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Incontáveis contos de Carola
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Incontáveis contos de Carola
E-book161 páginas2 horas

Incontáveis contos de Carola

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Sobre este e-book

Carola, de cabelos negros e olhos escuros. Branca como uma pluma e magra de aparecer os ossos. Não gosta de gente, é amiga de gatos e não consegue se ver no espelho.
Eduardo, um ser flutuante na história. Pinta quadros, trabalha em uma biblioteca e ama música clássica. Ele vê em Carola tudo o que ela mesma é incapaz de enxergar.
Esta é quase uma história de amor.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de nov. de 2020
ISBN9786599174001
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    Incontáveis contos de Carola - Rebecca Fonseca

    CAROLA

    NOTA PARA O INÍCIO DE UM AMOR

    HAVIA UMA GRANDE DIFERENÇA entre Eduardo e todas as outras pessoas na vida de Carola: a padronização do ser humano imposta por olhômetros de indivíduos vazios não tinha ligação alguma com o que o rapaz prezava na vida.

    Carola, de pele branca e macia como uma pluma; cabelos grossos e cheios, negros como a escuridão da noite; seios pequenos e achatados; muito alta e magra de aparecer os ossos; sentia-se distante daquilo que as pessoas consideravam atraente. Do que ela mesma considerava atraente.

    Porém, educado a isto, Eduardo enxergava o mundo através de outra perspectiva. Ao notar o quanto Carola se menosprezava imersa em insegurança, ele fazia de tudo para cobrir os espelhos responsáveis por distorcer a imagem que ela tinha de si mesma. Resquícios de uma alma ferida.

    Enquanto aguardava por reciprocidade, Eduardo se atentava a certos detalhes de sua amada: os cabelos desgrenhados, a pele flácida, o passo arrastado e sem vontade. Observava com os olhos da alma e, por olhar de tal forma, nem sequer se incomodava com tais detalhes. Para ele, beleza era um conceito superficial e irrelevante, impossível de se definir de maneira universal.

    Amou Eduardo a Carola mais que qualquer outro jamais amaria.

    Eduardo era cego.

    1

    SOBRE CONHECER ALGUÉM

    ESTA FOI A CARTA ANÔNIMA que Carola encontrou em sua caixa de correspondências numa manhã qualquer:

    "Arranco teus olhos com minhas mãos em afeto. Unhas afiadas te tiram a visão em amor. O sangue que escorre por tua face rubra nada mais é que a consequência da nova perspectiva. Faço isso para que ame. Faço isso para que veja. Em que se baseiam os seus conceitos agora? Como vê o mundo? Gostaria tanto que enxergasse com olhos que ouvem, olhos que tocam, olhos que cheiram, olhos que sentem o gosto desta realidade.

    Por que o sentido humano que nos permite parcial visão do que nos rodeia tem se tornado o que mais nos cega? Ironia sem escrúpulos. Queria eu ver as pessoas de verdade. Queria eu ver a vida por aquele prisma perdido na consciência da humanidade.

    Pergunte a um cego, não a alguém como você. Pergunte o valor que daria se passasse a enxergar. Ele, com certeza, não veria a vida como você a vê. Biologicamente, talvez… mas não. Eles não a veriam como você a vê.

    Às vezes, como se fosse louco, e talvez eu seja, ando pelas ruas em meus trajetos diários de olhos fechados na esperança de que minhas fronteiras se expandam, meus horizontes se alonguem e, se possível, se tornem verticais. Caminho em passos cheios de dúvida, mas estou certo da superficialidade do que avisto em tudo ao meu redor.

    Encontrarei alguém que não procura por aquilo que somente vê? Chegará o dia em que minha alma se juntará à de alguém que de fato enxergue o mundo? Estou suscetível a isso?"

    Carola perambulava pelos corredores do supermercado enquanto refletia sobre o que havia lido mais cedo. Estava confusa e mal sabia o que pensar, tampouco conseguia imaginar quem poderia ter escrito aquilo com tanta precisão. Ninguém a conhecia a este ponto. Muito menos no lugar em que morava, onde apenas conhecia as pessoas de vista.

    Começou então a pensar em tudo que sabia deste mundo e na expressão conhecer de vista. Conhecer é uma palavra profunda demais para ser usada assim. Não se conhece ninguém apenas de vista. Saber um nome ou reconhecer um rosto são coisas completamente diferentes de se conhecer alguém. Aliás, era a expressão que Carola usaria se perguntassem sobre Eduardo. Afinal, apenas passava os olhos por ele de vez em quando, o suficiente para notar que ele era cego. Ela não pôde deixar de pensar em seu vizinho ao ler a carta. Ele poderia tê-la escrito? Provavelmente não.

    A dúvida que seu coração gerou foi: será que não tenho visto o que deveria ver?

    A moça voltou do mercado com alface e tomate. Deixou as compras na mesa, pegou a carta e decidiu tocar a campainha do vizinho.

    Ding-dong.

    Nada.

    Ding-dong.

    O gato de Eduardo miou, mas ele mesmo não parecia estar em casa. Carola desceu até o 2, onde morava a Dona Luzia. A velha sabia de tudo. Quem entrava, quem saía. Todos os porquês e comos. Tudo isso porque morava de cara com a portaria e a janela da sala dava para fora do prédio.

    — Eduardo foi ao médico com a irmã dele. Acho que foram fazer alguns exames para ver a situação da cegueira dele. Dizem que ele pode voltar a enxergar. — fofocou a senhora de cabelos brancos.

    Carola voltou a seu apartamento.

    Comeu um tomate.

    Dormiu.

    2

    NOITE ESTRELADA

    A VIDA ESTAVA MAIS LEVE. Apesar das chuvas torrenciais e do frio diário, ela parecia muito com quedas d’água de um riacho. Fluía melhor que o normal. Ao menos em alguns setores, Carola podia ver com mais clareza. Sua confusão interna permanecia lá, intacta, e não tinha se modificado, por mais que ela quisesse. Os recentes acontecimentos, porém, traziam novos ares para seus enfraquecidos pulmões.

    Não se trata de uma aventura, muito menos de uma descoberta. Nem romance, nem visita. Não. Afinal é de Carola que se fala. Ela raramente desfrutava de prazeres como esses. Carola era um ser neutro. O que tornou seus dias mais tranquilos foi o simples fato de ter arranjado um novo emprego. Sair de casa, ver pessoas, se comunicar. Simples ações que há um bom tempo não fazia.

    Era o fim do expediente e, enquanto Carola rolava seu feed de notícias do Facebook no computador da empresa, notou a falta de amigos. Que coisa medíocre. Abriu seu perfil no Instagram e riu da quantidade de fotos de plantas, elementos da natureza, objetos aleatórios de sua casa e, outra vez, a ausência de pessoas, de amigos. A falta de intimidade.

    Carola era só e sentia-se só mesmo que estivesse ao meio-dia no centro de São Paulo rodeada de corpos esbarrantes e apressados. Atualizou as páginas algumas vezes, na esperança de que alguma notificação aparecesse, alguma mensagem surgisse. Eram seis e meia da tarde e ela não havia recebido nenhuma ligação, nenhuma mensagem de texto, nenhum sinal de vida.

    Vinte e quatro anos.

    Pensou em Eduardo.

    Nem ele ligou.

    Ao caminhar até o ponto de ônibus, Carola sentiu que o mundo esqueceu que ela existia. Esperava que, assim que subisse no ônibus, alguém tivesse uma revelação espiritual a respeito dessa data nada festiva e a desse os parabéns, para que ela tivesse ao menos um motivo para não chorar ao chegar em casa.

    Era estranho ver como um ser humano como aquela moça tinha se tornado tão insignificante a outrem. A sociedade apagou Carola do mapa e ela não se incomodou em saber o porquê. Aceitou sua condição e seguiu em silêncio.

    Lembrou de quando completou oito anos de idade. Ambos os pais presentes e ela feliz. Teve uma festa de aniversário maravilhosa, com pessoas que a queriam muito bem. Onde estavam elas agora? Ninguém mais se importava? Sem família, sem amigos. Só restava Eduardo, que nunca foi um amigo nem namorado. Era apenas um conhecido com quem havia trocado algumas palavras.

    Os primeiros sinais de chuva na janela do ônibus foram suficientes para que ela se lembrasse de quando se conheceram. Sexta à noite, chuva forte lá fora e Friends na TV. Já estava pegando no sono debaixo do cobertor, assistia àquele episódio pela milésima vez. Ela adorava dormir no sofá ouvindo o barulho da chuva batendo na janela do apartamento.

    Eduardo, o vizinho, havia acabado de chegar da casa da mãe dele. Parado à portaria percebeu que não encontrava as chaves do portão. Ao ouvir o barulho delas no fundo de sua mochila, vasculhou com a mão e tirou-as com força do bolso onde estavam. As chaves caíram no chão molhado e Eduardo xingou. Incapaz de achá-las, decidiu tocar a campainha de seus vizinhos. Às duas horas da manhã, a maioria deles provavelmente estaria dormindo. O porteiro já havia ido para casa àquela hora e o rapaz torcia para que alguém pudesse ajudá-lo. Ding-Dong sem parar às duas da manhã no 13, apartamento de Carola. Ela acordou no susto, murmurou e olhou pela janela. Viu o moço do 14 apertando os botões. Vestiu então o casaco por cima da camisola e desceu as escadas do prédio um tanto zonza. Encontrou-o na portaria encharcado.

    — Entra logo, você vai pegar um resfriado! — exclamou Carola e fechou o casaco depressa ao se dar conta de que estava indecente. Não se lembrou imediatamente de que estava diante de um cego.

    — Eu preciso encontrar minhas chaves. Elas caíram no chão. — Eduardo estava preocupado. Carola saiu para a calçada, procurou por todos os lados, mas não viu nem sinal delas.

    — Acho que caíram no bueiro. — sugeriu Carola ao vizinho. A expressão no rosto de Eduardo foi de dar pena.

    Eles entraram e Carola colocou seu casaco nos ombros dele, já não fazia diferença ficar de camisola ou pijama, afinal ele não a veria. Levou-o até seu apartamento e assim que entraram foi logo buscar uma toalha de banho e preparar uma xícara de chá. Eduardo não podia entrar em sua própria casa, não parecia haver alternativa senão recebê-lo.

    — Acho que vou ter que improvisar uma cama pra você em meu sofá. — disse Carola enquanto procurava por roupas masculinas no armário. Eram roupas antigas de seu pai.

    — Você tem certeza que olhou direito? Posso jurar que ouvi as chaves caírem no chão. Eu as ouvi... Que droga! — disse Eduardo inconformado.

    — Eu juro! Não vi nadinha de nada. — disse Carola. — Você quer tomar um banho? Está ensopado, não vai ser legal se ficar doente, né?

    — Eu não sei. Melhor não. Olha, eu vou ser um incômodo pra você, vou te atrapalhar. Não é todo mundo que sabe como lidar com cego. Melhor eu ir embora! — disse um tanto envergonhado com a ideia de tomar banho lá.

    — E você vai dormir onde? Não, senhor. Você fica aqui.

    Carola arrumou o sofá, entregou a toalha e as roupas para Eduardo, mas ele, ainda hesitante, pensou outra vez se aquilo seria apropriado. Ele sabia quem era a moça e estava extremamente feliz com a possibilidade de finalmente conhecer aquela que deixava o cheiro de seu perfume de lavanda pelos corredores do prédio. Só não queria que fosse daquele jeito. Sentindo-se vulnerável, necessitado... Exposto. O invisível se tornou visível ali.

    — Você tem certeza? Você nem sabe quem eu sou direito, que tipo de pessoa sou. Aposto que nem meu nome sabe. — retrucou com aspereza.

    — Claro que sim. Você é o moço do 14, que tem um gato. Seu nome... vou ficar devendo. O meu é Carola, a propósito. Muito prazer.

    — Eu sei quem você é. É minha vizinha há cinco

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