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Medida Provisória e Tributação: a Reserva de Lei na Teoria dos Direitos Fundamentais e na Doutrina dos Precedentes Judiciais
Medida Provisória e Tributação: a Reserva de Lei na Teoria dos Direitos Fundamentais e na Doutrina dos Precedentes Judiciais
Medida Provisória e Tributação: a Reserva de Lei na Teoria dos Direitos Fundamentais e na Doutrina dos Precedentes Judiciais
E-book322 páginas4 horas

Medida Provisória e Tributação: a Reserva de Lei na Teoria dos Direitos Fundamentais e na Doutrina dos Precedentes Judiciais

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Sobre este e-book

Nesta obra, o autor busca demonstrar a divergência existente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que oscila bastante no tratamento do princípio da reserva legal em matéria tributária. Ora é admitido o tratamento dos aspectos ou critérios da hipótese de incidência tributária por meio de medida provisória, ora o STF impõe um estrito regime de reserva de lei complementar e de lei ordinária para criação ou majoração de tributos. À luz da teoria dos direitos fundamentais, essa oscilação de posicionamento do Supremo Tribunal Federal deve ser solucionada em favor de uma interpretação mais rígida, mais protetiva dos direitos e garantias individuais do cidadão contribuinte, em detrimento do uso da medida provisória pelo Poder Executivo ao se instituir ou majorar tributos. Da mesma maneira, sob o enfoque da doutrina dos precedentes judiciais, as exigências de segurança jurídica exigem uma superação dos precedentes autorizadores do uso da medida provisória em matéria tributária, partindo-se de uma interpretação pautada num "originalismo garantista" do Texto Constitucional.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento11 de fev. de 2021
ISBN9786558778479
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    Medida Provisória e Tributação - Parcelli Dionizio Moreira

    tema.

    1. DO ESTADO ABSOLUTO AO ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO: DO CONFISCO AO PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

    1.1 DA ANTIGUIDADE ATÉ O ESTADO ABSOLUTO

    Na Antiguidade Clássica do Ocidente, a tributação não era uma atividade organizada, fundada em princípios historicamente desenvolvidos, tampouco havia qualquer noção de garantias reivindicáveis pelos indivíduos que sofriam a ação fiscal dos governantes, a ponto de poder ser considerada mais um desdobramento do poder de fato que uma pessoa ou grupo de pessoas exercia sobre os demais. Nessa quadra da história, as exações ou tributos eram, basicamente, exigidos apenas em circunstâncias incomuns, geralmente para financiar as guerras¹.

    O que existia era uma oscilação de períodos de perseguição e de tributação confiscatória, seguidos por reformas que, normalmente, aliviavam, ainda que brevemente, a severidade da ação fiscal dos tiranos da época. Se na Grécia antiga, a opressiva tributação praticada pelos tiranos era uma desgraça com a qual os gregos conviviam, por outro lado havia figuras como Aristides, conhecido pelas suas ideias de equidade fiscal², além de Sólon, estadista e legislador grego mais antigo a implementar um esboço de tributação progressiva (B. C. 596)³.

    Em Roma, a construção do império ergueu-se sob a base das conquistas para além da região que hoje compreende a Itália e também à custa do trabalho escravo dos povos dominados pelos romanos. Porém, durante o período da República, foi necessário, de tempos em tempos, arrecadar dinheiro para continuar uma guerra ou para financiar alguma melhoria pública, o que era feito com um imposto pessoal direto chamado tributum, o qual era cobrado de cada cidadão conforme a proporção da sua riqueza. No entanto, essa figura caiu em desuso, e depois de 167 B. C. não foi mais coletado. Dessa época até o reinado de Augusto, os cidadãos romanos estavam isentos do pagamento de impostos diretos⁴.

    Na República romana, a tributação estava nas mãos dos publicani, que eram agentes do fisco romano que utilizavam de métodos opressivos na cobrança dos tributos. Entretanto, Roma dependia desses agentes, visto que não havia sido desenvolvido outro método de arrecadação, o que acabava tornando as necessidades financeiras da República romana prioritárias. Os métodos violentos dos publicani somente foram substituídos com a adoção de um sistema tributário flexível na gestão de Júlio Cesar.

    Já durante o império romano, havia poucos representantes do governo central nas províncias. A coleta de impostos e a distribuição da carga tributária era feita por intermediários, os quais eram proprietários de terras prósperos e conselheiros municipais locais (decuriones). O governo central, no Alto Império, não tinha relação direta com os contribuintes, cingindo-se a simplesmente fixar o valor total do imposto que cada cidade e o seu entorno deveriam pagar. E eram justamente os intermediários locais quem determinavam quem deveria pagar o quê, com base em uma declaração pública do valor de cada propriedade, o que dava amplo espaço para abusos, uma vez que o poder político estava concentrado nas mãos daqueles que mais poderiam se beneficiar com uma má distribuição da carga tributária⁶.

    Além de outros fatores como as invasões bárbaras, um elemento crucial que contribuiu para a queda do império romano foi a evasão fiscal. Havia uma suficiente riqueza na sociedade romana à época do império, bastante para financiar as forças militares. Entretanto, essa riqueza acumulou-se nas mãos daqueles que conseguiam se evadir da ação do fisco romano. Esse problema começou com as reformas econômicas e sociais de Diocleciano, que aumentaram as exigências fiscais para sustentar uma monstruosa burocracia, o que, por sua vez, estimulou a evasão fiscal.

    A queda do império romano provoca uma fragmentação do poder no vasto território europeu, dando origem a um direito pré-moderno de formação não-legislativa, caracterizado pela ausência de um sistema unitário e centralizado de governo, bem como pela pluralidade de fontes que regulavam os diversos povos que outrora estavam sob o domínio de Roma. Paralelamente à fragmentação, o poder se deslocava para a Igreja, à medida que a religião cristã arrebanhava cada vez mais fiéis.

    É preciso lembrar, nessa ordem de ideias, que o grande centro civilizatório da Idade Média foi o mosteiro, especialmente o isolado mosteiro rural, com suas oficinas, suas técnicas artesanais e artísticas, com sua biblioteca (acessível aos membros do clero, por óbvio), com seus monges e dependentes de todo tipo, um modelo econômico sustentado numa vida espiritual, o que destaca a precariedade do Ocidente medieval, que relega a segundo plano os espaços urbanos, os quais, embora existentes, também gravitavam em torno de bispos e de paróquias que se formavam no interior de dioceses, sem contar a presença religiosa nas villas das aristocracias fundiária e militar⁸.

    A Idade Média também foi marcada pelo advento das Cruzadas e pela feudalização, uma consequência do esgotamento da política de conquista de terras baseada nas guerras entre senhores feudais. A feudalização, conforme ressalta Norbert Elias⁹, é um fenômeno histórico do Ocidente, que se caracteriza pela grande descentralização de governo e território, pela transferência da terra, do controle do suserano conquistador para o da casta guerreira como um todo, ou seja, passou-se de uma realidade das sociedades agrárias marcadas pela forte autoridade central para uma outra realidade em que as forças centrífugas assumem um papel predominante.

    O período medieval introduz um modo de poder pessoal sobre os seres humanos (o senhorio), uma realidade social que estava profundamente enraizada na cultura bíblica e na legislação romana que precederam o Medievo, florescendo com a proliferação de sistemas de posse condicional e persistindo firmemente como um elemento de status de elite e privilégio. No período de 850 a 1050, o senhorio já era uma instituição venerável, dotada de atributos que influenciaram poderosamente sua história posterior e era fundado na teologia da própria desigualdade enraizada na experiência do mundo antigo, dominado pela figura do pater familia, pela subserviência e pela escravidão¹⁰.

    Para Georges Burdeau¹¹, o período feudal foi um regime complexo em que se conjugavam um estatuto de bens, uma forma de fidelidade política e um estado de espírito que funda as relações entre os homens, elementos que se associam também à dependência pessoal, aos laços sociais individualizados, que tiveram primazia sobre um modelo de norma abstrata e genérica no arranjo da estrutura do grupo, sobretudo porque a circunstância impedia que os espíritos concebessem abstrações, à medida que se interessavam apenas pelo concreto.

    É importante frisar que no período pré-moderno, sobretudo o que corresponde à época feudal, os reis eram forçados a delegar a outros indivíduos poderes sobre parte de seu território, já que as condições dos meios militares, econômicos e de transporte nesse curso da história não lhes deixavam alternativas, pois a organização da sociedade não lhes proporcionava fontes de receita tributária que lhes permitissem manter um exército profissional ou delegados oficiais remunerados em regiões remotas¹².

    Nada obstante, era bastante comum, em termos de exações, a aliança entre reis e a Igreja. Num primeiro momento, os tributos foram cobrados para financiar as campanhas das Cruzadas. Entretanto, o que se nota, segundo o relato de historiadores que serão adiante estudados, é um modelo bastante peculiar de tributação que, embora ainda bastante primitivo, começa a se desenvolver nas ilhas britânicas.

    No período medieval não havia propriamente uma carta de direitos de cidadania nos reinos cristãos da Europa. Os judeus, por exemplo, eram perseguidos e sobre eles recaia pesadas exigências fiscais (fiscus judaicus, uma ideia que foi engendrada na Idade Média, mas que perdurou na Europa, praticamente, até o século XX, com a queda do regime nazista). Essas exigências eram rigorosas mesmo que, ao final, a Coroa inglesa pretendesse, através da tributação da usura, alcançar o patrimônio de barões normandos, que não eram tributados diretamente, mas que, ávidos por empréstimos obtidos dos judeus, acabavam contribuindo indiretamente para a arrecadação. Por outro lado, havia o confisco de propriedades rurais por violações praticadas contra o rei, além de tributos sobre alienação de terras e, ainda, imposições tributárias que eram exigidas para se exercer o direito ao casamento. Ainda existia o royal fish, que era um imposto cobrado dos pescadores que atuavam na costa inglesa, sob o pretexto de a Coroa prestar o serviço de proteção contra piratas e saqueadores¹³.

    No Edito de Paris do ano 614 da Era Cristã emergira a proibição de exigir quaisquer tributos inauditos (exactio inaudita), um tratado entre diversos reis que eram rivais entre si – entre eles, reis do norte europeu, da França e da Germânia. Esses reis compunham o reino franco que controlava a Europa naquele período. As diretrizes do Edito de Paris viriam a ser retomadas na Magna Charta Libertatum, ao tempo do reinado de João-sem-Terra (1215). O rei estava a tributar pesadamente os barões com o scutage (um tributo que era cobrado como substituto do serviço militar obrigatório) e também com a tallage (tributo que recaia, a princípio, sobre a terra, mas que também representava um poll tax, além de ser usado de forma genérica). Em razão do excesso de exações, os barões obrigaram o rei inglês a obter o consentimento deles caso pretendesse coletar novos tributos (no scutage or aid shall be imposed in our realm, save by the Common Council of our realm). No início, bastava um cavaleiro ou barão para se opor à cobrança a fim de que o tributo não fosse exigido. Anos mais tarde, o tributo só poderia ser coletado se a maioria dos barões consentisse com a exigência¹⁴.

    Em 1297, essa proibição dirigida ao rei foi mais explicitamente corroborada e incorporada em forma de lei através da ação dos parlamentares ingleses da época, que acabaram editando um ato que estabelecia que nenhum tributo deveria ser cobrado pelo soberano sem o consentimento dos cavaleiros, dos burgueses (burgesses) e também dos cidadãos reunidos no Parlamento¹⁵.

    No século XIV, havia, por exemplo, o recolhimento de um tributo eclesiástico (annates), que era um imposto sobre a renda do primeiro ano (primeiros frutos) de um benefício eclesiástico dado por um novo titular ao bispo ou ao papa, prática cuja primeira menção aparece no papado de Honório III (falecido em 1227). Tratava, por vezes, de um privilégio concedido ao bispo por um certo período e um direito baseado em precedentes imemoriais. Os papas, não raro, reivindicavam o privilégio para si mesmos, a princípio apenas temporariamente para atender a necessidades financeiras específicas. Dessa forma, em 1305, Clemente V reivindicou os primeiros frutos de todos os benefícios vagos na Inglaterra e, em 1319, foi a vez de João XXII reclamar o tributo. O sistema nunca foi aplicado de maneira uniforme ou eficaz em todos os territórios da Igreja e foi causa de muitos protestos. Entretanto, em 1534, Henrique VIII reivindicou para si os annates ingleses para a Coroa da Inglaterra¹⁶¹⁷.

    Essas práticas exacionais não eram sustentadas numa estrutura burocrática em que o suserano pudesse confiar a execução de tarefas atreladas ao exercício do poder e subordinada, abstratamente, a regulamentos e normas às quais os funcionários reais tivessem que obedecer e aplicar aos governados, apesar da existência de normas emanadas do Edito de Paris de 614 e a própria Charta Magna de 1215. Nada obstante, começa a emergir na Europa, como afirma Burdeau, uma dissociação possível da autoridade e do indivíduo que a exerce¹⁸, o que culminará na institucionalização do poder através do Estado.

    Nessa fase pré-moderna, as relações entre a liberdade e o tributo podem ser captadas, inicialmente, no Estado Patrimonial, que se desenvolve desde o colapso do feudalismo até o fim do absolutismo, cuja derrocada se iniciaria a partir dos movimentos revolucionários do século XVIII:

    O Estado Patrimonial, que surge com a necessidade de uma organização estatal para fazer a guerra, agasalha diferentes realidades sociais – políticas, econômicas, religiosas etc. Mas a sua dimensão principal – que lhe marca o próprio nome – consiste em se basear no patrimonialismo financeiro, ou seja, em viver fundamentalmente das rendas patrimoniais ou dominiais do príncipe, só secundariamente se apoiando na receita extrapatrimonial de tributos; mas a característica patrimonialista não decorre apenas dos aspectos quantitativos, posto que o fundamental é que o tributo ainda não ingressava plenamente na esfera da publicidade, sendo apropriado de forma privada, isto é, como resultado do exercício da jurisdictio e de modo transitório, sujeito à renovação anual. No Estado Patrimonial se confundem o público e o privado, o imperium e o dominium, a fazenda do príncipe e a fazenda pública.¹⁹

    No patrimonialismo, o príncipe organiza seu poder político, ou seja, sua dominação não-doméstica, a partir do emprego da coação física contra os dominados, exercendo o poder sobre seus territórios e pessoas extrapatrimoniais (os súditos políticos), da mesma forma que exercitava seu poder doméstico, momento em que se identifica uma formação estatal-patrimonial e também uma gestão patrimonial do senhor²⁰.

    A burocracia ou o corpo profissional de funcionários do Fisco tecnicamente habilitados ao exercício do cargo público, capacidade essa atestada pelos exames e certificados exigidos para o ingresso no serviço público, indicadores de uma administração burocrática racional, não se apresenta no patrimonialismo com essas características, à medida que predomina um aparelhamento próprio moldado à imagem e semelhança do estamento político no poder:

    Não se converte, o estamento político, entretanto, em governo de soberania popular, ajustando-se, no máximo, à autocracia com técnicas democráticas. Na cúpula, graças ao equilíbrio ou à impotência de classes e interesses de empolgar o comando, o governo arma, sobre o equilíbrio das bases, o papel de árbitro, sem que se possa expandir na tirania aberta ou no despotismo sem medida e sem controle. Uma política econômica e financeira de teor particular, estatal e mercantilista, atua e vigia, se expande e se amplia, com sobranceria.²¹

    No contexto de transição do feudalismo para a modernidade, Machiavelli (1469-1527) inova ao conceber as formas de governos apenas em duas, o que é logo enunciado no início em sua principal obra, O Príncipe, ao afirmar que todos os Estados, os domínios que já houve e que ainda há sobre os homens foram, e são, repúblicas ou principados²², mas sua inovação não se resume à dualidade das formas de governo, principados ou repúblicas, destacando-se principalmente a introdução, pela primeira vez no contexto da teoria política, da expressão Estado.

    A nova palavra Estado designou certamente algo novo porque, a partir do Renascimento no continente europeu, as poliarquias do período medieval, que antes se apresentavam imprecisas no território e cuja coerência era frouxa e intermitente, converteram-se em unidades de poder contínuas e organizadas, com exército permanente, uma hierarquia de funcionários e uma ordem jurídica unitária²³.

    Machiavelli concebia a política como uma atividade autônoma, ou mesmo soberana, que acaba por engendrar, sob o império do instinto de poder e da necessidade, sua própria ética utilitária e empírica, legitimando, em certos casos, o recurso ao mal, compreensão essa que o levou a considerar o Estado, o efetivo titular do poder, como um valor supremo, fonte única da moral e do direito, autoridade indiscutível dentro do território que o abarca e que, no plano externo, não reconhece quaisquer autoridades superiores aos seus próprios interesses vitais²⁴.

    O surgimento da concepção moderna do Estado, para a qual também contribuíram os conflitos que marcaram a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), conduziu ao apogeu das monarquias absolutistas europeias, principalmente nos séculos XVI e XVII, período que é caracterizado pela hipertrofia da ação estatal, desigualdade social e arbitrariedade, um estado de coisas que foi sintetizado na célebre frase atribuída ao Rei Sol, Luís XIV, Rei da França (1638-1715): L’État, c’est moi.

    No século XVI, Jean Bodin será conhecido como o teórico da soberania, enfatizando a ideia de que ela é o poder absoluto e perpétuo de uma República e o modo como ela é exercida influiria na forma de governo adotada dentro de um Estado ou de uma comunidade política:

    (...) Nous dirons qu’il n’y a que trois états, ou trois sortes de Républiques, à savoir la Monarchie, l’Aristocratie, et la Démocratie ; la Monarchie s’appelle quand un seul a la souveraineté, comme nous avons dit, et que le reste du peuple n’y a que voir ; la Démocratie, ou l’état populaire, quand tout le peuple, ou la plupart [du peuple], en corps a la puissance souveraine ; l’Aristocratie, quand la moindre partie du peuple a la souveraineté en corps, et donne loi au reste du peuple, soit en général, soit en particulier.²⁵

    Para Bodin, a soberania é considerada o poder absoluto e perpétuo de uma República, que possibilitaria ao monarca, à aristocracia ou à assembleia popular governar, sem qualquer interferência de natureza externa. Quem detivesse o poder, exercê-lo-ia ilimitadamente, fosse o monarca, a aristocracia ou o povo, embora Bodin admitisse a existência de Estados (e não governos) monárquicos que são regidos pela vontade popular, assim como monarquias aristocráticas²⁶.

    Internamente, a soberania legitima a unificação nacional, dado o caráter indivisível do poder soberano, que não compadeceria com a ideia de governo misto, ora pertencendo ao monarca, ora à aristocracia, ora ao povo, pois tal alternância impediria o fortalecimento do poder estatal centralizado nas mãos do soberano, daí porque dizer-se que Bodin teria sido um dos primeiros pensadores a justificar o absolutismo. Como afirma Touchard²⁷, a ideia de soberania de Bodin é marcada pela sua natureza absoluta e indivisível, um imperativo categórico da existência e da unidade do Estado, independentemente de este ter sido constituído por meio da violência dos mais fortes.

    De acordo com Moncada²⁸, a definição de soberania bodiniana, ao contrário do que imaginam alguns doutrinadores, estava longe de ser mera expressão da força ou um conceito de raiz puramente naturalista, tal como a virtú ou a fortuna de Machiavelli, uma vez que o francês partia da ideia de direito e a sua concepção de soberania era construída sob o fundamento de que não poderia existir Estado sem uma ordem moral objetiva, o que sugere que Bodin regressava ao direito natural, pois para ele somente poderia haver uma república bem ordenada se as leis naturais fossem seguidas e fundadas em certos princípios eternos de justiça.

    Moncada²⁹ ainda afirma que Bodin admitia como limitação constitucional da soberania que os povos não pudessem estar sujeitos a novos levantamentos de impostos sem o seu consentimento, mas, por outro lado, ressalta que o francês não deixava de anular tal limitação, já que o príncipe poderia, simultaneamente, em caso de necessidade, arrogar para si o direito de tributar a nação, sem que fosse preciso ouvi-la antes de avançar sobre a propriedade dos súditos.

    Thomas Hobbes foi o primeiro filósofo ou pensador político que traz à baila nitidamente uma perspectiva contratualista, afirmando que entre homens sem senhor existe um estado de beligerância perpétua, sem que haja herança a transmitir ao filho, nem a esperar do pai nem propriedade de bens nem de terras, nem segurança, mas uma plena e absoluta liberdade de cada indivíduo³⁰, de modo que paira uma situação de conflito permanente ou de guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes).

    Na sua filosofia política, Hobbes concebe que, no estado de natureza (uma situação de latente conflito), todos teriam direito a qualquer coisa e também a nada e o indivíduo não teria assegurada a sua própria vida, pois não teria a quem recorrer para preservar sua vida, de sua família e sua propriedade. É nesse contexto que surge a tese contratualista de Hobbes, para o qual o Estado aparece como um pacto que os indivíduos assumem entre si, com a finalidade de obter segurança da sua vida, porquanto a maioria dos homens é governada sob o domínio do medo³¹.

    No acordo entre o vencedor e o vencido, o vencedor teria o direito de matar o vencido, mas este, para salvar a vida, renuncia à liberdade que lhe é inerente, contexto em que, pode-se dizer, há uma comutação de interesses, uma troca de prestações: pela submissão o vencido oferece ao vencedor seus serviços, isto é, promete servi-lo; de seu lado, o vencedor obriga-se a proteger o vencido contra as ameaças do mundo e o poder de destruição de outros homens.

    O pensamento hobbesiano também desponta como uma fundamentação jusfilosófica para o absolutismo, à medida que confere ao soberano poderes ilimitados, porquanto os súditos sujeitam-se às leis estabelecidas por quem detém o poder. Por outro lado, o governante não será retaliado se desrespeitar alguma lei natural ou divina, visto que o monopólio da força se concentra na figura do monarca ou do soberano.

    Já dizia o jurista Carl Schmitt, em sua Teologia Política³², de 1922, soberano é quem decide sobre o estado de exceção (Souverän ist, wer über den Ausnahmezustand entscheidet). De acordo com Alexandre Franco de Sá³³, o alemão Carl Schmitt questiona se poder-se-ia derivar não o direito a partir do poder, mas o poder a partir do direito, o que conduz à afirmação de uma diferença irredutível entre direito e poder. O pensamento de Carl Schmitt³⁴ aproxima-se da filosofia hobbesiana ao admitir que o estado de exceção interrompe a normalidade do direito para que a ordem seja reestabelecida, o que não caracterizaria anomia, à medida que as normas jurídicas estarão suspensas no estado de exceção, traduzindo-se no permanente afastamento ou repressão da possibilidade de uma guerra civil

    Para Hobbes o poder soberano é indivisível, o que implica em rejeitar a teoria que propõe a separação dos poderes. No pensamento hobbesiano, o poder dividido não é dotado de soberania, ou seja, estar sujeito a leis é estar sujeito ao Estado, ao poder soberano, de modo que o soberano em si mesmo não está sujeito às leis positivas, pois em relação a elas ele é livre. Dessa forma, a ideia do governo misto, para Hobbes, é intolerável, pois a divisão do poder soberano significaria a guerra civil e o retorno ao estado de natureza.

    Hobbes³⁵ nega a ideia de que todo indivíduo particular tem propriedade absoluta de seus bens, principalmente ao afirmar que, na verdade, todo homem tem uma propriedade que

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