Kant localizara na esfera transcendental.
Recomendo, então, vivamente a leitura deste livro de Marília Gouvea de Miranda que, ao reconstituir de forma clara o empreendimento científico de Piaget, opera como um importante antídoto à estreiteza de visão que atinge seu paroxismo no negacionismo científico que se dissemina na atualidade. Trata-se, enfim, de um lançamento inteiramente oportuno nos dias de hoje e que será de grande utilidade a todos os leitores indistintamente.
São Paulo, 26 de dezembro de 2020.
Dermeval Saviani
Professor titular colaborador da Universidade Estadual de Campinas
Referências:
RAMOZZI-CHIAROTTINO, Zelia. Em busca do Sentido da Obra de Jean Piaget. São Paulo, Ática, 1984.
SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil, 5. ed. Campinas, Autores Associados, 2019.
APRESENTAÇÃO
Mais um livro sobre Piaget? Perguntarão talvez alguns leitores familiarizados com as numerosas publicações direcionadas à obra do conhecido psicólogo suíço. Sim, mais um trabalho voltado para essa complexa e extensa teoria, que de tempos em tempos ganha evidência no debate educacional. Muitas vezes enaltecida por seus defensores, outras vezes criticada por seus opositores, a inegável influência da teoria piagetiana sobre a educação manifesta-se em noções amplamente incorporadas ao senso comum, como, por exemplo, a maneira como se dá o processo de aquisição de conhecimento. Na educação escolar, frequentemente os currículos, procedimentos de ensino, métodos
e projetos educacionais têm sido formulados segundo alguns princípios traduzidos da epistemologia genética de Piaget, ainda que isso nem sempre seja claramente explicitado por seus proponentes. Aqui e ali se ouve falar de um pretenso método piagetiano a justificar um sem número de atividades dirigidas à criança.
A despeito de tamanha projeção, a apropriação do pensamento de Jean Piaget no campo da Educação pode ser descrita como paradoxal. Por um lado, sua teoria foi, ao longo da segunda metade do século XX, crescentemente difundida em todo mundo, tornando-se uma das explicações mais conhecidas sobre a inteligência da criança e seus processos de desenvolvimento, com importantes desdobramentos na área de Educação. Curiosamente, por outro lado, a extensa e complexa obra de Piaget nem sempre foi suficientemente lida e compreendida. Esse descompasso entre a difusão das ideias de Piaget e de seu estudo, além de não fazer justiça ao autor, reforça a cortina de fumaça que frequentemente envolve as teorias psicológicas aplicadas à Educação. Não raro, as teorias tornam-se suscetíveis às mais diversas apropriações, nem sempre fiéis aos seus princípios e orientações fundamentais.
Muitos trabalhos publicados sobre Piaget destinados a professores são, em boa parte, tentativas de síntese de suas ideias, com o propósito de torná-las acessíveis a esse grande público. Em menor número, são também editados trabalhos visando a crítica da obra piagetiana e de seus desdobramentos no campo educacional, formulados a partir do contraponto de outra teoria ou concepção também apresentada de forma resumida e simplificada, gerando um embate que, não raro, aparece de forma fragmentada e mecânica aos olhos dos atônitos professores, como se houvesse trincheiras a serem ocupadas.
Nos anos de 1980 e em boa parte dos anos de 1990, verificou-se, no Brasil, um boom de estudos piagetianos orientados para a Educação. A crítica a essa onda construtivista
veio pelo contraponto da teoria de Vigotski e de outros autores da chamada psicologia sócio-histórica. Estabeleceu-se um acalorado debate no meio acadêmico em que se opuseram vigotskianos e piagetianos e, até mesmo, vigotskianos entre si, com base em distintas interpretações da escola soviética. Seguiu-se daí um longo período de prevalência da teoria histórico-cultural na fundamentação psicológica dos processos educacionais que perdura até os dias de hoje. Nesse contexto, arrefeceram em muito as referências à Piaget no campo educacional e, consequentemente, as publicações de trabalhos relacionados a esse autor. A menção à Piaget no campo da Educação passou a ser vista com muitas restrições, em geral qualificada como uma concepção que naturalizava os processos psicológicos, opondo-se a uma compreensão do humano como fundamentalmente histórica e social. As apropriações da teoria piagetiana na Educação ficaram mais restritas a algumas áreas específicas, como ensino de matemática e das ciências naturais. Ainda assim, segue sendo destacada como um conteúdo proposto na maioria dos programas da disciplina Psicologia da Educação adotados nos cursos de Pedagogia e nas demais licenciaturas em todo o país.
O trabalho que deu origem à publicação deste livro está incrustado nos sucessivos movimentos que prevaleceram nesse contexto. Foi apresentado como tese de doutorado em 1991, no então Programa de História e Filosofia da Educação, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), sob o título Razão e adaptação: um estudo da epistemologia genética de Jean Piaget. Fui orientada pelo Prof. Dermeval Saviani, a quem devo o melhor de minha formação desde aqueles anos finais da década de 1980, quando na PUC/SP ressoavam processos em curso num país que enfrentara durante décadas uma ditadura militar e enfim podia, como resultado de muitas batalhas, celebrar a volta daqueles que partiram, recolocar a participação da sociedade civil e, entre mais, promover o aprofundamento do debate teórico. Era um tempo de acalentar novos projetos na perspectiva de novos tempos, que, enfim, vieram com as marcas das contradições estruturais dessa sociedade e com os desdobramentos que hoje tão bem conhecemos.
A intenção do trabalho, cuja ambição revela muito da desmedida tarefa que, à época, a jovem pesquisadora se impôs, era realizar uma leitura crítica de Jean Piaget por dentro
, ou seja, da perspectiva de seus fundamentos teóricos e metodológicos. O estudo que se seguiu revelou que a extensão e a profundidade da obra de Piaget seria um obstáculo praticamente intransponível para os objetivos propostos e foi necessário definir e redefinir muitos atalhos, nem sempre plenamente compreensíveis e facilmente justificáveis, particularmente naquele momento. A mera definição da obra de Jean Piaget como objeto de estudo já era suficiente para armar os ânimos daqueles que a defendiam e, mesmo, dos que a criticavam: os primeiros por serem pouco receptivos a estudos críticos do velho epistemólogo suíço; os segundos por julgarem que as bases da crítica à obra de Piaget já tinham sido propostas e que qualquer esforço no aprofundamento dessa crítica já denotaria uma adesão a priori ao construtivismo. Nesse contexto, a publicação desse trabalho não parecia oportuna e, desde então, foi sempre adiada, talvez, como confessara Brás Cubas, por receio de privação da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião
¹.
O que teria lavado à decisão de sua publicação tantos anos depois? O distanciamento no tempo que quase tudo arrefece, o fato de que esse texto esteve