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Da Verdade dos Espaços aos Espaços da Verdade: Uma Genealogia em Michel Foucault
Da Verdade dos Espaços aos Espaços da Verdade: Uma Genealogia em Michel Foucault
Da Verdade dos Espaços aos Espaços da Verdade: Uma Genealogia em Michel Foucault
E-book361 páginas7 horas

Da Verdade dos Espaços aos Espaços da Verdade: Uma Genealogia em Michel Foucault

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Sobre este e-book

Da verdade dos espaços aos espaços da verdade: uma genealogia em Michel Foucault investiga o tema do espaço e seus efeitos a partir da historicidade da verdade dos (e nos) espaços, dentre eles, por exemplo, o espaço da doença mental, do poder psiquiátrico, do poder disciplinar, dos dispositivos de controle, da arquitetura biodisciplinar até encontrar o espaço da verdade vinculado ao espaço de si, do cuidado de si, do dizer verdadeiro e a constituição do sujeito ético a partir do dizer-a-verdade, direcionando-se a todos aqueles que manifestam interesse a respeito das formas de poder, dos efeitos de verdade e dos modos de subjetivação, derivados do espaço e que produzem efeitos no agir humano, conduzindo condutas e constituindo o modo de ser do sujeito no espaço.

"Há uma recorrência permanente entre a verdade dos espaços e os espaços da verdade. O nexo entre essas verdades nem sempre é perceptível e raras vezes tematizado. A obra de Vivian Fetzner Ritter, Da verdade dos espaços aos espaços da verdade: uma genealogia em Michel Foucault, é uma dessas raras oportunidades em que temos de nos confrontar com nós mesmos por meio de uma reflexão sistemática sobre a verdade dos espaços e os espaços da verdade".

Prof. Dr. Castor Bartolomé Ruiz
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de nov. de 2018
ISBN9788547321581
Da Verdade dos Espaços aos Espaços da Verdade: Uma Genealogia em Michel Foucault

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    Da Verdade dos Espaços aos Espaços da Verdade - Vivian Fetzner Ritter

    Editora Appris Ltda.

    1ª Edição - Copyright© 2018 dos autores

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

    Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

    Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    A vida e seus espaços.

    A vida nos espaços.

    O espaço da vida, imprevisível.

    Espaço (re)construído a cada movimento da vida.

    O espaço da vida sem meu pai.

    A verdade da vida.

    Em mim um espaço vazio.

    O espaço da vida é imprevisível.

    Espaço de memórias.

    Saudade.

    A vida constituindo um novo espaço para a vida que fica.

    O espaço da vida, o tempo da vida.

    O tempo da esperança no espaço da vida.

    No espaço da vida a presença de quem partiu.

    O espaço vazio que ainda há de ser vivido.

    A imprevisibilidade da vida.

    A vida vivida ressignificando a vida que fica.

    AGRADECIMENTOS

    Agradeço ao meu orientador de doutorado, professor doutor Castor M. M. Bartolomé Ruiz, por indicar os caminhos, no espaço acadêmico, que permitiram o meu enriquecimento intelectual. Também pelo apoio humanístico diante das vicissitudes que constituem o nosso ser no espaço da vida.

    Ao professor doutor Cesar Candiotto pela disponibilidade em contribuir com seus saberes.

    Ao meu pai, pela sabedoria dos seus ensinamentos na constituição do meu modo de ser.

    À minha mãe, Diani, pela colaboração ativa e carinhosa.

    Ao meu filho, Davi, pelo presente diário da sua existência.

    Ao meu filho e à minha mãe, pela coragem de enfrentar e ressignificar os momentos da vida com entusiasmo.

    Seria preciso fazer uma ‘história dos espaços’ – que seria ao mesmo tempo

    uma ‘história dos poderes’ – que estudasse desde as grandes estratégias da geopolítica

    até as pequenas táticas do habitat, da arquitetura institucional, da sala de aula

    ou da organização hospitalar, passando pelas implantações econômico-políticas.

    É surpreendente ver como o problema dos espaços levou tanto tempo

    para aparecer como problema histórico-político.

    (FOUCAULT, 2011f, p. 212).

    APRESENTAÇÃO

    O espaço é a contingência em que, cotidianamente, constituímo-nos sujeitos. Criamos espaços de vida na mesma medida em que os espaços recriam nosso modo de ser. Os espaços, por serem absolutamente presentes, tornam-se, muitas vezes, imperceptíveis. A invisibilidade do espaço atravessa a nossa incompreensão dos modos como os espaços são constituídos por regimes de verdade em que os sujeitos circulam e pelos quais são subjetivados.

    Cada espaço está constituído por um regime de verdade, que o desenhou em função de objetivos específicos. Os sujeitos que circulam ou habitam os espaços não só os atravessam exteriormente; de muitas maneiras, os espaços também habitam nos sujeitos. Inicialmente, os espaços condicionam seus comportamentos e, por fim, constituem um modo de conduzir-se na forma de hábito cotidiano. Não por acaso, os termos habitar e hábitos compartilham a mesma raiz semântica. Ao habitarmos um espaço, nós o fazemos por meio de hábitos pelos quais nos comportamos de maneira determinada e diferente em cada espaço. Habitar um espaço equivale a desenvolver um modo de vida naquele espaço e segundo esse espaço. Os hábitos constituem os modos de subjetivação e são decorrência da regularidade assumida pela prática de atitudes constantes. O sujeito é resultado, em grande parte, dos hábitos de vida que pratica. Por sua vez, a regularidade dos hábitos é paralela aos modos como habita os espaços em que vive.

    Há uma recorrência permanente entre a verdade dos espaços e os espaços da verdade. O nexo entre essas verdades nem sempre é perceptível e raras vezes tematizado. A obra de Vivian Fetzner Ritter, Da verdade dos espaços ao espaço da verdade: uma genealogia em Michel Foucault, é uma dessas raras oportunidades em que temos de nos confrontar com nós mesmos por meio de uma reflexão sistemática sobre a verdade dos espaços e os espaços da verdade.

    A autora teve a ousadia de realizar uma pesquisa num clássico de nosso pensamento contemporâneo, M. Foucault, por meio da perspectiva dos espaços e as verdades. O pensamento de Foucault é amplamente conhecido pelas suas genealogias do poder, a verdade e o sujeito. O que Vivian apresenta nesta obra é uma investigação transversal dessas três categorias – o poder, a verdade e o sujeito – por intermédio dos espaços em que elas constituem, ao mesmo tempo em que são constituídas.

    Foucault escreveu uma vasta obra que abrange desde seus primeiros estudos sobre a História da Loucura até os últimos sobre a parresia cínica. A obra que Vivian ousou produzir nos brinda um estudo genealógico dos espaços ‒ para ser consequente com o autor de referência – nos estudos de M. Foucault. No estudo da loucura, os espaços perambulam com as formas de verdade que a própria loucura foi adquirindo ao longo dos tempos. Quando a loucura era concebida algo além da razão, ela circulava livremente pelos espaços cotidianos dos povoados como um sintoma estranho de atributos desconhecidos. Essa verdade sobre a loucura produziu espaços amplos para sua livre circulação; inclusive, utilizaram-se os grandes passeios marítimos como possibilidades de cura da loucura. Naus eram enchidas de loucos e levadas por longos percursos fluviais, na expectativa de que esse contato direto com a natureza pudesse trazer a cura a um fenômeno que era lido como extranatural.

    No século XVII, a verdade sobre a loucura sofre um deslocamento significativo, não sendo mais vista como um fenômeno extrarracional, senão que é catalogada como patologia. A patologização da loucura catalogou-a como doença e, ainda, potencialmente perigosa. Nesse caso, o louco era alguém enfermo com um potencial perigo para a vida social. Como consequência dessas verdades patológicas da loucura, foram criados os espaços de encerramento dos loucos, a fim de prevenir as violências de suas loucuras. As modernas e racionais instituições manicomiais são espaços criados para responder às novas verdades sobre a loucura. As verdades dos espaços são constituídas pelos espaços das verdades.

    Já em nossa contemporaneidade, a emergência do pensamento crítico a respeito do encerramento dos loucos, como o de Foucault, mostrou que ele é uma espécie de subproduto da verdade, que castiga a loucura por ser diferente. Uma nova verdade crítica sobre a loucura e seu aprisionamento provocou o surgimento da antipsiquiatria, crítica dos espaços de encerramento. Essa nova verdade produziu novos espaços para o louco, a sua liberdade da prisão manicomial.

    As verdades racionais da modernidade foram construídas como verdades científicas e, consequentemente, apresentadas como verdades sólidas. Por isso os espaços produzidos por essas verdades são qualificados por Vivian, muito inteligentemente, de espaços sólidos. A modernidade cercou a verdade de uma espécie de solidez racional para que todos a acreditássemos de forma incontestável. De igual modo, os espaços modernos se caracterizam por muros sólidos em que os sujeitos são cercados cotidianamente. A fábrica, a escola, o hospital, a prisão e o manicômio são meros exemplos de espaços solidamente construídos para que os sujeitos que ali circulam sejam firmemente subjetivados nas verdades de cada espaço. Nesses espaços modernos, a solidez da verdade transpira-se na firmeza de cada espaço. O fato de que a absoluta maioria dos espaços modernos sejam espaços cercados diz respeito ao tipo de verdade que a modernidade constituiu sobre os sujeitos. A vida moderna transcorre, desde o nascimento no hospital, em espaços fechados em que há rígidos regulamentos comportamentais por meio dos quais os sujeitos conduzem seus modos de vida. Na escola, na fábrica, nos escritórios, nas repartições públicas ou privadas, todos os espaços são desenhados segundo modelos de subjetivação predefinidos por verdades sobre o tipo de sujeito que ali deve estar e como deve agir.

    Num outro giro conceitual muito instigante, a obra de Vivian nos conduz para outra concepção dos espaços, mais pós-moderna: os espaços fluidos. Seguindo os estudos sobre a biopolítica, a pesquisa nos adentra num outro tipo de espaço e suas verdades. A biopolítica responde pela gestão dos comportamentos coletivos e até massificados da população. Nesse caso, os espaços do fechamento sólido tornam-se insuficientes para delimitar a política das populações. Essa política tem por escopo gerenciar os desejos da população como uma forma de governamentalizar seu comportamento. Esse tipo de verdade governamental produziu espaços mais fluidos, em que os comportamentos coletivos transcorrem e circulam. A vida da população há de ser governamentalizada a modo de necessidades circulantes. A rigidez dos espaços sólidos cede espaço à fluidez dos dispositivos de controle. Os comportamentos são monitorados de forma fluida e permanente nos diversos espaços em que os sujeitos circulam ou perambulam. Os sujeitos agem livremente enquanto são amplamente monitorados por uma incessante algoritmização da vida, que fez do controle fluido dos comportamentos o novo espaço líquido da biopolítica.

    A relação entre o sujeito, a verdade e seus espaços nunca é fixa ou predeterminada. A pesquisa de Vivian ousa avançar sobre os últimos estudos de Foucault em relação à constituição ética do sujeito, mostrando que essa forma de subjetivação também produz seus próprios espaços de vida: os espaços éticos de existência.

    A verdade dos espaços perpassa todas as nossas verdades e todos os nossos espaços de vida, inclusive a utopia. U-topos ‒ o lugar impossível – também pode ser pensado com sua verdade antitética, o hetero-topo, o lugar da diferença. As utopias têm sido o combustível do pensamento moderno e cada utopia confecciona um espaço ideal de vida. Foucault contrapõe às utopias as heterotopias, os espaços diferentes que são espaços da diferença. As heterotopias se produzem nos espaços em que a diferença se consolida como outro que não se limita ao modo de ser habitual.

    Esses breves e sintéticos exemplos aqui apresentados nada mais são do que um estímulo para adentrar-nos nas investigações da presente obra. Ela também constitui um novo espaço de verdade e uma nova verdade sobre os espaços.

    Castor M.M. Bartolomé Ruiz Dr. Filosofia. Professor

    Titular do Programa de Pós-Graduação Filosofia

    Coordenador Cátedra Unesco-Unisinos de Direitos

    Humanos e violência, governo e governança

    Coordenador Grupo de Pesquisa CNPq Ética, biopolítica e alteridade

    PREFÁCIO

    Seria pueril no estágio atual das publicações de livros, cursos, conferências e manuscritos de Michel Foucault permanecer nas antigas demarcações em torno da trajetória de seu pensamento. Igualmente arriscado seria estabelecer um único fio condutor para o conjunto de seus trabalhos. Esse fio condutor pode ser a crítica do sujeito, a crítica da verdade ou a crítica histórica do pensamento. Parece-nos que todas essas possibilidades são igualmente justificáveis, a depender da ênfase que o leitor pretenda atribuir à percepção que ele tem dos textos analisados. O que se tem são múltiplos Foucault(s): o filósofo da loucura, o inventor da morte do homem, o pensador das prisões, o teórico da biopolítica, o criador da governamentalidade, ou, ainda, o estudioso do cuidado de si e da parresia. Vivian Fetzner Ritter propõe-se a demonstrar outra imagem de Foucault em seu livro: um pensador da relação entre espaço e verdade, tanto da verdade que surge como efeito das descontinuidades entre um e outro espaço de saber quanto a afirmação de que cada configuração histórica é um espaço de verdade.

    Essa perspectiva de leitura pode ser encontrada nos principais livros de Michel Foucault, sem falar nos textos considerados menores e nos cursos no Collège de France. Já no prefácio à primeira edição do livro inaugural da arqueologia, História da loucura na Idade Clássica, lê-se que a razão ocidental foi construída por diversas experiências-limite que traçam as fronteiras e, extensivamente, a divisão originária de nossa cultura:

    Na universalidade da ratio ocidental, há essa divisão que é o Oriente: o Oriente, pensado como a origem, sonhado como o ponto vertiginoso do qual nascem as nostalgias e as promessas de retorno, o Oriente oferecido à razão colonizadora do Ocidente, mas indefinidamente inacessível, pois ele permanece sempre o limite: noite do começo, em que o Ocidente se formou, mas na qual ele traçou uma linha de divisão, o Oriente é para ele tudo o que ele não é, ainda que ele deva aí buscar o que é sua verdade primitiva.

    A verdade do espaço do Ocidente tem, pois, como ponto de nascimento essa grande divisão trágica com o espaço do Oriente.

    Se, em grandes linhas, o devir Ocidente ocorre pela sua divisão em relação ao Oriente, em um sentido mais específico o trabalho de Foucault, pelo menos deste livro até Vigiar e punir, consiste na investigação dos espaços de verdade no interior do Ocidente europeu nas paisagens do Renascimento (séculos XV e XVII), da Idade Clássica (séculos XVII e XVIII) e da Modernidade (a partir do século XIX). Seja tomado o domínio da loucura a esse respeito. Cada época, no entender de Foucault, objetiva o louco de uma maneira diferente pelo lugar que a loucura passa a ser sequestrada pela ratio ocidental a partir do final da Idade Média: como possesso demoníaco, quando circula na Nau dos loucos renascentista; como desrazoado, quando habita o Hospital Geral na Idade Clássica; como doente mental, quando habita o asilo moderno. Se cada época fabrica suas verdades ou, se a história é um cemitério de verdades mortas, a verdade moderna da loucura é a doença mental.

    Se nos deslocarmos para 1963, O Nascimento da clínica é apresentado da seguinte maneira: Este livro trata do espaço, da linguagem e da morte; trata do olhar . Em vez de mostrar o progresso das teorias e práticas médicas, a arqueologia privilegia o espaço do hospital moderno a partir do qual nasce a anátomo-clínica e ocorre a mudança do olhar médico, centrado no corpo doente e não mais no sintoma, como era na medicina das espécies da época clássica. O corpo humano, escreve Foucault, é o espaço de origem e repartição da doença somente para nossos olhos gastos; essa ordem do corpo sólido e visível é, entretanto, apenas uma das maneiras da medicina espacializar a doença, posto que na medicina classificatória que a precedeu o espaço da doença era situado em um quadro no qual havia sua organização hierárquica em famílias, gêneros e espécies. Ora, a verdade da doença corresponde, portanto, a uma descontinuidade de sua localização, do quadro classificatório para o próprio corpo doente.

    Se examinarmos a obra mais conhecida dos anos 60, As palavras e as coisas, dedicada às condições históricas de possibilidade do nascimento das ciências humanas, a existência de diferentes modos de ser, ordenar e apreender as coisas e as palavras e sua mútua relação não é dada pela continuidade da razão e sua temporalidade, mas pelas descontinuidades dos chamados campos arqueológicos ou espaços de saber na história da cultura ocidental. Cada espaço do saber tem uma gramática específica para relacionar as palavras e as coisas, dificultando supor que um desses espaços seja a evolução dos anteriores ou a preparação daquele que o segue. O espaço opera ao modo de um transcendental histórico que informa os saberes responsáveis pela formação dos objetos e pela posição dos sujeitos.

    No espaço renascentista do século XVI, a esfera denota a circularidade do saber no momento em que o conhecimento dos seres, das coisas e das palavras é apresentado em sua semelhança com Deus. O quadro das identidades e diferenças, próprio das classificações, configura o espaço clássico dos séculos XVII e XVIII, assim como o quadrilátero da linguagem retrata a relação entre o saber e o espaço moderno do século XIX. Finalmente, o triedro do pensamento contemporâneo a partir de 1950, descrito no capítulo X, é utilizado para mostrar a correlação entre as estruturas científicas entre as quais se constituíram as ciências do homem. Temos, portanto, uma con-figuração que indica o modo de ser da ordem, ou ainda, uma relação específica entre saber e espaço. A prioridade do espaço e suas decalagens sobre o tempo contínuo são constitutivas do escopo de elaboração de uma história da transformação dos saberes e de seu valor analítico e descritivo diante de uma história da evolução do conhecimento. A arqueologia privilegia a concepção de espaço sobre o tempo ou, no limite, espacializa o tempo a fim de tomar distância de uma história continuísta cujo motor seria a atividade do sujeito sintético e doador de sentido.

    A visão descontínua da história, inaugurada pela arqueologia e seguida pela arqueogenealogia dos anos 70, tem como sustentação o privilégio do espaço. Isso é notável no livro Vigiar e Punir, dedicado ao nascimento do indivíduo moderno no domínio dos sistemas punitivos. A diferença entre o poder soberano clássico e o poder disciplinar moderno é figurado nesse domínio pela mudança do lugar da punição, do suplício seguido de execução em praça pública para o silêncio e invisibilidade pública da prisão. O corpo supliciado e executado aos olhos de todos se insere em um cerimonial judiciário no qual se traz à lume a verdade do crime. Já o corpo do condenado no interior da prisão, moldado pela estrutura arquitetural do panóptico de Bentham, é objeto do olhar anônimo do poder pelo qual o indivíduo produz sua própria verdade. Nesse sentido, a praça pública e as celas prisionais são espaços de verdade, mas não da mesma verdade: uma se interessa pela verdade do crime, outra pela verdade do criminoso, da alma criminosa. A mudança entre os espaços envolve uma transformação na produção da verdade.

    Nas ficções históricas de Foucault os espaços de ordem são sempre constituídos pelos interstícios, intervalos e espaços outros. A esse respeito, é central em As palavras e as Coisas o riso provocado pela leitura da bizarra ordenação da Enciclopédia chinesa de Borges. Aquilo que é bizarro e impensável no espaço de nossa cultura, adquire sentido em outro espaço de classificação. A ordenação entre palavras e coisas só tem significado em um espaço determinado, ao mesmo tempo em que provoca um estranhamento em espaços outros. Mas são estes outros espaços que questionam e apresentam o caráter limitado de nossas ordenações. Eles obliteram as nomeações, destroem as sintaxes, não somente as que formulam as frases, mas também aquelas que constroem mundos. São ainda os espaços diagramáticos das prisões, asilos, hospitais e cemitérios que permanentemente cerceiam a fragilidade do comportamento adequado, das certezas da razão, da regularidade da saúde e da sensação de eternidade da existência.

    Pode-se então cogitar que Foucault, assim como Bergson, valoriza o espaço, mas diferentemente dele. Na Conferência Linguagem e literatura, de 1964, Foucault lembra que, segundo a tradição ocidental, pelo menos a que vai de Herder a Heidegger, é na linguagem que o tempo se manifesta a si mesmo e, além disso, vai se tornar consciente de si mesmo como história. Bergson, pelo contrário, afirmou ser a linguagem não tempo, mas espaço.

    O problema é que ele tirou disso uma consequência negativa, ao dizer que se a linguagem era espaço e não tempo, pior para ela. E como o essencial da filosofia, que é linguagem, era pensar o tempo, ele tirou essas duas conclusões negativas: primeiro, que a filosofia deveria se afastar do espaço e da linguagem para poder pensar melhor o tempo; segundo, que, para poder pensar e expressar o tempo, era necessário dispensar a linguagem ou se desembaraçar daquilo que a linguagem poderia ter de pesadamente espacial. E para neutralizar esses poderes, essa natureza, esse destino espacial da linguagem, seria preciso jogar a linguagem contra ela mesma, utilizar, frente às palavras, outras palavras, contra-palavras.

    Foucault, em contrapartida, considera que a filosofia precisa aproximar-se de uma linguagem espacial para poder se contrapor ao continuísmo do tempo.

    Ao tentar pensar a partir de Foucault a verdade dos espaços e os espaços de verdade, o livro de Vivian Fetzner Ritter enfatiza a relação da Filosofia com outros domínios de saber: a Geografia, a Arquitetura, a Pintura, as Artes Gráficas, o Direito. Trata-se de uma filosofia que se deixa envolver pelo pensamento, que não se limita a existir como um sistema fechado ou um corpus explicativo, que renuncia a ser uma explicação monótona sobre o mundo, sobre o conhecimento e sobre o ser humano. Ao valorizar o espaço em lugar do tempo e ao espacializar o tempo, este livro segue as sendas deixadas pelas estratégias arqueológicas e genealógicas de Foucault, as quais não pretendem decretar a morte da filosofia, mas sua metamorfose. É sobre essa metamorfose da filosofia em direção do pensamento que este livro pode ser compreendido.

    Cesar Candiotto

    Doutor em Filosofia. Professor da Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR e do Mestrado em Direitos humanos e Políticas Públicas da mesma universidade.

    Bolsista Produtividade do CNPq.

    Sumário

    INTRODUÇÃO

    1

    A GENEALOGIA DOS ESPAÇOS:

    UMA INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR

    1.1 NOÇÕES DE PODER, VERDADE E SUBJETIVAÇÃO

    NA PROBLEMÁTICA DO ESPAÇO

    1.2 A GENEALOGIA DOS ESPAÇOS

    1.2.1 O espaço da doença mental

    1.2.2 O espaço de in/exclusão da loucura

    1.2.3 A concepção do espaço do hospital e o nascimento da clínica

    1.2.4 O espaço (in)visível nas palavras e nas coisas

    1.2.5 O espaço das heterotopias e o espaço do não espaço das utopias

    1.2.5.1 Heterotopologia: a leitura das heterotopias

    1.2.6 Arqueologia do espaço do saber

    2

    DA LOCALIZAÇÃO DO ESPAÇO SOBERANO

    À SOLIDEZ DO ESPAÇO DISCIPLINAR

    2.1 O ESPAÇO NO/DO PODER PSIQUIÁTRICO:

    ESPAÇO ASILAR E ORDEM DISCIPLINAR

    2.1.1 O poder soberano e o espaço da soberania

    2.2 O poder disciplinar, a disciplina e a constituição

    do espaço de disciplina

    2.3 A GENEALOGIA DO PANÓPTICO: ARQUITETURA BIODISCIPLINAR

    2.3.1 O panóptico para Foucault 

    2.4 O ESPAÇO DA JUSTIÇA: A JUSTIÇA, A VERDADE E SEUS ESPAÇOS

    3

    O ESPAÇO E A BIOPOLÍTICA: ESPAÇO FLUIDO 

    3.1 BIOPOLÍTICA E ESPAÇO DO TERRITÓRIO, DA SEGURANÇA E DA POPULAÇÃO 

    3.2 TÉCNICAS DISCIPLINARES NO ESPAÇO – BIOPOLÍTICO

    3.2.1 O espaço biopolítico 

    3.3 DISPOSITIVO

    3.3.1 Dispositivo de segurança

    3.3.2 O espaço urbano 

    3.3.3 Espaço de circulação 

    3.3.4 Dispositivo de controle: panóptico (aparato biopolítico) 

    4

    O ESPAÇO E A CONSTITUIÇÃO ÉTICA DO SUJEITO

    4.1 O ESPAÇO DA VERDADE NO CUIDADO DE SI

    NA ÉPOCA SOCRÁTICA

    4.2 O ESPAÇO DA VERDADE NO CUIDADO DE SI

    NA ÉPOCA HELENÍSTICA

    4.3 O ESPAÇO PÚBLICO DA VERDADE CÍNICA

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    REFERÊNCIAS

    INTRODUÇÃO

    Suas prospecções em diferentes sítios teóricos, validadas pela Arqueologia e a Genealogia, percorrem o itinerário histórico da verdade das práticas e evidenciam a preocupação de Foucault com três eixos que atravessam sua obra: poder, verdade e subjetivação. Nesse contexto, farei uma breve apresentação desses temas, iniciando pelo poder que, conforme salienta Foucault, não pode ser entendido, única e exclusivamente, como mera dominação de uns sobre os outros, não se definindo exclusivamente por sua negatividade, mas igualmente por sua positividade, por seu caráter criativo e produtivo.

    É importante destacar o estreito vínculo existente entre poder e verdade, que é o segundo tema. A verdade produz formas de poder e, por sua vez, permite que todo poder se efetive como forma de verdade que pauta as práticas dos sujeitos. Desse modo, a verdade tem o poder de construir o sujeito, cujas práticas são legitimadas por formas de verdade que, quando aceitas como verdadeiras, constituem os sujeitos em suas subjetividades. O terceiro tema é o processo pelo qual se constituem as subjetividades que produzem o modo de ser do sujeito, em grande medida, resultante das relações de poder-saber, das verdades aceitas, que no sujeito moderno são tecnologias disciplinares e dispositivos de controle que operam como seus elementos construtores. Assim, os modos de subjetivação, isto é, a forma como o sujeito constitui sua própria existência resulta de tais práticas. Esses três grandes temas se imbricam porque a subjetividade é construída pelas verdades aceitas que produzem formas de poder e que ecoam no agir humano. A verdade

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