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A Célula Adormecida: Um silêncio aterrador está a crescer na sociedade
A Célula Adormecida: Um silêncio aterrador está a crescer na sociedade
A Célula Adormecida: Um silêncio aterrador está a crescer na sociedade
E-book562 páginas6 horas

A Célula Adormecida: Um silêncio aterrador está a crescer na sociedade

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Sobre este e-book

Um professor universitário vê-se envolvido num ato terrorista de dimensão mundial. As autoridades intervêm e interrogam-no. Mas enquanto as primeiras respostas começam a surgir, uma dúvida persiste: por que motivo continua ele a mentir?


Lisboa desperta para um cenário aterrador. Um bombista suicida barrica-se no interior de um autocarro e o novo primeiro-ministro é encontrado morto. Ao mesmo tempo, uma jornalista tão bela como deter- minada recebe um ultimato de um ente querido — é sua responsabilidade descobrir toda a verdade. 


Os Serviços Secretos portugueses reúnem provas e concluem que uma célula terrorista adormecida está pronta a ressurgir. Com um evento internacional a aproximar-se, pedem ajuda a Afonso Catalão, um reputado especialista em Ciência Política e Estudos Orientais, que já viveu no Médio Oriente. Mas é aí que acabam por deparar com um poço de mistérios e meias-verdades ainda mais negras do que o novo ataque que está prestes a acontecer. 


Passado durante os 30 dias do Ramadão, abordando temas atuais como a xenofobia e o racismo, A Célula Adormecida transporta-nos numa viagem deslumbrante por locais como Istambul, ou o interior da Mesquita Central de Lisboa. Inovador entre o género dos thrillers religiosos, este é não só um livro de leitura compulsiva e voraz, como também uma incursão temerária aos segredos mais recônditos da vida privada de um homem. 

IdiomaPortuguês
EditoraCultura
Data de lançamento22 de mai. de 2020
ISBN9789898979780
A Célula Adormecida: Um silêncio aterrador está a crescer na sociedade

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    A Célula Adormecida - Nuno Nepomuceno

    reedição.

    Preâmbulo

    Mar Egeu, ao Largo da Ilha Grega de Lesbos

    No Fim do Verão de 2012

    Um sentimento de angústia e desamparo apoderou-se do coração deles. Há muito que se encontravam à deriva, exaustos, deixados perdidos nas águas turvas do mar, entregues a um arbítrio que não compreendiam. Era de noite. A escuridão envolvia-os. E eles não mais acreditavam.

    Tinham abandonado tudo — o país, a família, a guerra e a própria vida. Mas naquela noite negra, amontoados num bote simples de borracha, uma promessa de esperança, o sonho de uma vida melhor, sobretudo em paz, esvaíra-se. A descrença derrotara-os e o sentimento de perda era tão vasto como o horizonte preto e imutável, que fitavam com alheamento: avassaladoramente infinito.

    O barco rangeu e vergou-se ainda mais, frágil sob o peso imenso que carregava, indefeso contra o poder das correntes. O motor estava mudo, sem combustível, condenado desde o início ao fracasso, tal como o grupo. O contrabandista que lhes vendera a viagem na Turquia cedo se atirara borda fora e regressara a nado para terra. Era um vendedor de sonhos e de quimeras inglórias.

    Aisha, uma mulher síria de olhos azuis e rosto moreno, beijou a testa do filho mais velho e afagou-lhe o cabelo, virando para o céu o rosto. Secos e gretados, os lábios moveram-se dolorosamente, orando, pedindo clemência, um sinal de algo que lhes permitisse subsistir.

    Ao seu lado, com Sarita, a filha de oito anos, adormecida de encontro ao peito, Sami, o marido, observou-a, mantendo-se em silêncio. Abraçou ainda mais as duas crianças. Ahmad, «o muito amado», aconchegou-se, abrindo com dificuldade os olhos puros e grandes que herdara da mãe. Tal como os outros, incluindo os bebés e idosos que os acompanhavam na viagem, estava desidratado.

    Sami contemplou o Sol que nascia sobre as águas calmas do mar. Tentou recordar-se, mas perdera a noção de há quanto tempo estavam em viagem. Ele e a família eram originários da cidade de Alepo, de onde tinham fugido para escapar à guerra civil que estava a reduzi-la a escombros, ou da miséria, do abandono e da indiferença que encontraram no campo de refugiados que depois os acolhera. Não era cobarde. Lutaria até ao fim por um futuro melhor, digno e seguro para a sua família.

    Um frémito repentino agitou a embarcação. Acompanhados pelo choro de um recém-nascido, alguns dos migrantes levantaram-se, apontando no sentido oposto ao do Sol que surgia nas suas costas.

    ‘Ard — gesticulava um homem. — ‘Ard, ‘ard, ‘ard — insistiu, utilizando a palavra árabe sinónimo de «terra».

    Sami despertou a filha. Agarrou nela, em Ahmad e na mulher. Os quatro tiveram de lutar por se equilibrar no bote sobrelotado. As pessoas levantavam as mãos para o céu, dando vivas em sinal de contentamento, fazendo oscilar a embarcação. Mas nada lhes importava, além da visão que se materializara no meio da água. Pouco distante, uma formação rochosa, enorme, repleta de pontos de luz, começava a surgir adiante, acolhendo-os. A euforia tomou conta do grupo. As preces de Aisha tinham sido atendidas. Alá, misericordioso e clemente, ouvira-a. Iriam finalmente chegar à Europa. Era o seu porto de abrigo.

    As manifestações de alegria foram interrompidas por um clarão azul e vermelho. Numa lancha, homens fardados de branco, com bonés na cabeça, aproximaram-se velozmente do bote. O som do motor confundia-se com o dos altifalantes que seguravam nas mãos. Gritavam alto, muito alto, em vocábulos incompreensíveis e pouco amigáveis.

    Sami sentiu um aperto dentro do peito e puxou Aisha para si, envolvendo Sarita e Ahmad entre ambos. Não compreendia o significado das palavras que eram gritadas pela guarda costeira grega, mas algo se tornou rapidamente claro: eles não eram bem-vindos.

    A lancha abordou-os e um homem atirou-se, tentando subir a bordo. Um dos oficiais afastou-o, pontapeando-o violentamente nas mãos. Mas o desespero sobrepôs-se às evidências e todos o imitaram. Só tinham uma oportunidade. Era aquela e mais nenhuma.

    Os guardas repudiaram o assalto e conseguiram empurrá-los, agitando o espaço de permeio entre eles. Algumas pessoas caíram na água, o bote começou a baloiçar perigosamente e o terror gerou-se. Até que o alvoroço terminou tão depressa como começara, dando lugar a um silêncio súbito, aterrador. Suspenso no ar pelos braços da mãe, um recém-nascido esbracejava e chorava por cima de todos eles. Ela era mesmo capaz de lançá-lo ao mar.

    O pânico instalou-se entre os polícias, cuja lancha se aproximou novamente. Os oficiais gregos esboçavam gestos apaziguadores, dirigidos a todos os migrantes, temendo o pior. Alguns dos homens tentaram subir outra vez a bordo, mas o acesso foi-lhes negado. Num gesto desesperado, a mulher começou a soltar bramidos em árabe, levantando o filho no ar, enquanto olhava para a água. Enlouquecera.

    Incapaz de se conter, Aisha soltou-se dos braços do marido e correu pelo bote, tentando salvar o pequeno anjo.

    Mama… — soluçou Sarita, agarrada à cintura do pai.

    Mas a iniciativa da mãe foi em vão. As duas mulheres debateram-se e o resto do grupo envolveu-se na disputa, divididos perante a desumanidade do ato.

    Subitamente, ouviu-se um som oco e Sami sentiu-se atordoado. Empurrada por alguém, a esposa, cujo nome significava «vida», acabara de embater violentamente com a cabeça no motor do barco.

    O marido correu para ela e segurou-lhe com as mãos trémulas o rosto manchado de sangue. Não respirava. A filha seguiu-o com esforço, irrompendo por entre os outros migrantes, e agarrou-se ao corpo morto de Aisha.

    O sonho conhecera um triste destino.

    Estocolmo, Suécia

    No Fim do Ano de 2013

    Sami olhou pela janela, surpreendido pelo manto branco que cobria o parque de estacionamento. Ainda não se habituara à neve. Era estranha, tal como a cidade fria que os acolhera. Estava a esforçar-se, só Alá sabia quanto, mas ainda sentia dificuldade em falar a língua, o que se tornara num problema para manter um emprego.

    Todavia, o pior de tudo acabavam por ser as pessoas. Ali, todos pareciam insatisfeitos. Apesar da pele branca e do cabelo dourado como o sol que queimava o deserto, não sorriam, ou sequer se cumprimentavam. Limitavam-se a passar uns pelos outros, com um ar tenso e os olhos fixos nos telemóveis estranhos e grandes que seguravam nas mãos.

    O homem ouviu bater à porta. Sentada no chão atrás dele, entretida a brincar com uma boneca de trapos que à chegada lhe fora oferecida pelas autoridades suecas, Sarita, a filha, levantou a cabeça e olhou-o, assustada. Era ela o seu único conforto. O longo cabelo castanho que lhe caía pelas costas lembrava-lhe cada vez mais o da mãe. Aisha sacrificara-se para os salvar a todos na noite em que tinham entrado na Europa.

    O seu ato de heroísmo ao defender aquele pobre bebé, cuja mãe ameaçava deitá-lo ao mar, valera-lhes o acolhimento. Sensibilizada, a guarda costeira grega conduzira-os a Lesbos, onde ficaram a viver durante alguns meses, à custa da generosidade da população local. Mas ali não havia vida para eles e quando a Alemanha decidira receber cinco mil pessoas por dois anos, ele não hesitara. Pegara nos filhos e seguira para Berlim.

    No entanto, a estadia durara pouco tempo. A Suécia oferecera-se para acolher 12 mil refugiados por tempo ilimitado. E fora assim que Sami se mudara novamente, dessa vez ainda mais para norte, rumo a Estocolmo. Diziam que a população tinha um espírito muito aberto. Talvez fosse verdade, embora na realidade continuasse a tratá-los como aquilo que efetivamente eram — expatriados.

    Sami trocou um olhar benevolente com Sarita. Tivera recentemente a primeira menstruação e agora devia cobrir o cabelo na presença de outros homens, que não fossem o pai, ou o irmão. Envergonhada, a menina assim fez, executando igual manobra na boneca com a qual brincava. Apesar da perda precoce da mãe, era uma menina de uma inocência e doçura imensas.

    O pai dirigiu-se à porta e abriu-a. Do outro lado, um homem não tão alto como ele, com barriga e também de tez morena, olhou-o por dois segundos e, seguidamente, abraçaram-se com força, batendo efusivamente nas costas um do outro. Jamil tornara-se num bom amigo. Conheciam-se da Síria e tinham voltado a encontrar-se. Sendo um refugiado da primeira vaga, dedicava-se agora a ajudar aqueles que, tal como ele, fugiam do país de origem.

    Os dois desfizeram o abraço e Sami acolheu-o no interior do apartamento modesto em que vivia. Sentia-se curioso relativamente ao que o trouxera até ali, uma vez que morava a mais de cinco quarteirões de distância. Mas eram boas notícias.

    — Portugal? — As palavras saíram-lhe lentamente dos lábios.

    Conhecia o nome. Sabia que era um país, situado algures na Europa, embora não tivesse a certeza onde.

    — Sim, Lisboa — confirmou Jamil, assentindo veementemente com a cabeça. — Muito boa gente.

    Sami olhou para o postal velho e amarrotado que o amigo segurava nas mãos. Uma família conhecida dele fizera o contacto. Yusef, o imã da Mesquita Central da cidade, ao ouvir falar nos seus talentos de cozinheiro, oferecera-se para lhe arranjar um emprego. Era num restaurante, tal como na Síria.

    — Sol. Boa gente — repetiu Jamil, batendo, entusiasmado, com o dedo no postal.

    O homem admirou a fotografia impressa. Mostrava um monumento antigo, com a forma de uma torre, que entrava pelo rio adentro. O céu e a água eram de um tom azul cristalino, mas foi o céu aquilo que mais o encantou: alegre, com uma luz inexcedível, tal como a terra que tão tristemente se vira forçado a deixar para trás.

    Sami olhou para a filha, que continuava sentada no chão, a sorrir para a boneca.

    — O que dizes, Sarita? Gostarias de ir para Portugal?

    — Como quiseres, baba.

    O homem olhou para Jamil e assim ficou, em silêncio, até que os lábios se abriram num sorriso rasgado, talvez o primeiro depois da morte de Aisha. Que assim fosse.

    — Aceito! Quando podemos ir?

    Satisfeito, o amigo foi para lhe responder, mas ao aperceber-se de uma presença súbita na sala, calou-se. Um adolescente, com penugem no rosto e umas íris tão azuis como as da falecida mãe, observava-os.

    — Ahmad, o Jamil encontrou-me um emprego em Portugal. Como cozinheiro, imagina só!

    O rapaz deixou-se ficar parado junto à porta do quarto onde dormia com o pai e a irmã. Não tinham espaço para mais. O rosto manteve-se fechado. Naturalmente calado, tornara-se ainda mais reservado depois de testemunhar a morte da mãe.

    Sami aproximou-se e mostrou-lhe o postal. Lisboa; talvez o seu muito amado soubesse onde ficava. Era tão inteligente. Foi para lhe tocar afetivamente no ombro. Ele aceitou a fotografia, mas esquivou-se ao gesto de carinho, ficando de pé a fitar o pai com uma expressão difícil de interpretar.

    Depois, refugiou-se no quarto, deixando a irmã e o pai a sós com o amigo. Puxou de uma caixa pequena que tinha debaixo da cama e abriu-a. Lá dentro, estavam duas fotografias, uma dele com a irmã, e outra, da mãe. Observou o postal que lhe fora dado, indeciso quanto a se haveria de guardá-lo lá dentro. Iam mudar-se novamente. Expressivos e grandes como os de Aisha, os olhos azuis encheram-se de lágrimas.

    Num gesto de impetuosidade, contendo um grito revoltado, rasgou o postal em pedaços. Os ocidentais infiéis tinham-lhe matado a mãe. Nunca sentira tanto ódio.

    Dois Anos e Meio Depois

    Noite das Eleições Legislativas em Portugal

    Último Dia da Lua Nova do Mês do Sha’baan, ou da Separação

    Véspera do Ramadão

    Campolide, Lisboa, Portugal

    Popularmente considerados como um sinal de mau agouro, um bando de corvos sobrevoou um espelho de água. A noite caía sobre a cidade e o lago, prateado, estremeceu à passagem das aves, que rumaram aos arbustos, onde se refugiaram.

    Acusadores, os pássaros assistiram à chegada de três vultos oriundos de norte. Vestidos de preto, traziam mochilas às costas e o rosto parcialmente coberto por um capuz, passando despercebidos. Nem sequer o pequeno café pelo qual passavam os detetou. Estava fechado.

    As figuras caminharam com à-vontade até ao fim do Jardim Amália Rodrigues. Notava-se pelo andar ligeiro, masculino e rápido, que se tratava de um grupo de rapazes. Assim que chegaram à bandeira, estacaram e olharam para cima. No topo de um mastro com mais de 30 metros de altura, um pano grande, verde, amarelo e vermelho, símbolo do orgulho nacional, ondulava devagar sob o efeito da brisa ligeira do entardecer.

    Os expressivos e grandes olhos azuis de um dos jovens sobressaíram no espaço aberto na balaclava que lhe cobria o rosto. Eram adornados por uma pele branca, mas morena, e por uma melena de cabelo castanho-claro que lhe caía teimosamente para a testa. Em silêncio, o rapaz respirou profundamente e contemplou as luzes que se acendiam na cidade. Lisboa escurecia velozmente, estendendo-se no horizonte, e a Baixa Pombalina, com a sua pureza geométrica idealizada pelo iluminista que a reconstruíra, desafiava o vulto, adormecida.

    Ele virou-se para os colegas, de idades semelhantes à sua, mas de raça negra. Sha’baan, o oitavo mês do calendário islâmico, terminava naquele dia. O Ramadão iniciava-se na madrugada seguinte. Era nele que Alá começara a revelar ao Profeta Maomé os escritos do Alcorão, o livro sagrado do Islão, e também o momento em que os seus fiéis, os muçulmanos, queimavam os seus pecados, tal como o sal queima a terra. O simbolismo não poderia ser maior.

    Com um movimento rápido, o rapaz dos olhos claros abriu a mochila e desfraldou um pano negro. Era dominado ao centro por um círculo branco, o selo histórico do Profeta, e pela inscrição que se lia por cima.

    Não existe outro Deus além de Alá.

    Envolto pela luz quente do sol que descia sobre a cidade nas suas costas, um homem ainda jovem, de cabelo preto, crespo e pele morena, rezava, prostrado, sobre um tapete de seda. Humilde, curvava-se perante Alá, entoando cânticos de perdão.

    Ibrahim levantou o tronco e permaneceu ajoelhado, virado para oriente. Palavras em árabe evadiam-se dos seus lábios em murmúrios ardentes, como chagas abertas no seu coração. Até então fechados, os olhos negros e redondos abriram-se.

    Assalaamu ‘alaykum — disse, virando o rosto para o lado direito, desejando que a paz estivesse com outrem. E repetiu-o, rodando a cara para a esquerda.

    Num derradeiro gesto de gratidão e humildade, com a palma das mãos virada para cima, em forma de concha, terminou a oração. Abriu os olhos. Duas lágrimas pesadas mancharam-lhe dolorosamente o rosto gentil e bondoso. Apenas encontrou conforto na visão do tapete sobre o qual orara. Rodeada de motivos florais, a parte superior representava Ka’aba, a casa de Alá localizada em Meca.

    Ibrahim enrolou metodicamente o sajada e guardou-o num armário velho, mas limpo, garantindo que permaneceria puro. Trocou-o por um colete repleto de sacos colados com fita adesiva, que colocou sobre o corpo. Ao lado, depositados num parapeito não muito distante, viam-se frascos de água-oxigenada, acetona e ácido. Guardou um detonador no bolso e fechou o casaco.

    A Mãe de Satanás vestia-o.

    Não muito distante, um outro homem bastante mais velho, montado numa bicicleta de corrida, serpenteava agilmente entre as árvores das avenidas amplas do bairro onde vivia. Fletindo uma das pernas, debruçado sobre o guiador, descreveu uma curva apertada e prosseguiu, perseguido pela penumbra. Nem sequer o Sol que se punha nas suas costas era capaz de o perturbar.

    Afonso Catalão abrandou gradualmente o ritmo e fez parar a bicicleta, saltando para cima do passeio junto a um prédio antigo, de pedra, restaurado recentemente, com uma pintura branca e amarela em bom estado, ornamentado com varandas de ferro verdes. Uma mulher vistosa e elegante passou por ele, em direção a um carro estacionado na mesma rua, deixando atrás dela um olhar interessado. Suficientemente bem parecido para não passar despercebido, o professor ignorou-a, ocupado a procurar as chaves de casa.

    Afonso desligou a aplicação para telemóvel que usava para controlar os treinos e entrou no prédio situado na esquina da Avenida Elias Garcia com a Marquês de Tomar, onde residia desde que regressara a Portugal, cinco anos antes. Transpirado, com o corpo naturalmente seco e atlético moldado pelo fato de licra que vestia, deixou a bicicleta na arrecadação e começou a subir as escadas.

    Simultaneamente, um homem idoso, ligeiramente curvado, com uma barba rala e comprida, que fazia lembrar a de um bode, descia os degraus em sentido contrário. Afonso ainda o cumprimentou educadamente, dando-lhe as boas-noites sem esconder o sotaque alentejano natural, mas, como sempre, o vizinho não retribuiu a saudação.

    O apartamento recebeu-o em silêncio, um sinal de que David, o meio-irmão, que passara recentemente a viver consigo, não se encontrava em casa. Era um domingo à noite, relativamente próximo da época de exames. Provavelmente, encontrar-se-ia na biblioteca da faculdade, a estudar. Preocupado, Afonso pegou no telemóvel e tentou contactá-lo. A sua juventude e manifesta irreverência, que o levavam a desafiá-lo constantemente, afligiam-no.

    Sem resposta, o professor dirigiu-se à cozinha, onde encontrou os óculos. Passou a mão pelo cabelo escuro, encaracolado e forte, e serviu-se de queijo, pão e duas romãs, que colocou sobre um prato, levando-o consigo para a sala de estar.

    Ao ligar a televisão, o ecrã encheu-se repentinamente com a imagem de uma criança morta, encontrada afogada, deitada sobre a areia escura de uma praia algures na costa anatoliana da Turquia, como se estivesse a dormir pacificamente na cama. A voz que narrava a notícia em inglês assinalava que aquela era a segunda vez num curto espaço de tempo que algo tão vil acontecia, relembrando o caso de Alan Kurdi, o menino sírio cuja fotografia tirada em circunstâncias semelhantes emocionara o mundo durante do outono de 2015.

    O êxodo continuava e a tragédia persistia em navegar entre as águas revoltas do Mar Egeu. Um desastre de dimensão regional metastizara numa catástrofe global. Por mais que os políticos tentassem, fosse esse esforço genuíno ou não, a humanidade ultrapassara o limite da salvação. O ódio que nascia de mártires como aquela criança, iria, mais cedo ou mais tarde, explodir no Ocidente.

    No meio de um salão sobrelotado, um homem com a barba perfeitamente aparada e o cabelo cortado de modo elegante apertou a mão a uma pessoa que não reconheceu imediatamente. Sorriu-lhe, afável, no centro das atenções, só reparando de seguida que se tratava do seu vice-presidente.

    O jovem Partido Central, cujo cargo de secretário-geral Henrique Brandão Melo passara a ocupar dois anos antes, acabara de conquistar uma vitória conclusiva nas eleições legislativas portuguesas. As suas políticas moderadas, simultaneamente liberais, mas não excessivamente, a favor da tolerância ideológica e da concertação social, sem descurar o crescimento económico e consequentes interesses capitalistas, tinham conseguido convencer o eleitorado, prometendo, assim, tornar-se num caso único de sucesso numa Europa cada vez mais cética, egoísta e extremista. Seria ele o próximo primeiro-ministro. As sondagens iniciais confirmavam-no. O governo anterior sofrera uma clara derrota.

    Abraçado inesperadamente pelo seu vice-presidente, Henrique aconselhou-o a serem cautelosos. Geria as ambições com prudência e preferia esperar até que estivesse apurado um número maior de freguesias. Era, por isso, importante que a imprensa fosse mantida longe daquela sala. Não falaria com ninguém antes das dez horas da noite, esperando que todos, incluindo o homem pequeno que tinha defronte, se comportassem da mesma forma.

    Dececionado, deixado sozinho no salão, Bernardo Mendes ficou a ver o presidente afastar-se, começando a subir as escadas em direção ao primeiro andar. O seu pessimismo era despropositado. A vitória estava assegurada e aquele era o momento para festejar e celebrar acordos. O seu trabalho, o empenho que colocara na campanha, não seria desperdiçado. Determinado, começou a cumprimentar todos os presentes no salão do partido, começando pelos empresários. Havia que cair nas boas graças. Uma muito ansiada corrida aos cargos de poder estava prestes a começar. Os amigos antigos eram agora seus adversários e ele tinha de garantir que não seria deixado para trás.

    Imune ao cinismo e ganância que infelizmente conhecia demasiado bem, Henrique entrou no gabinete e fechou a porta atrás de si, desapertando o nó da gravata, enquanto ligava a televisão. Sentia um prurido persistente na garganta, fruto das duas semanas exigentes de comícios, viagens e debates inflamados em que participara.

    O telemóvel, deixado em modo silencioso, começou a vibrar no bolso interior do casaco. Era a segunda vez naquela noite que um número não identificado tentava contactá-lo. Sem pensar duas vezes, rejeitou a chamada com um gesto rápido e virou-se para a janela, entretido a brincar com a aliança. Escurecia lá fora.

    Pousado sobre a secretária, o telemóvel vibrou novamente. Henrique olhou de soslaio para o aparelho, mas percebendo que se tratava de uma mensagem multimédia da sua mulher, desbloqueou-o.

    Desculpa não estarmos contigo, papá. Amanhã é dia de colégio. Gostamos muito de ti. És e serás sempre o nosso «primeiro-amigo», lia-se na legenda de uma fotografia.

    O futuro governante do país esboçou um sorriso amargo ao ver as duas filhas, uma com quatro anos de idade, outra, ligeiramente mais velha, de pijama, com as faces rosadas e o cabelo penteado com totós.

    Amo-vos muito às três. Nunca se esqueçam disso. Desculpem-me., retribuiu.

    Imediatamente a seguir, uma nova mensagem de Constança, a esposa, fez estremecer o telemóvel, estranhando o pouco nexo da resposta do marido. Mas o marido ignorou-a. A sua atenção estava inteiramente concentrada no ecrã da televisão que tinha no escritório. Nele, o seu antecessor, o ainda primeiro-ministro, discursava em direto, admitindo a derrota, dando-lhe os parabéns. Ele era o grande vencedor da noite.

    Henrique baixou os olhos e retirou um computador portátil de uma das gavetas da secretária. Com uma grande algazarra de contentamento a ouvir-se bem alto, vinda do andar de baixo, fitou o ambiente de trabalho, deixando ficar o cursor sobre um ficheiro de texto.

    Apagou-o e começou a escrever um novo discurso.

    Era a sua demissão.

    Sultanahmet, Istambul, Turquia

    Basílica de Santa Sofia

    Mais Duas Horas do que em Lisboa

    Sob um teto de nuvens tenebrosas e pesadas, repletas de tensão, uma carrinha de transporte coletivo encostou ao passeio, junto a um edifício ancestral. Uma aura plácida, quase sagrada, como o brilho solene de um ancião sábio, parecia revestir o monumento.

    Holofotes colocados sobre as paredes iluminavam suavemente a fachada em tons de coral. Uma cascata de pequenas cúpulas sobrepunha-se numa sucessão ascendente de túmulos e outros anexos, até terminar num imponente domo central. E em cada flanco, esculpidas com a forma de lápis, rompiam o céu quatro almádenas, ou minaretes, as torres que em tempos eram utilizadas pelos muezins para anunciarem os cinco chamamentos diários para a oração.

    Ayasofya começara por ser uma igreja ortodoxa. A conquista otomana da cidade, 900 anos depois, convertera-a numa mesquita, mas desde 1934 que fora secularizada e transformada num museu, resistindo há quinze séculos à passagem do tempo. A antiga catedral era intemporal.

    Um homem musculado, que carregava uma mala grande, e duas mulheres, uma das quais com o cabelo coberto por um lenço azul-cobalto, saíram da carrinha e foram acolhidos por um guia, que os convidou a segui-lo até ao interior. O cortejo atravessou o pátio arborizado e mergulhou rapidamente numa antecâmara ao transpor a Porta do Imperador, que se diz ter sido construída com madeira da Arca de Noé.

    Plenamente iluminada, uma nave central revestida a mármore pórfiro, negro e dourado, com pilares colossais, apresentou-se ao grupo. Caraterizava-se de forma única por uma fusão incomum de símbolos cristãos com frisos e medalhões escritos em árabe.

    Diana Santos Silva, uma jornalista portuguesa de visita à Turquia para uma série de reportagens especiais, compôs o véu que lhe tapava o longo cabelo ruivo e admirou com os olhos amendoados a sofisticação da capital do antigo Império Bizantino. Rodeada por vitrais coloridos, estava sob uma abóbada com mais de 50 metros de altura e assente em quatro pendentes esféricos.

    — Diz-se que o imperador Justiniano, quem a encomendou, ao entrar aqui pela primeira vez, após ver a sua obra-prima construída, terá exclamado: «Oh, Salomão, eu ultrapassei-te!» — explicou-lhe o guia, com um sotaque inglês forçado, vendo-a maravilhada, referindo-se ao rei israelita tornado célebre pela opulência do seu templo.

    — O que é que está escrito lá em cima? — inquiriu ela, apontando para o teto, onde carateres árabes guardados por quatro anjos com asas castanhas, como as de pardais, se destacavam ao centro.

    — «Allah é a luz dos Céus e da Terra.» A basílica não só é dotada de excelentes efeitos acústicos, como também de uma iluminação extraordinária. Os arquitetos que a construíram no século V d.C. tiveram como objetivo representar o espelho do Céu.

    Fitando um mosaico com figuras cristãs que se via ao alto, Diana começou a remover da cabeça o lenço, preparando-se para colocar uma nova questão.

    — O que...

    — Deixa-o estar — interrompeu-a Pedro, o operador de câmara. — Fica a condizer — insistiu ele, entretido a filmá-la com a máquina que trouxera na mala.

    Mais resguardada, Raquel, a assistente de produção que os acompanhava na viagem a Istambul, fez-lhe um sinal de concordância. Contrariada, a jornalista acedeu. O museu não era uma mesquita. Só cobrira o cabelo devido à humidade miúda que caía na rua e porque isso lhe parecera mais respeitoso.

    Os três tinham ido à Turquia no âmbito de uma reportagem sobre as condições de vida dos refugiados e para investigarem a forma como o governo local estava a aplicar o acordo de extradição e recolocação previamente celebrado com a União Europeia. Na madrugada seguinte, regressariam a Lisboa. Aquela era a última noite que passavam em Istambul e tinham-na aproveitado para colherem algumas imagens e fazerem uma peça sobre a principal atração da cidade. Era algo que ficaria sempre bem no fecho da edição da noite.

    — Gostaria de visitar o Olho de Maria? — O guia esboçou com as mãos um gesto amplo, tentando ser conciliador, ao reparar na centelha de ódio que faiscava no olhar da jornalista. — É a atração preferida dos turistas.

    — Sim, por favor, leve-nos até lá — pediu ela, tentando mostrar-se grata.

    A Basílica do Santo Conhecimento, o nome grego antigo original de Ayasofya, um vestígio do povo que fundou Bizâncio, normalmente, estaria fechada àquela hora. Tinham obtido uma autorização especial da parte do governador de Istambul, para poderem filmar de noite e não iriam desperdiçar a oportunidade por causa da animosidade existente entre ela e o colega.

    O homem conduziu-os ao longo da nave, levando-os até à ala noroeste. Um orifício que se assemelhava a um olho franzido observava-os, indiferente. Era rodeado por um círculo de pedra branca, tapado à volta com placas de bronze, assente na base de uma coluna imponente de marfim. Dizia-se possuir poderes curativos extraordinários, sobrenaturais, permanecendo húmido desde que São Gregório, o Milagreiro, ali estivera em 1200 d.C.

    Raquel voltou a fazer-lhe um sinal e Diana preparou-se, colocando-se ao lado do pilar com um microfone na mão, de modo a que o operador de câmara pudesse incluí-la no plano, sem tapar a atração. Consultou rapidamente num iPad as notas que preparara, entregou-o à assistente e começou a falar:

    — O misticismo que carateriza Ayasofya está bem patente neste local. São várias as lendas existentes sobre ele, bem como os nomes pelos quais é conhecido. Mas se um dia visitar esta antiga catedral, prepare-se para aguardar vários minutos numa fila, para simplesmente tocar neste buraco.

    »Uma das histórias que é contada diz que a Coluna das Lágrimas, como também se pode designar o pilar, fez em tempos parte da casa da Virgem Maria. Quando a mãe de Jesus soube que o filho iria ser crucificado, terá chorado tanto, que o encheu de humidade. A partir desse momento, as fábulas cresceram e muitos passaram a acreditar que se lá introduzirmos o nosso dedo e este sair molhado, todas as nossas preces serão atendidas. Vamos experimentar?

    Diana convidou o telespetador a segui-la.

    — Não terei tanta sorte — concluiu, mostrando à câmara um indicador completamente seco.

    — Corta! — ordenou Raquel. Estava satisfeita. — Ficou ótimo. Podemos regressar à nave central? — pediu a Pedro, começando imediatamente a andar. — Tive umas ideias para mais filmagens.

    O guia deixou-se ficar junto à jornalista portuguesa e sorriu-lhe de forma algo tímida. Parecia simpatizar com ela.

    — Sabe — resolveu interpelá-la —, também dizem que se lá introduzirmos o polegar e conseguirmos rodar a mão num arco completo de 360 graus, ficaremos curados de todas as nossas maleitas.

    — Percebe português? — A jornalista estava surpreendida.

    — Um pouco. O povo turco tem alma de comerciante. Estamos habituados a desenvencilhar-nos em qualquer língua, por pior que seja o nosso sotaque — gracejou.

    Vendo Raquel chamá-la, impaciente, Diana olhou-o com algumas reservas.

    — Não... Não estou doente — tartamudeou inesperadamente. — Devo ir. A minha produtora tem pressa.

    O homem observou-a com uma expressão curiosa, quase transcendente, como se conseguisse ver através dela, naquilo em que realmente estava a pensar.

    — Encontra-se em solo sagrado, seja qual for o seu credo, ou o nome que dê a este edifício. Experimente.

    Diana armou um sorriso confiante, escondendo habilmente o nervosismo súbito que a assolara. Sem hesitar, introduziu no Olho de Maria o polegar, encostando ao marfim a palma da mão.

    O pulso começou a rodar.

    Lisboa, Portugal

    Menos Duas Horas do que em Istambul

    De casaco vestido e visivelmente apático, Ibrahim chegou à rua e começou a caminhar pelo passeio. Era um domingo à tarde do fim do mês de maio e a avenida principal tinha pouco movimento. Os automóveis desfilavam amiúde, evoluindo devagar, e algumas pessoas andavam sobre o passeio, entre as quais um casal.

    O rapaz viu-os passar, abraçados, sorrindo um ao outro. Carregavam nas mãos sacos, provavelmente com o jantar que iriam partilhar juntos, o que despertou nele uma pontada de inveja e ciúmes. Deprimido, encostou-se ao tronco de uma árvore e resolveu aguardar. Não teve de fazê-lo durante muito tempo. Ao longe, um autocarro com publicidade a um canal noticioso de televisão, na qual se via o rosto de uma mulher de cabelo ruivo, começou vagarosamente a descrever uma curva e avançou até ele, parando, finalmente.

    Ibrahim entrou, observou rapidamente os restantes passageiros e sentou-se num lugar junto à janela, mesmo à frente de um rapaz com o cabelo encaracolado e com aspeto de ser universitário. As fachadas de Lisboa começaram a passar por si — primeiro, os prédios; depois, o edifício revestido por tijolo vermelho do Campo Pequeno; a seguir, a Praça Duque de Saldanha.

    O autocarro interrompeu momentaneamente a marcha, deixando subir a bordo uma mulher. O muçulmano fitou, horrorizado, o menino que vinha pela sua mão. Caminhava com dificuldade, aos tropeções, divertido, com os braços no ar, como se estivesse a testar o equilíbrio. Inocente, a criança sorriu-lhe.

    Ibrahim levou uma mão ao peito, para aconchegar os explosivos que carregava presos ao corpo, debaixo do casaco que vestia. Homónimo do profeta Abraão, levantou-se e começou a abri-lo. A chorar, invocou que Deus era grande e gritou fervorosamente:

    Allahu akbar!

    Sentado na sala de estar, em frente à televisão, Afonso voltou a pegar no telemóvel e telefonou ao meio-irmão, alheio às notícias que passavam no ecrã sobre a cimeira da NATO, que Lisboa iria receber dali a um mês. Sentia-se perturbado pela imagem da criança morta que vira antes e a impossibilidade de falar com David só estava a deixá-lo ainda mais angustiado.

    Novamente sem sucesso, o professor Catalão pousou o aparelho no sofá e mudou para um canal português, mesmo antes de ir tomar banho. Apesar de ser especialista em Ciência Política, observou com pouco entusiasmo o que o jornalista relatava excitadamente. De acordo com as projeções mais recentes, Henrique Brandão Melo, o candidato a primeiro-ministro que já liderava as sondagens pré-eleitorais, superara todas as expetativas, indo alcançar a maioria absoluta na Assembleia da República.

    Afonso notou uma perda de luz acentuada e súbita no interior do apartamento. Anoitecia no exterior, mas a velocidade a que acontecera fê-lo sobressaltar-se. Assustado, levantou-se e correu para as janelas. Tomado por um mau presságio, teve de esforçar-se para compreender aquilo que via para além dos vidros.

    Eram corvos. Negros como as trevas, um bando enorme voava pela rua.

    Arrepiantes e sinistros, escondidos no meio de um arbusto, os olhos de uma ave de mau agoiro observavam um jovem no topo de um mastro. Com destreza, rasgava a bandeira do país que o acolhera e substituía-a por uma negra e branca.

    Um corrupio de carros munidos de luzes azuis incandescentes passou na estrada. Os automóveis circulavam a grande velocidade, sem sequer se aperceberem do trio de jovens que acabara de vandalizar o monumento nacional. Assustando-se, o corvo levantou voo, lançando-se sobre o Parque Eduardo VII, o bonito jardim rebatizado com o nome do rei de Inglaterra aquando da sua visita a Portugal.

    A ave não poderia confirmar melhor as crenças premonitórias que reinam sobre a espécie. Lá em baixo, na rotunda circundante ao monumento erigido em honra do Marquês de Pombal, um autocarro permanecia imobilizado. Atrás deles, alguns carros acumulavam-se, outros desviavam-se e muitos buzinavam. Já ali se encontrava há alguns minutos, obstruindo a circulação, indiferente ao ligeiro congestionamento que estava a provocar numa das principais praças da capital portuguesa. Tinha a porta da frente aberta.

    Ainda mais estranho do que esse facto, não sofrera qualquer tipo de avaria.

    Pior do isso, ninguém entrava, mas também ninguém saía.

    Vestido com roupas práticas e informais, com o cabelo forte ainda húmido, Afonso entrou na sala de estar, apressado. Pousado sobre as almofadas do sofá, onde o deixara, o telemóvel tocava insistentemente.

    — Ah, olá... — acabou por dizer, com algum desânimo.

    O silêncio momentâneo que se instalou do outro lado serviu apenas para disfarçar o desapontamento profundo e nítido da sua interlocutora.

    — Estou a incomodar-te?

    A voz que conversava com ele fazia-o num tom pausado e grave, contudo, feminino.

    — Não, desculpa, pensei ser o David. Ainda não chegou a

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