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Laço social e tecnologia em tempos extremos: imaginário, redes e pandemia
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Laço social e tecnologia em tempos extremos: imaginário, redes e pandemia
E-book282 páginas3 horas

Laço social e tecnologia em tempos extremos: imaginário, redes e pandemia

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Sobre este e-book

Laço social e tecnologia em tempos extremos: imaginário, redes e pandemia é um livro de pesquisa, reflexão e diálogo. Os autores, do Brasil, da França e da Itália, investigam a comunicação e os vínculos que se tecem em rede social e tecnológica. Em tempos de pandemia, tudo é extremo, do medo ao desejo de ligação. A reflexão impõe-se como busca de respostas a velhas questões: o que fazer? O que esperar? Em quem confiar? O diálogo que se estabelece se dá em diferentes níveis: acadêmico, afetivo, pessoal. Como resistir aos desafios do nosso tempo?
As ideias fluem. Pensar auspiciosamente requer dados novos, posicionamentos, diálogo com sujeitos e objetos. Cada autor interroga os seus dados e articula uma teia de significantes. Mas os autores dialogam também entre eles. Tudo se cruza, articula e dimensiona. Nada, porém, é tragado por algum consenso impositivo. Esta é uma obra de parceria, debate, encontros, seminários, pesquisa conjunta, o fruto da convicção de que a cooperação pode ser mais frutífera do que a competição. O leitor encontrará referências, pegadas, convergências e particularidades. Rede de cooperação nacional e internacional, integrando professores, mestrandos e doutorandos, concretiza o objetivo de entregar resultados ao escrutínio da sociedade. Ao leitor o que lhe é devido: a avaliação soberana.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento5 de abr. de 2021
ISBN9786557590188
Laço social e tecnologia em tempos extremos: imaginário, redes e pandemia

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    Laço social e tecnologia em tempos extremos - Cristiane Freitas Gutfreind

    (organizadores)

    I

    Laço social

    Sós todos juntos:

    pele digital e fissuras digitais

    Philippe Joron¹

    Nós parecemos todos viver à prova de nosso aniquilamento espectral, seja parcial ou total, mas completamente em situação de invisibilidade, desejada ou imposta. Perspectiva de aniquilamento que assegura, no entanto, nossa sobrevivência. A cada um suas estratégias num conjunto reforçado por um aglomerado de precariedades. No fundo, conhecemos bem as fragilidades de nosso ser-aí juntos. E fazemos como se nossas fraturas ou cavidades originais não fossem possíveis, nem mesmo desejáveis em seu acompanhamento. Essa certeza mexe com falhas de circunstância, no entanto, preenchidas por garantias rígidas.

    Contudo, é a sorte de cada um, convém não se esconder muito para poder descobrir, para abrir a via do viver simplesmente, com alguns suplementos que se pagam a um preço alto. Mas sempre há algumas complacências autoatribuídas, ou distribuídas por nossas comunidades de reconhecimento, uma espécie de conforto no infortúnio que nos leva à autossatisfação na falta de apoio de nossa suficiência.

    E há ainda um trabalho de fundo: o exercício incansável de nossa heterogeneidade, de nossa alteridade, de nossas diferenças constituintes e friccionais, que nos leva a crer que todos devemos retornar de muito longe, dessas terras imemoriais da existência em que tudo teria sido apenas suposta intimidade, em modo sobrevida, com o mundo, os seres, o meio cósmico e ambiental. Uma intimidade friccional cuja suavidade aparente dependeria do tamanho dos grãos que se enfrentam e dos aglutinantes à disposição. Na origem: um ponto de contato íntimo entre o singular e a totalidade, numa relação de indiferenciação nutritiva e perenizante. Origem que resumiria a hipótese de uma situação comum: nosso estado de continuidade principial, esse vínculo perdido sem nenhuma consciência. E desde então, a despeito do processo de hominização que explora a conscientização da espécie humana quanto à sua singularidade e aos recursos de uma natureza explorável, na invenção, adaptação e manipulação de ferramentas (materiais e psíquicas) que afirmam cada vez mais a dominação dos objetos dados tanto quanto os construídos (natureza, mundo, outras pessoas) pelas imposições de um corpus de identificações especistas e individuais, um resto de abismo subsistiria em nós, nos completaria a minima e nos mataria ainda todos juntos. Uma falta que nos ligaria, incondicionalmente, numa solidão de massa. Estamos decididamente sós num quase todos juntos por um único horizonte de existência suportável.²

    Temos aqui, ao lado do adiamento concernente a uma postura acadêmica convencional, que se esgota para fazer boa figura no excesso de leis e regulamentos ao mesmo tempo disciplinares e corporativistas, uma visão batailliana da relação com o outro, mas também consigo e com o conjunto que participa da sua constituição, a qual apresenta uma constatação inequívoca daquilo de que não poderíamos escapar, exceto por intermitência e automatismo de emprego: viver os outros na solidão, no compartilhamento de nossas dessemelhanças. Estratégias fatais que dependem da incerteza de existir (BAUDRILLARD, 1987, p. 27).

    Essa problemática, longe disso, parece ser o centro termonuclear ou a caldeira das ciências humanas e sociais. Várias fontes de energia nela presidem: comunicação, duplicidade, resíduo (em reserva), situação (colocação, marcação, rastreio), intrusão (invasão, dominação, apagamento), incompletude do Um, Busca da perfeição do Não Um, ou seja, do Dois enquanto Um acoplado a seu Outro.³

    Há aqui matéria para uma sociologia das contrições, uma alterologia (JORON, 2006, p. 11-17), tratando das asperezas do social, os poros do real e as fissuras do ser social.

    Mais uma vez, em notas aparentemente sem importância, literárias ou científicas, conforme a apreciação que lhes foi dada depois e das quais não se sabe, na verdade, se elas tinham a mesma ligação para seu autor, Georges Bataille evocava a questão da adaptação (ou conformação) da realidade natural e social, que esta depende da ciência (ética), da política (moral), da economia (regras), da sexualidade (princípios), da religião (credo), etc. Essa dominação dos pensamentos e atos teria sido a condição do poder viver-junto e da apropriação de tudo o que ainda não somos. Ele compreendia essa problemática, de modo lapidar, como vestir o real: trata-se de dar um redingote àquilo que existe (BATAILLE, 1970, p. 217). Mas o hábito faz tanto o monge quanto aquele que o excomunga, pois não há alternativa à indiferenciação senão a denominação (classificação, etiquetagem, armazenagem, código-barrização do mundo, das coisas e dos indivíduos). É preciso apontar, pontuar, sinalizar, cercar, preparar, levantar, separar, alinhar, hierarquizar, ostracizar. Em suma, trata-se aqui de uma Excelização dos artefatos da consciência. Uma exposição compartilhada dos universos do ego que se quer reativa às saliências de outras pessoas, desses outros em estado de cultura e natureza, competitivos.

    A realidade é o que resulta do tratamento ideológico do real, este último sendo o que é, sem ornamento ou postura modal, antes que se aplique sobre ele nossos redingotes, nossas peles especulativas ou comportamentais, materiais ou digitais.

    Vida digital, colaborativa, coercitiva e autônoma. Nada menos que um fato social de primeira importância, conforme as definições que lhe dera Émile Durkheim: "Eis então uma ordem de fatos que apresentam características muito especiais: eles consistem em maneiras de agir, pensar e sentir exteriores ao indivíduo e que são dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se impõem a ele. Na sequência, não poderiam se confundir com os fenômenos orgânicos, visto que consistem em representações e ações; nem com os fenômenos psíquicos, os quais só existem na consciência individual e por ela. Constituem, portanto, uma espécie nova e é a eles que deve ser dada e reservada a qualificação de sociais" (DURKHEIM, 1919, p. 8).

    Essa vida digital é tanto mais socialmente inscrita nos relevos disso que ainda mal ousamos chamar de a verdadeira vida, que determina agora nossos modos de ser, de apresentação, de concorrência, de dominação, de submissão, mas também de saturação nos nossos jogos de coexistência. Vejamos bem, num resto de ligação direta com nossas vidas viscerais, antes que sejam ativadas as imagens e gravações de nossas poses, impostas pela alimentação insaciável de nossas vidas digitais. Nós nos tornamos um amontoado de selfies. Nosso vestígio é uma vala comum de fotos comemoráveis ou esquecíveis. Estamos subordinados ao abastecimento contínuo de nossa inteireza digital, ao mesmo tempo constrangidos e excitados pela digitalização incremental de nossas vidas cotidianas, públicas e íntimas.

    Alguns convocam assim a solidão voluntária, quando o conjunto coletivo provoca neles certo cansaço. Desexistência digital. Direito ao apagamento dos dados pessoais, à extração de um si mesmo necrosado pelo autossacrifício e o canibalismo digitais.

    É verdade que contamos com um fundo cultural e material, um reservatório de conhecimentos que nos permite não ter que recomeçar tudo perpetuamente.⁴ Esse fundo se impõe e nos obriga. O que fazia Auguste Comte dizer que a sociedade é constituída mais por mortos que por vivos. Isso pode, sem dúvida, nos pesar, mas também nos impedir de reproduzir aflições passadas e, sobretudo, nos estimular para outras experiências do viver em comum. Por isso, o esforço de aprendizagem das regras que nos regem é inversamente proporcional aos trilhos culturais dos quais nos beneficiamos para avançar em direção ao que nós não poderíamos ter deliberadamente escolhido. Nesse sentido, nossas vias digitais estão todas traçadas.

    Há, porém, postos de sinalização não repertoriados, zonas de orientação sombrias, uma parte obscura de situação, um resto de colocação, uma inscrição no quadro negro cuja honorabilidade prevista não é visualizável, como uma moto Harley Davidson que não fizesse barulho, como um sacrifício pleno de dores enraizadas nas raias do prazer que se estende até o rompimento, como uma caçarola sem fundo que busca perdidamente sua tampa para se dar uma aparência de capacidade, como um assassino morto por sua vítima, à qual se imporá o status daquele que queria aniquilá-la, como um sexo que não poderia ser irrigado sem produção e/ou externalização de fluidos heterógenos. Um conjunto de possibilidades pouco admissíveis, mas, contudo, tenazes.

    Enfim, há alguma coisa em nossa vida comum, fatalmente imposta antes de ser manipulada por uma vontade individual ou coletiva qualquer, alguma coisa que exala, escorre ou busca se evaporar na produção de alguns resíduos. Há aí um estado que não poderia ser óbvio, no sentido de que dificilmente pareceria aceitável, tendo em vista que poderia questionar uma busca de homogeneidade em nossos espaços de fricção existencial.

    Nossa vida moderna líquida, tal como analisa Zygmunt Bauman, condimentada pelas incertezas constantes, mobilidades em todas as direções e celeridades variáveis, nos oferece um horizonte de possíveis além do qual nosso próprio colapso coletivo torna-se realizável (BAUMAN, 2013). No fundo mesmo de nossas pequenas transações domésticas e egoicas, essa vida moderna líquida, de outro modo denominada pós-modernidade ou hiperespetacularidade (SILVA, 2013), lembra a água dentro d’água de que falava Georges Bataille para significar esses estados de comunicação verdadeira, no fundo da mercantilização da existência e do consumo da informação, na qual nos precipitam a transparência comunicacional do estar-junto propenso aos próprios vômitos, num excesso de informações ditirâmbicas sobre seu ser-aí, sem nenhuma concorrência além da sua. Mas, no caso, trata-se de uma água pesada, carregada de limo e de vida residual, de dejetos potencialmente produtivos e de formas diversas de viralidade que estimulam a existência por sobressaltos de aniquilamento.

    Nossas fissuras são incontáveis, em redes de sofrimentos extáticos e de exações colaborativas. Nós nos infligimos feridas e dores que contemplamos simultaneamente ou depois, e as notamos, conforme nossa coelaboração existencial, nisto que constitui nosso testamento efêmero: o novelo caleidoscópico de nossas vidas misturadas. Essas fissuras não são nem fraturas nem cortes produzidos por impactos ou atritos exógenos, vindos de nosso exterior. Elas são, ao contrário, constitutivas de nossa pele existencial, seja física ou digital. Elas são endógenas, inerentes a nossas tensões internas, as quais reagem às intempéries da vida.

    Essa vida está longe de ser fácil, e é também isso que faz seu sal e seu sabor. Ela permanece ainda à imagem das montarias Harley Davidson às quais já fizemos referência. Nelas, presos à sua armadura vibratória e à sua batida sonora, como martelava Brigitte Bardot com um falso véu de voz áspera que sublimava as falhas da entonação: eu não reconheço mais ninguém.⁵ Na moto como na vida, quando sabemos que o percurso a seguir se reduz ou que a interrupção definitiva convida-se possivelmente no cruzamento dos caminhos, é preciso ir ao essencial, sem frescura, mesmo que isso signifique se libertar com pragmatismo das normas do aceitável e do razoável inscritas no mármore constitucional do viver junto, na borda ou nas folhagens de nossa agitação monopolista, que quer impor seus próprios ritmos aos do mundo.

    Essa vida permanece ainda praticável, porque é imperfeita. Porque as ameaças diversas da perfeição higienista ou eugenista a fazem ainda tremer. Terrorismo religioso e política (JORON, 2019), Vegan order,⁶ comunitarismo racial, populismo colaborativo e ditadura da transparência, fake conspiratório, duplicidade exposta e verdades dissonantes… Tudo isso, em negativo, concorre para a revelação do elã que nos liga ao essencial: tentar ainda ser, por superexposição de fissuras e de linhas de vida cujo curso poderia ser modificável a facão.

    Como dizer mais ou menos melhor, ou menos pior? Vamos ver, como se diz na vida real, com esse toque de ceticismo ou nível crítico modelado pela experiência dos humildes, ou as pessoas de pouco.⁷ Reutilização na vida social do termo Mecânica. O longo percurso do motor V-Twin que acelera, que ronca, que o faz esquecer momentaneamente o óleo essencial que permite assegurar a viscosidade imposta entre elementos heterógenos que não precisam de nada para se encontrar (está aí o ponto nodal da sociologia, outros dirão da filosofia, da antropologia, das ciências de informação e da comunicação, do direito constitucional ou da ciência política). Mecânica mais uma vez. Conjunto que inclui fontes de energia diversas, mas ainda órgãos distintos de tratamento, funções diferenciadas de emprego, escapamentos de eliminação residual, elementos que participam sem exclusividade do funcionamento e, portanto, da legitimidade existencial pela qual esses constituintes se encontram no impacto reiterado de suas densidades materiais e de suas identidades estatutárias de uso.

    Tudo isso sem amortecedores dignos desse nome, sem silentblocs em condições de diminuir as trepidações enfurecidas dos órgãos do motor, sem a menor untuosidade na embreagem e na caixa de câmbio, sem flexibilidade de uso. Para dirigir, é preciso uma adaptação: aquela do corpo a corpo bestial entre constituintes visceralmente desfeitos na perspectiva de um encontro improvável. É esse o preço de uma desrazão ainda pilotável. Nada além de uma dupla, ruído e vibrações que põem à prova se o piloto está bem preso à sua máquina para enfrentar os 80 km/h impostos por uma sobrecarga de mobilidade pelas estradas e um decréscimo sublimado na hegemonia modal de uma nova era elétrica, isenta de nutrientes nucleares ou carbônicos.

    Trata-se uma avaliação política alimentada por pessoas de muito sobre uma sobrevida viável na supressão idealizada de condimentos poluentes. Causando o apagamento ou a eliminação de uma página de história, para um novo capítulo a escrever num exercício de auto de fé redentor. Sem dúvida é viável viver sem rugosidade endêmica, sem batida mecânica, sem longa corrida dos pistons vitais nos cilindros, sem falta de freio-motor, sem comunidade desesperante do entre-si, visto que tudo isso poderia ser compensado pela feltragem de relações sociais em estado de clivagem. Mas, nesse quadro idílico, poderia também faltar alguma coisa, áspera e doce ao mesmo tempo, que faz os relevos da existência.

    Rugosidade: viver coletivamente, sem muitas sinuosidades nas chicanas, os elementos constitutivos do ser social, ao mesmo tempo combinando-os e confrontando-os com o humor do momento, para atingir assim um estado liberado dos escapamentos sociais. Rugosidade que encontramos igualmente na hipóstase identitária da comunidade dos bikers: o famoso 1%, graal das tribos Harley davidsonianas.⁸ Mostrar assim que se é único, radicalmente diferente, incomparável, no exagero, até mesmo excepcional. Uma singularidade tributada ao conjunto que se aproveita de suas incontáveis fontes de egodefecação comunicacional.

    Voltemos, porém, ao nó primordial da sociologia que transcreve o real, além das débeis tentativas de nominação dirigista da realidade, por seus atos de atenção aos objetos que ela constrói necessariamente num processo de elaboração de si mesma e daqueles que a servem, usufruem dela ou a utilizam.

    Esse nó contém, no sentido pleno do termo, no desvio de algumas amarrações e fixações diversas, a relação com o outro, com o conjunto e consigo mesmo. Esse nó, feito de restrições e liberdades, é essencialmente político, econômico e comunicacional. É tensão entre poder e potência, entre ditado e poesia soberana. É consequentemente ideológico, induzindo de fato algumas ressacas egoicas: a ideologia serve sempre de para-vento estratégico (há sempre uma ideia de fundo por trás da fachada ou banca das aparências) na realização de benefícios particulares que se ativam servindo-se da implantação de boas intenções em proveito do interesse geral.

    E continuamos ainda todos juntos, mas sós. Nossas ilhas de existência estão agora submetidas à subida das águas pós-modernas, ao crescimento dessa vida líquida baumaniana, que nos convida a pensar na incerteza de nossos respectivos posicionamentos quanto à inteiração de nossa agitação constitutiva, que transcende à constatação de uma arquipelização social e de uma pulverização existencial resolutamente contemporâneas. A despeito de toda esperança de liberação singular, não reproduzível ou imitável, nós parecemos todos carimbados pelas mesmas faltas que nos unem. A despeito de nossos possíveis desejos de grandeza, de elevação ou de diferenciação, estamos ainda todos ao rés do chão do que gostaríamos de ser, ou ainda na varanda de nossas similaridades horizontais e às vezes nos porões do acordo existencial, cuja visitação nos é imposta pela presença do outro e pela sobrecarga de nós mesmos.

    O ser social está em busca de si mesmo numa confrontação perpétua com seu ambiente natural e cultural, ao ponto de congestionar este último com suas próprias descargas, imaginárias ou materiais.⁹ Só em nossas sociedades burguesas-boêmias, sem aqui evocar as que se dedicam a não perecer demais por falta de um kit de sobrevivência, as crises dão conta desse bloqueio de nós mesmos, cujas causas são inevitavelmente culturais e naturais, a exemplo do movimento dos coletes amarelos na França e da pandemia de Covid-19. Estamos ligados pela distância, pelo que tende a nos desfazer.

    A vida digital, traduzida com razão por Vincenzo Susca como networking de afinidades conectivas e midiatização da existência, mostra bem essa busca desenfreada de reconhecimento, muitas vezes irrisória, de resto trágica (SUSCA, 2016). Estamos aqui confrontados com o que já tínhamos proposto compreender como midiatização do ordinário conversível em "selfies da vida, sudação do cotidiano (JORON, 2011, p. 53-61), real midiático, comércio midiático dos afetos, sacralização do cotidiano (JORON, 2008, p. 16-27), ou ainda ordinário eventual (JORON, 2014, p. 182-186), tantas infrações ao bom comportamento de uma marginalidade convencional ou esperada, trazidas pelos ataques violentos constantes da existência digital, dando a ver certa defenestração midiática (JORON, 2011, p. 53-61) na agitação toda despolarizada do ser digitalizante. De certo modo, tudo se resume nesta definição lapidar de nossa condição humana, definitiva, proposta por Georges Bataille: O homem é de quem lhe falta" (BATAILLE, 1970, p. 419). O ser humano compensa esse vazio abissal de si mesmo no excedente e na sobrecarga residual de suas produções egoicas em estado de conquista. O imaginário lhe serve então de elo de sobrevida, e não mais apenas de transmissão, permitindo-lhe assumir uma realidade tornada distópica, da qual perdeu o controle. Ele se agarra aos seus excessos, dos quais pensa ainda que vão preencher sua sede de viver.

    Nossa vida social está cada vez mais regulada, codificada, sob o jugo de uma gestão excessiva dos humores, afetos e das relações interpessoais. Tudo deve ser conhecível, numa transparência que se quer total, sob a curvatura de uma judicialização pairante e o horizonte de denúncias dissimétricas mas confluentes.

    A análise baudrillardiana das relações sociais tornadas esquizofrênicas pela sobreimpressão dos estratos ou camadas identificatórias que diluem o um no múltiplo, colocando cada indivíduo na arena de uma tela total on-line, no fórum do consumo dos sujeitos-objetos digitais e da antropologia midiática, permanece atual (BAUDRILLARD, 1987, p. 24-25). Hiper-realidade, sobrerreal, fake, polbusting, verdades ajustáveis e sobreponíveis, transparência, obscenidade, exposição das fotos no Facebook, dos amigos e dos curti efêmeros, impregnados de duplicidade artificial. Tudo isso remete ainda aos desejos de reconhecimento, de sobre-existência, de sobrevida competitiva, de superestimação de si, numa superexposição das margens e centralidades periféricas que constituem nossas existências recíprocas em estado de comparação mútua e de oferta egocêntrica. Para cada um, o ordinário torna-se assim espectatura (THORET, 1983, p. 9-10),¹⁰ ou seja, ação sobre e na reapresentação monstruosa de uma alteridade constitutiva, por reconhecimento de um si mesmo cuja singularidade só teria sentido e legitimidade no desdobramento ou na fragmentação de uma existência limitada. Fissuras. Liberdade de se exprimir sob todas as latitudes do jogado-aí. Mas ainda irrupção da restrição ou da coerção aplicada a esses outros que nos fazem.

    Se a série Black Mirror trata dessas questões sob diversos ângulos, segundo variações distópicas que mostram o humor do presente sobre a abertura das utopias, o filme Coringa (Todd Philips, 2019) é particularmente revelador dessa insurreição de nossos desejos de liberdade, convertíveis em diversas fabricações do real. Tornando-se Coringa, o personagem Arthur Fleck acessa um real sentimento de existência, enquanto transforma num mesmo movimento a alienação do social em liberação de seus próprios humores. Em termos baudrillardianos, poderíamos dizer que Coringa é a expressão filigranada do outro por ele mesmo.

    Toda relação consiste, desde o começo, numa confrontação, numa colocação frente a frente, num embate, contendo já o risco de uma confrontação

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