Sociedade Midíocre. A Passagem ao Hiperespetacular: O Fim do Direito Autoral, do Livro e da Escrita
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Sobre este e-book
O livro, impresso ou digital, já faz parte de um imaginário superado, uma "civilização" ultrapassada, espectro de uma mutação em ato diante dos olhos de todos? O hiperespetáculo é o espetáculo como mídia. Enquanto alguns ainda lutam pela salvação do livro, a escrita torna-se, tecnologicamente, dispensável? Fim de um tempo, de um mundo, sem alarde, sem explosão, sem desespero, sem revolução? O futuro já faz parte do passado? Questões para tirar o cérebro do entorpecimento. Passagem a uma nova modalidade de existência, o hiperespetáculo.
"A sociedade do hiperespetáculo se renova a cada dia como um movimento social que ninguém controla. Uma obra precisa rapidamente fazer o seu próprio comentário como única forma de tentar entender o turbilhão que ameaça nos engolfar. Depois das revoluções do rádio e da televisão, estamos vivendo a primeira revolução da era da internet. A sociedade midiocre vê as suas entranhas expostas como uma obra sem arte." Juremir Machado da Silva
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Sociedade Midíocre. A Passagem ao Hiperespetacular - Juremir Machado da Silva
Debord
1
Na sociedade do espetáculo, quando a utopia e o simulacro ainda eram uma mesma realidade, embora dissimulassem essa identidade graças a um mecanismo indecifrável da astúcia estrutural, a teoria literária anunciou solenemente a morte do autor. Foi o crime perfeito. O leitor nunca ficou sabendo. Uma notícia ignorada até pelas agências. O cadáver não desapareceu, mas foi clonado ao infinito, até não ser mais notado pelos críticos ou pelos jornalistas. Dissolveu-se por saturação. Na sociedade midíocre, a investigação policial e epistemológica produziu novos e impressionantes resultados: descobriu-se que primeiro foi a obra que morreu, sepultando a arma do crime e o próprio crime. Aliás, um crime mais-que-perfeito: o autor ainda está por toda parte. Para isso deve ser uma celebridade em qualquer ramo. Nem precisa mais contratar um ghost-writer para servir-lhe de fantasma particular ou de pistoleiro negro de aluguel. A literatura, enfim, virou notícia jornalística de capa: como ficção.
2
A ficção tem a sua realidade. Os iluministas inventaram o culto à transparência. A sociedade do espetáculo trocou-o pelo culto total à visibilidade. A sociedade midíocre foi mais longe e deu visibilidade a personagens obscuros, iluminandoos até revelar a transparência, ou opacidade, dos seus espíritos. Quando tudo é luz, transparência absoluta, nada há mais para ver. Então, cada um tem direito ao seu próprio programa sem preocupação com audiência. Paradoxo da luz: quando todos ganham direito à visibilidade, triunfa a invisibilidade.
3
Na sociedade moderna, política e utópica, a participação era o princípio maior e o horizonte a ser perseguido à custa da própria existência. A sociedade do espetáculo, apolítica, trocou a participação pela contemplação ativa. Avançou-se do imaginário à imagem e desta à falta de imaginação. A sociedade midíocre, transpolítica ou hiperativa, criou a interatividade, sistema de participação sem engajamento nem causa, através da qual cada um pode participar do mundo todo contemplativamente e sem qualquer risco. Passamos da verdade emancipadora à simulação e da simulação à meia-verdade, assim como fomos da monogamia ao amor livre e retornamos ao simples culto das aparências, o adultério.
4
Na sociedade moderna, da democracia representativa, vivíamos por delegação. Na sociedade do espetáculo, passamos a viver por procuração, deixando aos nossos ídolos a tarefa de gozar ou de sofrer por nós, reservando-nos o direito de trocá-los por outros a qualquer momento. Na sociedade midíocre, vivemos num permanente reality show no qual representamos os nossos delegados com a mesma infidelidade e imitamos os nossos ídolos com a mesma volubilidade. Abandonamos a ideia de corrente e aderimos ao cabo. Por fim, caímos na rede. Ainda temos astros. Podemos segui-los por satélite ou pelo Twitter e pelo Facebook. Mas mudamos de órbita: saltamos da tela total para a totalidade da tela. Antes, vivíamos por um fio. Agora, nem isso. A invisibilidade como consequência do excesso de visibilidade exige novos mecanismos de descobrimento e desconstrução. A compreensão do novo imaginário depende do desvendamento de uma teia de palavras que se complementam e se contradizem.
5
Na fria sociedade midíocre, pós-pós-estruturalista e antiutópica, sem narrativas legitimadoras nem promessas de redenção num amanhã paradisíaco, embora com legitimidades narradas minuciosamente a cada dia, o problema deixou, por exemplo, de ser a tão criticada falta de objetividade jornalística ou das ciências humanas e passou a ser a falta total de subjetividade dos jornalistas e dos cientistas.
6
Inversão de papel: no apogeu da sociedade do espetáculo, sendo o apogeu sempre o começo da decadência e a decência o princípio de uma nova idade de ouro, o virtual apareceu como hiper-real, uma realidade com a sua prótese tecnológica e o seu vasto manual de utilização. Era o replay do gol que tornava o gol sem repetição algo incompleto, pobre, insuportável, como se lhe faltasse algo, uma realidade tornada deficiente por excesso de verdade. Na sociedade do hiperespetáculo, o real real
, não o virtual, tornou-se o verdadeiro hiper-real. Por exemplo, o papel. Uma publicação impressa ainda aparece para alguns como mais real do que uma publicação virtual, o que dá ao papel um caráter mais real do que real, um lastro-realidade, uma mais-valia nostálgica de natureza pouco promissória
.
7
Não se trata, porém, de mero jogo de palavras. Na sociedade do espetáculo, o meio tornara-se a mensagem. Na sociedade midíocre, no seu primeiro momento, o meio continuou sendo o fim. Mas o mesmo ficou diferente graças à hegemonia provisória da formatação. Não há mais fim. Apenas finalidade. A cara teleologia filosófica converteu-se numa reles teologia de mercado central, uma parada pontual, um ponto de encontro de possibilidades que não se projetam.
8
O virtual superou o real por um excesso de realidade criando uma redundância intemporal, o tempo real. O hiper-real é essa irrealidade virtual às voltas com sua desmaterialização ainda em curso. Uma realidade que, desde sempre, esteve aquém e além da sua evidência, mas que se impõe agora como uma clarividência: o futuro no presente.
9
A grande ilusão dos empiristas, determinados a apresentar a prova ou a negação concreta das teorias abstratas, era pensar numa realidade dura como ferro e verdadeira como o fim de uma ilusão. A ilusão ainda maior dos tecnicistas e dos deterministas tecnológicos foi pensar que a realidade virtual era tão ou mais real que a realidade real. A realidade é sempre virtual. Ela nunca deixa de ser, em qualquer suporte, uma virtual irrealidade.
10
Desse embate entre virtual e real surge uma conclusão parcial: somente a perdição salva da produção. A perdição é o desejo de ser a parte maldita
sem o custo da despesa nem o risco da consumição. Por isso nem precisa mais ser realizada. A perdição basta-se como desejo de desejo.
11
Quando tudo se torna objeto, transcendência da mercadoria como forma superior de um mundo elevado à sua condição inferior, a publicidade elimina o objeto da sua mensagem para multiplicá-lo ao infinito como conceito desprendido do corpo e como gadget. Não se vende mais só um material, nem mesmo uma abstração, mas um imaginário. O imaterial como trampolim abjeto para o material soberano.
12
O imaginário sempre é uma produção capital sem autoria. O mais verdadeiro momento da hipermodernidade é a falsificação do que há de mais falso no hipercapitalismo: o valor e a essência das marcas. Uma questão de estilo.
13
Talvez a hipótese mais radical em relação à sociedade mídíocre seja a do completo deslocamento entre a venda de um produto e a publicidade que o anuncia. E se não houvesse qualquer relação entre o anúncio e a venda de um produto? E se entre o alto consumo de um produto e uma campanha publicitária não houvesse mais do que uma relação de coincidência? Talvez seja esse o grande truque da sociedade hiperespetacular: o publicitário convence o anunciante de que o seu trabalho é decisivo para a vendagem de um produto, mas ele mesmo não tem a menor certeza disso. Essa hipótese decorre de uma outra relação de descontinuidade: para vender objetos (produtos) a publicidade faz o objeto desaparecer, nunca falando dele. Se o consumidor não precisa saber do objeto para comprá-lo, por que precisaria saber do seu anúncio? A publicidade, sabe-se, é um truque.
Somente o publicitário não sabe mais disso.
14
Para Balzac, autor realista, se a imprensa não existisse seria preciso não inventá-la. Na sociedade mídiocre, hiper-realista, a imprensa não existe mais, a não ser como entretenimento ou reality show em tempo real. A realidade é hiperespetacular. O sonho do escritor foi, enfim, realizado como ficção descolada dos personagens.
15
O publicitário inventava o truque e o disseminava. O sociólogo o denunciava com um repetitivo eu vi, eu vi, é truque
. Assim, o publicitário era um construtor de mitos, enquanto o sociólogo era um chato. Agora, depois do fim da separação entre ilusão e realidade, a sociologia é apenas um departamento secundário das agências de publicidade.
16
O tempo real instaura definitivamente o princípio da irrealidade cotidiana que ecoa por toda parte. Consome a informação como um preenchimento do tempo vazio, uma anedota entre outras mais ou menos graves. Mesmo o ao vivo
dos telejornais é uma permanente simulação de presença, uma demonstração catódica de força tecnológica com valor distintivo e de marketing institucional, quase sempre com alguns minutos ou até algumas horas de atraso em relação aos fatos e com a eternidade que precede toda invenção bem-sucedida de um acontecimento provisório.
17
Na televisão, como se sabe, embora nem sempre se conte isso ao telespectador, tudo está a serviço da sagrada imagem, inclusive o imaginário e o fato. Não conta o que se diz, nem mesmo necessariamente quem o diz, mas, antes de tudo, o efeito de embalagem e a embalagem do efeito. Não se trata de em que circunstâncias se diz algo e sim em qual cenário e com quais recursos se diz esse algo elementar.
18
Triunfo do objeto: seu desaparecimento como conceito. Triunfo do conceito: ser consumido como objeto. O objeto sempre foi um problema para os publicitários, assim como o contingente sempre foi um problema para os filósofos, e os fatos, para os jornalistas. Falar do objeto pressupunha referirse a um valor de uso. Os jornalistas, porém, não trabalham com fatos, mas com acontecimentos. Os filósofos, por seu turno, não conhecem o concreto, mas somente o conceito. Por fim, os publicitários já não dependem concretamente do objeto fatídico e factual. Deram um salto epistemológico e estão agora no valor de troca total: a consumação e a consumição conceitual. Publicitários e filósofos sempre compartilharam a crença na relevância de inventar marcas e nomes. A diferença entre filosofia e publicidade nunca passou de uma diferança
de investimentos imediatos. Só importa a comunicação eficaz.
19
O efeito de embalagem não é uma mera supremacia da aparência como forma hiperdimensionada. Mas justamente a superação da aparência como categoria visível pela imposição de uma lógica imaginária que faz surgir uma diferença invisível onde só o mesmo se exprime como diferença desencadeada (sem cadeia) e incontornável. Por trás da mensagem se esconde o vazio do conteúdo. Daí por que o conteúdo acabará por se tornar gratuito. Por trás do conteúdo se esconde o silêncio da utopia. A tela absoluta exige a totalidade de um conjunto de fragmentos vazios.
20
Guy Debord suicidou-se em 1994. Deu capa de jornal. Jean Baudrillard morreu em 2007. A crítica ao espetáculo não passa agora de um Adorno irônico à margem da mídia. As palavras em jogo trazem à tona um mundo encoberto sob a superfície profunda e lacônica dos discursos opacos. A astúcia do trocadilho consiste em fazer pensar que o seu conteúdo se esgota na sua forma anedótica e paródica.
21
Todas essas primeiras marcas ou rastros espalhados como fragmentos remetem a trilhas enigmáticas da Floresta Negra ou aos descaminhos do apagão iluminista: a essência da técnica jornalística e das ciências humanas chegou categoricamente ao fundo de um poço de águas transparentes e geladas: não dizer a verdade sem mentir. Exatamente. Precisão sem essência. A hipermodernidade é cultura da mídia em detrimento do jornalismo – aquém e além das humanidades – que foi a última utopia de emancipação iluminista e modernista, ancorada na informação-verdade.
22
O jornalismo moderno, no seu jargão asfixiante, cobria os eventos para descobrir os fatos. O jornalismo pós-moderno descobria a cobertura como uma forma de desconstrução da sua própria narrativa técnica. O jornalismo hipermoderno está nu. Nada, porém, emana da sua visibilidade excessiva, salvo um brilho sem mais reflexão.
23
A crítica à intolerância expulsou a religião pela porta dos templos. A defesa da tolerância trouxe