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Freire e Piaget no Século XXI: Personalidade Autônoma, Práxis e Educação
Freire e Piaget no Século XXI: Personalidade Autônoma, Práxis e Educação
Freire e Piaget no Século XXI: Personalidade Autônoma, Práxis e Educação
E-book422 páginas8 horas

Freire e Piaget no Século XXI: Personalidade Autônoma, Práxis e Educação

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Sobre este e-book

Freire e Piaget no século XXI: personalidade autônoma, práxis e educação lança um novo olhar sobre a construção do conhecimento, do sentimento moral e da educação em Freire e Piaget. A obra situa a pedagogia ativa e a pedagogia problematizadora, propostas por esses autores, como um movimento de transformação e superação da escola tradicional — centrada na transmissão —, na direção da humanização, da atividade intelectual e da emancipação de crianças, jovens e adultos.
O autor destaca a revolução copernicana promovida por Freire e Piaget no campo da educação: um novo paradigma pedagógico capaz de transformar — superando — a educação bancária, intelectualista e mecanicista, que milenarmente continua atuando. Expõe ainda a formação do conhecimento e do sentimento moral focando a indissociabilidade e solidariedade dessas dimensões em função dos processos e mecanismos construtivos. Desse modo, destaca a relação dialética entre prática e consciência e entre indivíduo e sociedade; a relação de continuidade funcional e de ruptura estrutural no desenvolvimento do conhecimento e do sentimento moral. Essa maneira de proceder permite aos autores estudados fundamentar a ação pedagógica como processo que exige, inevitavelmente, tomadas de consciência e relações dialógicas.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento15 de dez. de 2022
ISBN9786525031248
Freire e Piaget no Século XXI: Personalidade Autônoma, Práxis e Educação

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    Freire e Piaget no Século XXI - Adrian Oscar Dongo-Montoya

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    FREIRE E PIAGET NO SÉCULO XXI

    personalidade autônoma, práxis e educação

    Editora Appris Ltda.

    1.ª Edição - Copyright© 2022 do autor

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.Catalogação na Fonte

    Elaborado por: Josefina A. S. Guedes

    Bibliotecária CRB 9/870

    Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT

    Editora e Livraria Appris Ltda.

    Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês

    Curitiba/PR – CEP: 80810-002

    Tel. (41) 3156 - 4731

    www.editoraappris.com.br

    Printed in Brazil

    Impresso no Brasil

    Adrian Oscar Dongo-Montoya

    FREIRE E PIAGET NO SÉCULO XXI

    personalidade autônoma, práxis e educação

    À minha mãe, Teodocia, e ao meu pai, Oscar, os quais, desde cedo, ensinaram-me, vivendo e lutando, a importância da solidariedade e do conhecimento.

    TRAJETÓRIA E AGRADECIMENTOS

    Nasci numa pequena cidade esquecida dos andes peruanos — Incuyo —, que na minha infância parecia ser mais um vilarejo de comerciantes, artesãos e agricultores, onde todos se conheciam. Tive a sorte de fazer parte de uma família com sete irmãs, quase todas maiores que eu. O meu pai, de origem italiana, e a minha mãe, de origem quechua, foram muito amorosos e muito orgulhosos daquela região que se caracterizava por ter uma das paisagens mais belas e onde muitos falavam quéchua e espanhol.

    A herança deixada pela minha mãe foi marcante no que diz respeito à solidariedade e à firmeza de caráter. Ela, tendo um restaurante, jamais permitiu que ninguém passasse fome e sede ou dormisse na rua. Por ser tão bondosa e correta, todos e todas a chamavam de mamita. Ela não foi alfabetizada, pois o patriarcado colonial, remanescente no país, impediu-a de estudar, por ela ser mulher. Possivelmente por isso, ela lutou e estimulou, incansavelmente, que suas filhas estudassem.

    Como naquele lugar não existia colégio além da escola fundamental, as minhas irmãs e eu mesmo tivemos de sair cedo dessa cidade, por escolha dos nossos pais, para dar continuidade aos nossos estudos escolares e universitários. Eu mesmo concluí os estudos escolares na capital (Lima), em colégio público, e estudei numa universidade também pública (UNMSM), considerada, na época, a melhor do país. Nessa universidade, dois anos após concluir meus estudos em Psicologia, tornei-me professor da disciplina Psicologia Social por meio de um concurso público.

    Essas minhas vivências de infância, adolescência e juventude influenciaram, acredito eu, de maneira decisiva, nas minhas escolhas profissionais e intelectuais.

    Em 1979, quando iniciei os meus estudos de pós-graduação no Instituto de Psicologia na Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação da professora Zélía Ramozzi-Chiarottino, referência na teoria de Piaget, trouxe na bagagem toda a minha vivência e atividade reflexiva; também trouxe as minhas primeiras leituras da obra de Paulo Freire e Jean Piaget, autores com os quais me identificava.

    Como peruano indignado com as iniquidades das injustiças sociais, mas também inconformado com toda forma de tirania e autoritarismo, optei por estudar as crianças oprimidas e marginalizadas do Brasil e dos países latino-americanos. Como produto desses estudos, resultou a minha dissertação de mestrado e a minha tese de doutorado, as quais foram publicadas na forma de livro Piaget e a criança favelada. Epistemologia genética, diagnóstico e soluções, em 1996, pela Vozes.

    Apesar de essas pesquisas estarem fundamentadas na teoria de Piaget, não deixava de observar nelas a presença de Paulo Freire. O conceito de cultura do silêncio, de Freire, como observaremos mais adiante, foi central para entender a problemática cognitiva das crianças oprimidas e marginalizadas.

    Tendo como base esses estudos, em 1985, tive o privilégio de ser aluno do professor Paulo Freire. Foi quando ele tinha voltado do exílio e ministrava aulas no curso de pós-graduação na PUC de São Paulo. Para concluir a disciplina, tive de fazer um trabalho monográfico (ver Apêndice). Contudo, o que mais aprendi, nesse ambiente de diálogo e desafio intelectual, foi saber estudar a sua obra e perceber a existência de trilhas a serem seguidas nas minhas futuras leituras.

    Meu trabalho acadêmico como professor universitário em Psicologia da Educação, no Brasil, fez com que me afastasse temporalmente de Freire e continuasse aprofundando o pensamento epistemológico de Piaget. Por esse motivo, busquei outras experiências de aprimoramento na Europa. Assim, na década de 1990, passei quase dois anos na França e na Suíça fazendo o estágio do pós-doutorado. Na França, estudei com o saudoso professor Jean-Marie Dolle, na Université Lumière – Lyon II; e na Suíça, nos Archives Jean Piaget.

    Nunca deixei de ler as obras de Paulo Freire, porém, foi em 2015 que voltei, com mais sistematicidade e disciplina, a estudar o pensamento desse autor, quando tive a oportunidade de orientar a tese de doutorado da minha orientanda Sabrina Sacoman Campos Alves. Essa pesquisa deu continuidade ao trabalho de Fernando Becker, que estudou a questão da aprendizagem em ambos autores, porém, ela enfocou a questão do respeito.

    Na minha carreira profissional e intelectual no Brasil, não posso deixar de salientar a importância da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, que me brindou a oportunidade de trabalhar como pesquisador e ministrar aulas para estudantes da graduação e pós-graduação em Filosofia e Educação. Essa instituição pública proporcionou-me condições necessárias para desenvolver as minhas convicções teóricas e científicas. Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Educação dessa faculdade, que me permitiu, entre outras coisas, debater, na homenagem aos 100 anos do nascimento de Paulo Freire, os meus conhecimentos sobre o pensamento deste autor (ver Apêndice).

    Agradeço ao Grupo de Estudos e Pesquisa de Epistemologia Genética e Educação (Gepege), do qual sou coordenador desde a década de 1990, que me possibilitou debater o pensamento de Piaget. Nesse ambiente estudamos, com paixão e profundidade, as obras clássicas desse autor, como O juízo moral na criança, a trilogia e os trabalhos experimentais sobre os mecanismos de construção do conhecimento. O Gepege e a revista Schème organizaram cinco colóquios internacionais sobre o pensamento de Piaget.

    Agradeço ao programa Proepre da Unicamp, coordenado pela professora Orly Mantovani de Assis, que me brindou com muitas oportunidades para debater as minhas ideias.

    Um agradecimento especial a Fernando Becker, colega mestre, pelo apoio amigo. Fernando, com seus trabalhos, sempre foi fonte de inspiração. Agradeço pelo aceite de fazer o prólogo deste livro.

    Agradeço à Madalena Freire pela disposição carinhosa para fazer a apresentação deste livro. Infelizmente, problemas de saúde não permitiram esse desejo recíproco. Sinto-me honrado pelo apoio dela.

    Agradeço à Sabrina, nossa orientanda, a generosidade de discutir e colaborar com a redação deste trabalho. Sobretudo, nos primeiros momentos, foi importante a sua participação.

    Agradeço à Alessandra de Morais, à Patricia Batalgia, ao Nelson Pedro a amizade e participação ativa nos encontros do Gepege; às colegas e amigas Telma Vinha e Luciene T. Paulino, ao amigo Antonio dos Reis, os encorajamentos para a publicação deste trabalho.

    Agradeço às minhas queridas irmãs, que sempre apoiaram, apesar da distância, a minha opção acadêmica; à minha companheira de todos os dias, Zery, à minha querida filha, Mayte, ao meu querido filho, Matheus, a compreensão na difícil e demorada arte de escrever.

    Finalmente, agradeço a competente assessoria técnica de Andressa Magi.

    PREFÁCIO

    Quando estudamos um autor e nos encantamos com suas ideias, porque compreendemos que aquilo que ele afirmou, há muitas décadas, aplica-se integralmente hoje, pois leva-nos a ver o mundo e a sociedade de forma nova, reconstruindo o que seus grandes predecessores fizeram, e desafia-nos a pensar e agir valendo-nos de novas perspectivas e a enveredar por novos e fecundos caminhos teóricos e metodológicos, tomamos consciência de que estamos tratando de um clássico. Quando estudamos outro autor de passado nem tão antigo e sentimos que ele atingiu tal profundidade e se revestiu de tamanha originalidade que se tornou capaz de inesgotável inspiração, somos tomados por um sentimento de certeza de que nos deparamos com um clássico. Clássicos, ao mesmo tempo que dão continuidade aos grandes valores do passado, mostram inesgotável capacidade de nos transformar no presente e, pela sua criatividade e inventividade, antecipar-se a seu tempo e ao futuro.

    Se tais autores investiram em áreas de conhecimento próximas ou até comuns, e na continuidade de nossos estudos for crescendo em nós a sensação ou a compreensão de que eles, embora com origens diversas e trilhando caminhos muito diferentes, afirmam as mesmas certezas, surge em nossa mente a pergunta: por que não pensar os dois juntos? Por que não os relacionar? Qual a vantagem? A mesma do diálogo! Se eu estou resolvendo um problema e esbarrei com dificuldades aparentemente insuperáveis, e contar isso a um interlocutor, esse interlocutor poderá fazer uma pergunta que fará disparar um turbilhão de ideias, abrindo caminho para a solução do problema.

    Esta é a vantagem: clássicos fecundam-se mutuamente. Estamos falando de dois clássicos do século XX: o suíço Jean Piaget (1896-1980) e o brasileiro Paulo Freire (1921-1997).

    Quando vemos o reconhecimento desses pensadores não apenas em seu país — e até não tanto em seu país, como acontece com Paulo Freire —, nossa convicção é potencializada. Jean Piaget recebeu mais de 30 títulos Doutor Honoris Causa por universidades espalhadas pelo mundo, e é marcante sua presença desafiadora, mundo afora, na psicologia, na filosofia e na educação, entre outras áreas. Paulo Freire, além de ser estudado em Institutos Paulo Freire em mais de 20 países, recebeu mais de 30 prêmios Doutor Honoris Causa de universidades espalhadas pelo mundo.

    Conhecer Piaget como pedagogo e Freire como criador de um método de alfabetização de adultos não constitui propriamente um equívoco, mas se situa a anos-luz de seus verdadeiros méritos, a investigação epistemológica; isto é, compreender o ser humano como construtor, criador ou inventor de conhecimento e, como tal, crítico das visões de mundo e transformador das realidades. Em outras palavras, a investigação da constituição do sujeito epistêmico ou daquilo que é comum a todos os indivíduos enquanto organismos que conhecem, apropriam-se de seus conhecimentos, tornando-se capazes de transformar seu entorno, físico ou social, e transformar a si mesmos.

    Piaget adentrou o mundo infantil e, durante anos, acompanhou, com a colaboração substantiva de sua esposa, psicóloga e mãe das crianças, as ações de seus três filhos, observando, depois propondo, problemas práticos, mais tarde fazendo perguntas e, finalmente, chegando a uma conclusão, revolucionária para a época e na contramão das convicções teóricas de então: há inteligência muito antes da linguagem. Afirma que a linguagem só se torna possível por volta de 1,5 a 2 anos como expressão da função simbólica, uma estrutura cognitiva (cerebral) cuja construção foi possibilitada pela complexa inteligência sensório-motora. A criança não expressa, com sua incipiente linguagem, significados sociais, mas seus esquemas sensório-motores e as coordenações desses esquemas. Isso significa que a criança, nos dois primeiros anos de vida, longe de ser um organismo que só responde a estímulos, é um indivíduo com intensa atividade cognitiva por cuja ação configura as estruturas básicas que a constituem como sujeito epistêmico: a complexa estrutura lógica sensório-motora. A criança faz isso independentemente do meio social? Para responder a essa pergunta, basta reprisar a frase de Piaget em seu texto sobre os estádios do desenvolvimento cognitivo: o meio social pode acelerar ou retardar o aparecimento de um estágio, ou mesmo impedir sua manifestação (PIAGET, 1973c, p. 50). Porém, o sujeito não faz isso diretamente, mas por meio da assimilação do entorno. Ou ainda é impedido de assimilar o entorno, devido a perversos mecanismos instalados no meio social em que vive, como Freire denuncia com propriedade. Portanto, esse meio não goza de autonomia para determinar o sujeito; nada acontece de positivo, se o sujeito não assimilar esse meio e não se transformar em função dele (acomodação). Ou seja, as determinações do meio só acontecem se, e somente se, mediadas pela ação do sujeito, ação assimiladora seguida de ação acomodadora, na estrita continuidade do processo de autorregulação da vida.

    Piaget demonstra, por estudos de mais de 100 temas (objeto, espaço, tempo, causalidade, proporção, velocidade, percepção, acaso, número, tempo, quantidades físicas, imagem mental, estruturas lógicas, abstração reflexionante, tomada de consciência etc.) envolvendo, além de seus filhos, milhares de crianças e adolescentes, a continuidade das construções sensório-motoras, enquanto superam etapas cognitivas vividas, logrando novos patamares (estádios) de organização cognitiva, progressivamente complexos, até o recém-nascido tornar-se capaz de ingressar na vida adulta. Pode-se dizer que Piaget, discordando das psicologias da época, tirou o foco de sua atenção na herança genética (Gestalt), deixou de se distrair com os estímulos ambientais (behaviorismo), para se concentrar na ação do sujeito, isto é, na relação entre genoma e meio, indivíduo e sociedade, sujeito e objeto. Piaget concentra-se no que há de comum nas ações, não nos objetos ou nas heranças genéticas. Para ele, o fenômeno do conhecimento não preexiste no meio, ou no genoma, mas se inicia (gênese) na relação entre genoma e meio, relação constituída pela assimilação, isto é, pela ação do sujeito.

    Contudo, os leitores de Paulo Freire e pode-se dizer o mesmo de alguns de seus intérpretes não se deram conta disto: a obra desse pedagogo brasileiro traz, no seu âmago, a mesma preocupação epistemológica que marcou a obra de Piaget. O núcleo gerador do pensamento de Freire é a capacidade de construção cognitiva do sujeito epistêmico; não de crianças e adolescentes, como em Piaget, mas de adultos condenados ao analfabetismo. No fundo da concepção pedagógica de Freire, encontramos sua convicção de que esse indivíduo, que sofre a vergonha alheia do analfabetismo, é capaz, apesar das perdas dos tempos propícios às construções cognitivas de base, de superar o nível, aparentemente intransponível, da consciência semi-intransitiva, para atingir um nível de consciência ingênuo-transitiva e, finalmente, o nível desejado da consciência crítica, assumindo progressivamente o direito de dizer a sua palavra, superando para sempre a cultura do silêncio. Freire reconhece, no analfabeto adulto, a presença do sujeito epistêmico com todas suas possibilidades, que, entretanto, depende de organizações sociais, educativas, para exercer seu direito fundamental de conhecer e de evoluir em conhecimento, das percepções mais elementares até os mais elevados níveis de conceituação ou consciência crítica.

    O livro Freire e Piaget no século XXI: personalidade autônoma, práxis e educação, de Adrian Oscar Dongo Montoya, que conta com a colaboração de Sabrina Sacoman Campos Alves, que ora apresentamos, propõe-nos uma desafiadora reflexão pedagógica que nos leva a pensar as contribuições daqueles dois autores pela sua comum compreensão epistemológica: a compreensão do sujeito humano como construtor de conhecimento, na convicção de que as capacidades cognitivas não são garantidas nem pelo genoma, nem pelos estímulos ambientais ou sociais, mas pela atividade do sujeito epistêmico que dialetiza genoma e meio — físico e social.

    Penso, entretanto, que a maior originalidade que encontramos neste livro é a união indissolúvel entre intelectualidade e moralidade no pensamento educacional desses dois autores. Tomada de consciência e conscientização, autonomia intelectual e autonomia moral fazem parte de uma mesma totalidade. Piaget (1973b, p. 69), em Para onde vai a educação?, mostra como se amarram essas duas dimensões.

    Na realidade, a educação constitui um todo indissociável, e não se pode formar personalidades autônomas no domínio moral se por outro lado o indivíduo é submetido a um constrangimento intelectual de tal ordem que tenha de se limitar a aprender por imposição sem descobrir por si mesmo a verdade: se é passivo intelectualmente, não conseguiria ser livre moralmente.

    Completa esse pensamento com uma contundente crítica à educação que herdamos do século XIX, e que não conseguimos superar até hoje, a favor de uma pedagogia ativa:

    Reciprocamente, porém, se a sua moral consiste exclusivamente em uma submissão à autoridade adulta, e se os únicos relacionamentos sociais que constituem a vida da classe são os que ligam cada aluno individualmente a um mestre que detém todos os poderes, ele também não conseguiria ser ativo intelectualmente (PIAGET, 1973b, p. 69).

    Em Freire, essa união entre intelectualidade e moralidade é realizada pelo conceito de conscientização que sintetiza tomada de consciência e compromisso histórico com a transformação da realidade social.

    Uma educação assim pensada trabalhará sobre as ruínas da escola herdada do século XIX para mirar a formação da inteligência conceitual e científica, portanto, crítica, dos educandos (PIAGET, 1973b, p. 69), na certeza de que conceitos não se ensinam; constroem-se. Teorias aprendidas pelos educandos, sem o suporte básico de construções conceituais, são vazias; não passam de verbalismo oco, como alerta Freire. O ato pedagógico dá-se no encontro de duas ações que se chocam, confrontam-se, digladiam-se, conflituam-se e, finalmente, sintetizam-se; a ação do professor e a ação do aluno, ambos expressando contextos sociais próprios, em intensa interação, em relação dialógica, no contexto educacional, presencial ou on-line. O mundo do conhecimento, especialmente do conhecimento científico, será o mediador dessa relação. O ato pedagógico não começa pelo professor, nem pelo aluno, mas pela interação ou pelo diálogo; começa quando alunos e professores ingressam no processo interativo, dialógico e, progressivamente, aprofundam esse processo. Mesmo quando, sozinho, o professor prepara situações-problema, ele tem em vista o aluno. Nessa relação, o educando age e o educador é um polo gerador de desafios; este desafia o aluno organizando ações pelas quais possa reconstruir conceitos, ou construir outros conceitos — uma teoria é sempre articulação de conceitos e ela é tão melhor quanto mais aprofundados e articulados forem esses conceitos. O educador é a presença do meio institucional, do sistema educacional, que desafia a intencionalidade da consciência (PIAGET, 1973b, p. 69) dos educandos.

    Tanto interação quanto diálogo não significam simples conversa, troca de opiniões, relações sociais. Significam que, se A agiu sobre B e B não respondeu, não houve interação ou diálogo. E, se A agiu sobre B e B se sente desafiado e responde a, ainda não podemos afirmar que houve interação ou diálogo. Entretanto, se A agiu sobre B, B sentiu-se perturbado e respondeu a, e sua resposta impactou A, que responde a B, não sem antes modificar seu pensamento inicial para melhor, somente então podemos dizer que começou uma relação interativa, dialógica. A exposição dessa simples evolução mostra-nos quanto foram banalizados, deturpados os conceitos de interação (Piaget) e de diálogo (Freire). Nesses autores, eles nada têm de senso comum; ao contrário, envolvem verdadeiros processos cognitivos e construções morais, e sua criação funda-se em epistemologia crítica — piagetiana e freiriana.

    No contexto pedagógico do qual falamos, a competência do professor passa a ser medida pela capacidade de desafiar o processo de abstração reflexionante do aluno, para que este consiga progressivas abstrações refletidas — abstrações reflexionantes com tomadas de consciências (Piaget) — na direção do conhecimento a ser aprendido, configurando um verdadeiro processo de conscientização (Freire) ou de construção de consciência crítica. Sem nunca esquecer que um indivíduo só aprende aquilo pelo qual nutre interesse, que é, segundo Piaget, o fator afetivo que mobiliza suas ações; segundo Freire, o desejo de libertar-se da opressão.

    A aventura do conhecimento, a que todos têm direito, é prenhe de desafios de todos os níveis de complexidade. Por isso, precisamos pôr, no topo das prioridades sociais, a formação docente na consciência de que essa aventura demanda os melhores investimentos de todas as instâncias da gestão pública, pois urge tomar consciência do significado desta pergunta do neurocientista António Damásio: O que é mais difícil de conhecer do que conhecer o modo como conhecemos? (DAMÁSIO, 2000, p. 18).

    Desejamos aos leitores de Freire e Piaget no século XXI: personalidade autônoma, práxis e educação rica experiência intelectual, reflexiva; significativa evolução em consciência e conscientização; aprofundamento do compromisso com práticas sociais, especialmente as educadoras, que contribuam na transformação, para melhor, da sociedade em que vivemos; evolução no caminho da justiça, da igualdade, da liberdade e da autonomia; crescimento na capacidade de colocar-se no lugar do outro, de ver cada pessoa como um outro eu, digno de respeito, independentemente de raça, opção sexual ou origem social; evolução, enfim, nos processos de humanizar e humanizar-se.

    Parabéns ao professor Adrian Oscar Dongo Montoya por levar adiante esse projeto de pensar juntos Piaget e Freire. Parabéns à professora Sabrina Sacoman Campos Alves por anexar-se a esse projeto.

    Fernando Becker

    Professor Titular da UFRGS

    Porto Alegre, 15 de fevereiro de 2022

    Sumário

    INTRODUÇÃO

    PARTE I

    ESTUDOS PRÉVIOS EDEFINIÇÃO DOS NOSSOS OBJETIVOS

    1

    ESTUDOS PRÉVIOS E DEFINIÇÃO DOS NOSSOS OBJETIVOS

    1.1 A pesquisa de Fernando Becker sobre aprendizagem

    1.2 A pesquisa de Sabrina Sacoman Campos Alves e outras pesquisas sobre Piaget e Freire

    1.3 Nossos estudos sobre as teorias de Piaget e Freire

    1.4 Definindo objetivos e procedimentos de estudo

    PARTE II

    EPISTEMOLOGIA E CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO EM PIAGET E FREIRE

    Introdução à segunda parte: trajetórias de Piaget e Freire e seus objetivos básicos

    2

    A epistemologia de Jean Piaget e a construção do conhecimento

    2.1 O construtivismo piagetiano

    2.2 Construção do conhecimento prático

    2.3 Construção do conhecimento conceitual

    2.4 Da ação ao conceito: papel da tomada de consciência e da abstração reflexionante

    2.5 Consequências da construção do conhecimento conceitual para a práxis educativa

    3

    A EPISTEMOLOGIA DE PAULO FREIRE E A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO

    3.1 Concepção epistemológica de Freire

    3.2 Sujeito ativo de conhecimento e dialética entre ação e consciência

    3.3 Curiosidade epistêmica e caráter dialógico da educação

    4

    CONCEITOS COMUNS EM PIAGET E FREIRE

    4.1 Ação e consciência

    4.2 Tomada de consciência

    4.3 Conscientização

    4.4 Práxis para Freire e Piaget

    PARTE III

    CONSTRUÇÃO DA MORALIDADE EM PIAGET E FREIRE

    5

    DESENVOLVIMENTO DA MORAL SEGUNDO JEAN PIAGET

    5.1 Questões metodológicas e aspectos básicos da teoria de Piaget sobre a moralidade

    5.2 Primeiros estudos experimentais sobre o jogo de regras e suas implicações para o estudo da prática e consciência moral

    5.2.1 Desenvolvimento da prática da regra

    5.2.2 Desenvolvimento da consciência da regra

    5.2.3 A relação entre a prática e consciência moral e a questão da defasagem da consciência

    5.3 Pesquisas sobre o juízo moral e as relações entre prática e consciência moral

    5.3.1 A consciência moral e suas relações com a prática: hipótese da tomada de consciência do sentimento de altruísmo

    5.3.2 As condutas altruístas iniciais e sua continuidade na consciência moral autonomia

    5.4 Continuidade e ruptura entre a prática e a consciência moral: importância da tomada de consciência

    5.5 Processos e mecanismos endógenos na construção da autonomia moral: a tomada de consciência e a abstração reflexionante

    6

    O DESENVOLVIMENTO MORAL SEGUNDO PAULO FREIRE

    6.1 Aspectos ontológicos e epistemológicos da teoria de Freire sobre a moralidade

    6.2 Ética e a moral do respeito mútuo na ação pedagógica

    6.3 A autoridade na educação bancária e na educação libertária

    6.4 Da prática à consciência moral: o caminho do desenvolvimento moral

    6.5 Encontro de Freire com Piaget sobre desenvolvimento moral

    7

    CONCEITOS EM PIAGET E FREIRE SOBRE O DESENVOLVIMENTO MORAL

    7.1 As relações sociais e os dois respeitos

    7.1.1 Sociedade como sistema de relações sociais

    7.1.2 Os dois respeitos e suas consequências: respeito unilateral e o respeito mútuo

    7.1.3 O obstáculo epistemológico na construção da autonomia

    7.1.4 O diálogo como ética

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