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O ego e o algo: violência, juventude e alteridade 
O ego e o algo: violência, juventude e alteridade 
O ego e o algo: violência, juventude e alteridade 
E-book237 páginas3 horas

O ego e o algo: violência, juventude e alteridade 

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Sobre este e-book

Este livro trata dos processos de exclusão, violência, alteridade e juventude, tendo como base a experiência concreta como policial de rua, em seus desdobramentos na compreensão que os avanços da psicologia e da filosofia possibilitam. Trata da construção de identidades por contraste e da criação de avessos, intrínsecos aos processos cognitivos próprios do ser humano.
Analisa esses processos identitários a partir da noção de juventude, exatamente pelo fato desta ser vista no senso comum, como algo bom e que deve ser buscado por todos e cujos valores são inversamente proporcionais à sua alcançabilidade. Discute a noção de juventude, como um catalizador de sentido constitutivo da dietética/hipocondria contemporânea, movimentando todo um conjunto de dispositivos voltados ao cuidado de si, em contraste com as figuras do feio, do glutão, do obeso, do preguiçoso, culpabilizando-os enquanto aquela ideologia é reforçada. Propõe ao final a ideia de alteridade, como uma terceira via para fugir do binarismo, próprio desses processos de construção das identidades estereotípicas, esses calabouços simbólicos que cultivamos em nossos relacionamentos como se fossem naturais. Este livro, apesar de poder se lido como uma obra completa, pode ser também considerado como o resultado lógico e de cunho mais teórico do livro "Nas bordas do inferno: criminalidade, violência e trabalho policial", escrito de uma perspectiva mais próxima da realidade concreta vivida como policial de rua.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de abr. de 2021
ISBN9786599387142
O ego e o algo: violência, juventude e alteridade 

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    O ego e o algo - Carlos Henrique Vieira

    advir).

    1. UMA COSMOLOGIA BIPOLAR

    É impensável uma filosofia que seria diametralmente oposta ao solipsismo? (Wittgenstein).

    Não há instauração da verdade sem uma posição essencial da alteridade: a verdade nunca é a mesma; só pode haver verdade na forma do outro mundo e da vida outra (Michel Foucault).

    Esta é a última consideração, rabiscada no manuscrito da última lição deste filósofo, que dedicou sua vida intelectual a desmantelar as verdades sobre as quais se funda a ordem na sociedade burguesa/ocidental (FOUCAULT, 2011). Uma resposta, talvez, involuntária à célebre indagação de Wittgenstein, e que soa quase como um testamento e um chamado à responsabilidade, dos que se ocuparão em perpetuar e aprofundar seu legado. Para nós, importa o questionamento radical, em relação aos dispositivos, representações, suportes institucionais, estruturas de qualquer natureza, sobre as quais se assenta a política. Especialmente nos tempos (pós-modernos?), em que as representações que configuram nossa compreensão e que apascentam nossas consciências, em relação à nossa participação no mundo, vão sendo simplificadas e reduzidas a noções maniqueístas e apocalípticas; nas quais, aqueles que encarnam a diferença, são reduzidos aos sinais mais absurdamente superficiais e empobrecidos, encarnando, inexoravelmente, os nossos demônios. Um processo típico de nosso mundo, no qual prepondera a imagem; portanto, a primeira e mais superficial impressão, tornando quase insuperáveis, os processos psicossociais de estereotipização, como veremos.

    Fundamentalismos, maniqueísmos, fascismos, racismos, chauvinismos e todas as formas primordiais da violência, fazem-se presentes cada vez mais cruamente em nosso cotidiano; nas religiões, na política, nas relações sociais, quase como o ar que se respira. E isto, obviamente, não é privilégio do Oriente Médio, onde, supostamente, povoam crentes loucos que se explodem o tempo todo; mas, em nossas igrejas, nas estruturas políticas e agremiações de todo tipo, em um processo que se expande e potencializa, de forma descomunal, através das mídias virtuais (ZIZEK, 2003, 2014).

    Se tomarmos a violência como o limite, a partir do qual não há comunicação ou diálogo possível; se a tomarmos como negação atroz a qualquer significação humana – a passagem ao ato da psicanálise -, seria conveniente nos perguntarmos, se as situações de conflito explosivo não representam em si uma posição de alteridade, uma negação radical aos mecanismos de dominação, fundados na performatividade dos processos psicossociais de nominação - a própria ordem do simbólico. É preciso dizer que, filogeneticamente, a performatividade do ato de dar nome às coisas, é concomitante ao aparecimento da linguagem, do simbólico e do social, sem os quais não temos nada de humano. O problema é que, esse processo de nominação, não é simplesmente questão gnosiológica, como crê a maioria dos filósofos. Ou seja, acredita-se que bastaria ajustar a cognição e o senso crítico às regras da metodologia, para descortinar a verdade limpa e pulsante no coração das coisas. Diga-se de passagem, verdade enunciada por um sujeito que desaparece junto com o enunciado e, como num passe de mágica, torna seu solipsismo a regra dessa mesma verdade. Ora, a psicanálise nos ensina que o Real é exatamente a parte que escapa a esse processo fundante do simbólico/humano, e que, portanto, pertence à ordem da loucura e das neuroses. Real este, que lembra muito o que Canguilhem chamava de excesso de órgão, como discutiremos adiante. Sendo que o valor da psicanálise reside, exatamente, em desvendar a lógica dessa parte que escapa à razão: o inconsciente, que pulsa sorrateiro no coração mesmo do sonho racionalista. Real, então, é a sobra do processo de nominação, é o que permanece indomável ao e no humano.

    Assim, aquele processo de constituição do humano/simbólico, se apoia em uma ordem que é axiológica, e que, portanto, diz respeito a valores, e não à verdade da ciência. Nem tampouco o Bem é questão de desvendar a verdade suprema, por um espírito soberano, como anunciava Kant em sua célebre sentença: sapere aude! (Ouse saber) em seu, também famoso artigo, Was ist Aufklärung (O que é o Iluminismo). Isto invalida tanto a Verdade quanto o Bem? Absolutamente, apenas os torna humanos, plenamente humanos e inseridos na ordem da natureza, para cujos desígnios podemos estender a cadeia significante.

    O que poderia querer dizer, a extensão da tríade Verdade, Bem e Sentido à ordem do universo? Ora, imagina o que veríamos, se pudéssemos enxergar em nível subatômico? Fótons, ondas, nada que pudesse ter qualquer sentido para nós. Desta forma, o que define o significado de alguma coisa, é um ato ético primordial: o que presta e o que não presta, o que aproximar e o que repelir. Mas, esta lógica não é tão simples; pois, senão, não haveria movimento nem memória. Tudo acabaria no primeiro ciclo. Portanto, o que presta, não pode estar à mercê do ego. Tem que haver algo que o lance para além do que se lhe apresenta como bom. Tem que haver algo que lhe arremesse para além do princípio de prazer. Algum princípio masoquista? Veremos.

    Em um paralelo no mínimo muito interessante, Lacan, emparelhando Kant com Sade, mostrou que a estrutura da moral kantiana não é diferente da perversão sadiana. Ambos são subvertidos pela Vontade que, ao final, somente se torna familiar ao sujeito, quando autonomia e heteronomia se tornam a mesma coisa. Quando o perverso se torna presa de seu sadismo, em uma realização de prazer impossível; ou seja, um sadismo cujo resultado não é o sofrimento da vítima, mas do algoz afinal; ou, pensando na moral kantiana, quando o bem para o sujeito (Guten, bem-estar) cede ao Bem Maior (Wohl), objeto da lei moral. Assim, tanto a perversão de Sade, quanto o sujeito moral de Kant, estão sob as ordens do Outro, como imperativo categórico; ou seja, incondicional; pois, simplesmente, não há outra possibilidade de ato ético, que não nos termos da Lei, do Nome do Pai, o que exclui de saída o princípio de prazer (LACAN, 1998, p. 777).

    Por outro lado, se algum militante desavisado, achar que detém a verdade da moral e da política, opondo-se ao que é retrógrado, ao que vem dos antigos, ele estará sendo tão moralista quanto Sade; pois, não há uma verdadeira moral que libertará a humanidade do machismo, do fascismo, do chauvinismo, da homofobia etc., porque, simplesmente, não há uma posição fora da moral, assim como não há sentença possível fora da linguagem. Não se joga xadrez, a não ser nas regras do xadrez, para lembrar o grande filósofo da linguagem Wittgenstein. Se contra ou a favor do Pai, tanto faz; pois, é imperativamente em relação a Ele, que as coisas adquirem sentido e que o humano passa a existir. É nestes termos, que Lacan pôde indicar que a filosofia da alcova de Sade é a efígie da Crítica de Kant. De outra forma, resta o ato, resta o inumano, que seria, neste exercício, análogo ao resto lacaniano, ao excesso de órgão canguilhemeano, aquilo que pode catapultar o processo de subjetivação para além de. Pois, embora o acervo simbólico seja pré-formado e performativo, um humano só se realiza, enquanto vivente, pela interpretação única e irrepetível desse acervo simbólico, enquanto um ipse, enquanto não-mesmidade. Como veremos, isso reabre o sistema; pois, de outra forma, não haveria movimento nem memória, somente fótons, ondas, somente o caos, somente entropia.

    Voltando à questão da polaridade originária da vida, definitivamente, tanto na escolha que faz a ameba das substâncias benéficas, quanto na escolha do ego, entre o que lhe é interno e o que lhe é estranho, prazeroso ou desprazeroso, embora se tratem de duas ordens distantes entre si, ocorrem julgamentos inconscientes de valor; portanto, é questão de axiologia e não de epistemologia. Trata-se de uma polaridade, sem a qual não existiria a vida sequer. Trata-se de um processo de escolha entre o que serve e o que não serve, entre o que é benéfico e o que é agressivo, mesmo para um ser unicelular (CANGUILHEM, 1990). Curiosamente, é esse mesmo processo de escolha, que funda o ego e que possibilita o advento do sujeito para a psicanálise (FREUD, 1996a, p. 269). Daí, com uma pequena variação, a partir da polaridade entre o que convém e o que não convém, a partir do tabu do incesto, temos o advento da cultura, da humanidade. Bem entendido que se trata, neste caso, de uma causalidade estrutural e não temporal. Mas, o que importa aqui, é que se trata de uma questão de valores e não da verdade nos termos da Razão Moderna. Trata-se de um sujeito ao qual é interposto um não, pela simples presença do outro (assim, minúsculo). Esse outro, é alguém que se posta além dos limites de minha pele, alguém que não é espelho e que, portanto, me incomoda, por impor-se a mim como dotado de poder, independente de minha vontade. Daí o salto é óbvio: há um Outro, a Lei, o Nome do Pai que, não necessariamente existe fisicamente, e que garante a circulação do poder na sucessão temporal, geração a geração. Talvez, seria interessante igualar esse grande outro à Vontade, tal como aparece de Schopenhauer até Freud, passando por Kant e Nietzsche.

    Não há, de fato, ruptura entre o processo valorativo que constitui a vida no nível fenomenológico e evolutivo primordial e a constituição do social. E isso pode ser observado até em termos de funcionamento cerebral, onde se fundem processos cognitivos e desejo; onde aquela polaridade primordial (a escolha entre o que presta e o que não presta, entre o que engolir e o que cuspir, entre fantasia/alucinação e realidade) ao nível do ego, se mistura com o teste de realidade (a decisão referente a se o que aparece na imaginação, existe também lá fora), como veremos adiante, quando solicitarmos os avanços da neurociência nesta discussão. Por hora, fiquemos com a conclusão, adiantada por Freud ao final de seu pequeno artigo intitulado A negativa, de que é o inconsciente que cuida de estender sensores, através do sistema Cs (pré-consciente e consciente), para conferir se o que existe na consciência, existe também lá fora (FREUD, 1996a, p. 270). Ora, é plausível que o sistema Cs, ao nível do ego, regido pelo princípio de prazer e dominado pelo poder de fantasiar/alucinar/imaginar/projetar, se mostre ineficiente para executar esse trabalho; especialmente, se concordarmos com as pesquisas de Damásio sobre o proto-self e o self central. De fato, quando observamos indivíduos em coma, notamos que suas emoções, e, provavelmente, seus sentimentos, estão ali, embora, possivelmente, não consigam elaborar pensamentos racionais sobre seu estado. Assim, é o meu ich, o inconsciente, que cuida de me lançar para além do princípio de prazer, para além do que para mim é agradável, rumo ao prazer adiado, à sublimação, onde encontro o Outro, o social, a ordem do simbólico, constitutiva do humano. Como dizia Lacan, o inconsciente se estrutura como linguagem. E, como demonstra a psicanálise, este encontro não é nada pacífico; pois, implica em uma hierarquia intransponível em nível sincrônico, de forma que, na sucessão entre significantes, só há comunicação, se há desnível de poder entre locutor e locutário. O outro, que se interpõe a mim, tem que estar arvorado de poder, para que haja comunicação. De outra forma, qualquer mensagem se perderia no espaço, sem significar. Podemos pensar o papel do desejo enquanto falta, enquanto perda, nessa relação do ego e do outro, desde a relação mais remota com a mãe, até o advento do complexo de castração; pois, o poder que garante a comunicação é sempre retirado de um dos lados, como o fiel da balança.

    De forma no mínimo curiosa, podemos perceber, sobre esta questão, uma contradição insolúvel entre a psicanálise e a física/matemática clássica; pois, as noções de soma e subtração em ambas, aparecem invertidas. Enquanto na matemática, aprendemos que os elementos adicionados ao conjunto se somam ao total, na psicanálise não funciona desta forma. Nesta, é a perda que implicará em adicionar algo qualitativamente ao processo. Como se diz no adágio popular, menos é mais; não apenas porque o simples é sempre o mais plausível, como ensinava o filósofo Guilherme de Ockham; mas, porque, em psicanálise, só se adiciona pela perda. Só se ingressa no nível ético da existência pela subtração, pela perda de si. Isto aparece bem conspícuo na obra de Hanna Arendt, quando fala da atuação do ser político, que abstrai de si mesmo, faz-se pura abnegação, enquanto vida privada, em função do político, em função de sua existência social, em uma dialética à qual voltaremos frequentemente.

    O mesmo processo de perda de si, aparece nas situações de luto, nas quais só se dá o salto qualitativo e se adiciona vida a si mesmo e se segue adiante, quando se elabora a perda. Qualquer um pode experimentar em si mesmo como sendo, literalmente, admitir um rombo no peito, um buraco insuperável por dentro, para que se consiga, com o tempo e muito sofrimento, superar essa perda, para, só então, seguir adiante, disponibilizando, novamente, libido para outras relações produtivas ao ego. Em outra linguagem, poderíamos dizer que é com o luto, preferencialmente junto ao grupo, que se pode superar aquela situação catastrófica inevitável, passando a um enfrentamento mais produtivo da situação. Desta forma, qualquer um pode experimentar em si mesmo, esse processo pelo qual se supera qualitativamente, só se soma algo a si, quando se é subtraído, da mesma forma como acontece na linguagem, no simbólico que, não coincidentemente, procede da mesma forma; ou seja, é preciso abrir mão do egocentrismo, para então poder se comunicar. E, quanto mais se é capaz de aceitar a posição de poder do outro em um diálogo, quanto mais se ganha, tanto mais se adiciona ao processo, em termos de compreensão. Mais adiante, talvez, cheguemos à conclusão de que, esse nível além de, é o próprio nível do humano, entendido no sentido ético do termo. Mas, não sem um extenuante exercício de compreensão.

    É bom reforçar que, esse processo de catapulta do ego para além de si mesmo, só acontece graças ao masoquismo primordial, se pensarmos da perspectiva do sujeito. Ele tem que se submeter ao que é desprazeroso, para além do princípio de prazer. Ele tem que se submeter à pulsão de vida, que, neste nível, pode ser igualada à Vontade, como mencionei anteriormente. Ele tem que se submeter a uma agressividade que, necessariamente, tem que ser intrínseca. É por isso que saber e sexo estão tão intimamente relacionados, como pretendo argumentar no capítulo 4. A partir desse ponto, o sujeito pode ser lançado em um processo de repetição mórbida, que lhe castra do laço social, ou em um processo sublimatório – novamente, questão de valores, definidos na dimensão do outro, do social. Mas, poderíamos girar o foco e pensar em um sadismo original, o que daria no mesmo; isto prova que a dor/prazer em mim ou no outro é a mesma

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