Professores de surdos: educação bilíngue, formação e experiências docentes
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Sobre este e-book
"Neste livro a autora problematiza as experiências, as práticas e os saberes acadêmicos dos professores de surdos e interpela como eles tornaram-se esses professores. Para tanto, aborda o conceito de educação bilíngue, o qual considera que não se dá de forma linear, pois se organiza por meio dessa tríade. A partir da discussão do processo de formação, relacionando-o às questões históricas e aos discursos recorrentes presentes nessa formação, a autora discute as práticas bilíngues que compõe o próprio conceito, tendo como matéria-prima as narrativas dos professores de surdos sobre como as formações iniciais e continuadas constituíram-nos nessa profissão."
Profa. Dra. Sonia Lopes Victor
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Professores de surdos - Lucyenne Matos da Costa Vieira Machado
Editora Appris Ltda.
1ª Edição - Copyright© 2016 dos autores
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COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO, TECNOLOGIAS E TRANSDISCIPLINARIDADE
A meus pais surdos, que, mesmo não sabendo onde eu chegaria,
fizeram o melhor que puderam.
A meu marido Leonardo e meu filho Miguel, que, por um tempo, mesmo eu tendo me perdido, ajudaram-me a me encontrar.
AGRADECIMENTOS
À minha família, surda e ouvinte, que foi muito presente em todo o tempo da minha dedicação a esta obra.
Aos professores do PPGE/UFES e, em especial, à querida professora Sonia Lopes Victor pela confiança depositada a mim. Foi um prazer nossos anos de trabalho juntas.
À querida professora Maura Corcini Lopes, só posso dizer a grande inspiração que ela é com seus diálogos, com seu carinho e com sua leitura exigente, prudente. Não há possibilidade de escutá-la e não se transformar.
Aos meus grandes amigos de trocas teóricas, profissionais e outras tantas trocas! Eternos amigos, irmãos, companheiros de luta e de vida que sempre transitam comigo pelo GES (Grupo de Estudos Surdos), pela vida. Obrigada a cada um! Sem nossas conversas este livro não seria possível!
Agradeço às professoras e professores que dialogaram comigo no tempo todo da minha pesquisa dispondo-se a narrarem suas histórias.
Aos surdos e ouvintes militantes da causa surda em prol de uma escola bilíngue. Aprendo com vocês todos os dias.
A MÃO
A técnica tem má fama; pode parecer destituída da alma.
Mas não é assim que é vista pelas pessoas que
adquirem nas mãos um alto grau de capacitação.
Para elas, a técnica estará sempre intimamente ligada à expressão.
[...] Immanuel Kant fez um comentário sem maiores pretensões:
A mão é a janela que dá pra mente
.
[...] De todos os membros do corpo humano,
é ela dotada de maior variedade de movimentos,
que podem ser controlados como bem queremos.
A ciência tenta demonstrar como esses movimentos,
aliados ao tato e às diferentes maneiras de segurar com as mãos,
afetam nossa maneira de pensar.
Richard Sennett
PRELÚDIO
NOTAS DE UM COMEÇO
Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto - e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio extremamente perigoso: dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada das palavras: as palavras que digo escondem outras - quais? Talvez as diga. Escrever é uma pedra lançada no fundo do poço
.
Clarice Lispector
Clarice Lispector inspira muito bem a ordem dos acontecimentos ao tomar a folha em branco: escrever é mexer com o que está oculto; é acordar o adormecido. E em um texto que durou quatro anos, isso é mais do que medo, é começar sem saber como termina. É metamorfosear-se, andar por um terreno movediço com passos firmes tateando no escuro a cada passada. Posso por isso afirmar aqui que comecei de um jeito e à medida que lia e dava a cor preta a meu papel branco, modificava-me completamente. Às vezes queremos acabar com tudo, outras vezes queremos escrever, e as madrugadas me acompanhavam. Mas esse é o preço a pagar pelas pessoas que escolhem encarar o medo de escrever naquela folha branca que pode revelar a sua conversão, a sua vida.
Algumas perguntas são altamente pertinentes quando, ao abrir o computador, colocamo-nos diante do exercício de escrever, em uma fase em que queremos pensar e ler apenas. Rodeiam-me, neste momento, simples perguntas do tipo: Como enfrentar a folha branca do computador?
Como fazer com que essa folha branca não espante de mim o desejo e a paixão de dar autoria a um texto? Vale aqui esclarecer que achei em Foucault algo que particularmente me interessou diante da empreitada e do desafio que se colocam a mim neste instante.
Este texto é resultado de uma pesquisa que problematiza os saberes, as práticas e as experiências que permeiam a formação dos professores de surdos, abarcando, assim, a constituição do conceito de educação bilíngue, que não se dá de forma linear, mas se trata de um conceito criado a partir das práticas e das experiências desses sujeitos. O objetivo principal deste estudo é compreender como nos tornamos professores de surdos com os saberes de experiência constituídos junto aos saberes considerados acadêmicos.
Por vivermos momentos fluidos na educação de surdos no país, a formação desses profissionais atravessam percursos não determinados, criando possibilidades outras daquelas que estariam na ordem do desejo do que seria uma educação bilíngue satisfatória. Não é possível analisar as formações desses sujeitos professores de surdos, os currículos dos cursos sem relacioná-los ao movimento surdo e a urgência da formação de um novo grupo de saberes técnicos para a área. E isso tudo atravessa o próprio sujeito professor que precisa constantemente se transformar para permanecer no jogo e buscar seu lugar no discurso vigente. E com a finalidade de discutir as diferentes formas de constituição e subjetivação dos professores de surdos e como a atitude e a contraconduta dão contornos a educação bilíngue, nos inspiramos nas teorizações foucaultianas.
Em entrevista a Trombadori (1978), Foucault¹ fala sobre a escrita e deixa claro que quando escreve, escreve não para enunciar algo descoberto, uma verdade, ou uma teoria. Mas quando escreve, escreve para mudar a si mesmo, metamorfoseia-se durante o exercício da escrita. Foucault diz:
Não penso jamais a mesma coisa, pela razão de que meus livros são, para mim, experiências, em um sentido mais pleno possível. Uma experiência é qualquer coisa de que se sai transformado. Se eu tivesse que escrever um livro para comunicar o que penso, antes mesmo de começar a escrevê-lo não teria jamais coragem de empreendê-lo. Só o escrevo porque não sei, ainda, exatamente o que pensar sobre essa coisa que tanto eu gostaria de pensar. De modo que o livro me transformou e transforma o que penso. […] Eu sou um experimentador, não um teórico. [...] Sou um experimentador no sentido de que escrevo para mudar a mim mesmo e não pensar a mesma coisa de antes.²
Gostaria de pensar na escrita deste livro como uma experiência e possibilidade da impossibilidade de ser o que se é desde sempre.
Porém, se estou tratando esse momento como uma experiência de metamorfose de mim mesma, em um experimento, não posso deixar de me apaixonar pelo que escrevo. Quando um texto atravessa nossas vidas e os sentidos tomam rumos anteriormente não calculados, significa que a escrita está de fato ligada à paixão.
Fischer³ aponta sobre a necessidade de assinar o que lemos, nos propõe pensar textos apaixonados e apaixonantes, uma escrita que nos aproxima de quem lê ou de quem produz. As perguntas com que Fischer nos provoca estão estritamente ligadas a questões que na pressão de produzir academicamente são por vezes deixadas de lado: Podemos (e devemos) escrever a nós mesmos no texto científico? Ser ausente em muitos textos acadêmicos denuncia muitas vezes a falta de paixão daquele que cria.
Vale a pena ressaltar a frase que a autora cita de Skliar:⁴ Tudo o que é diferente de nós não pede licença para irromper em nossas vidas
. De fato, muito de nossas pesquisas que são escritas, são acontecimentos, são devires. E isso, torna a escrita acadêmica gostosa e vívida. E não apenas em textos e autores que reduzimos a pasta
, a pastiche, à monótona repetição do já dito. Afinal, ao utilizar um autor na escrita acadêmica, nós de certa forma o reescrevemos, nós nos apropriamos dele e continuamos sua obra, tencionamos os conceitos que ele criou, submetemos à discussão uma teoria, porque a mergulhamos no empírico, no estudo de um objeto por nós selecionado, que ultrapassa, vai além dos objetos que o autor escolhido elegeu.
Ainda me remetendo a Foucault, quando relata sobre sua relação com a escrita, vale ressaltar que o desejo de escrita do autor, surge quando o mesmo vive uma experiência de estrangeiridade. Em A Palavra Nua,⁵ uma entrevista que dá para o Le Monde, em 1966, logo após escrever As Palavras e as Coisas, Foucault diz:
Assim, minha relação com a escrita era um pouco complicada, um pouco sobrecarregada. Mas existe outra recordação, bem mais recente. É o fato de que, no fundo, eu nunca levei muito a sério a escrita, o ato de escrever. O desejo de escrever só surgiu forte em mim quando eu tinha cerca de 30 anos. Para chegar a descobrir o prazer possível da escrita, foi preciso estar no exterior. Eu estava vivendo na Suécia e me via obrigado a falar o sueco, que conhecia muito mal, ou o inglês, que praticava com muita dificuldade. Meu conhecimento fraco dessas línguas me impediu de dizer o que eu realmente queria durante semanas, meses, até mesmo anos. Eu via as palavras que queria dizer sendo travestidas, simplificadas, tornando-se como pequenas marionetes irrisórias à minha frente, assim que as pronunciava. Nessa impossibilidade de usar minha língua própria, percebi, em primeiro lugar, que esta possuía uma espessura, uma consistência, que ela não era simplesmente como o ar que respiramos, uma transparência absolutamente insensível, mas que tinha suas leis próprias, seus corredores, suas linhas, seus declives, suas costas, suas irregularidades -em suma, que tinha uma fisionomia e que formava uma paisagem na qual podíamos caminhar e descobrir em volta das palavras, das frases, de repente, pontos de vista que não apareciam até então. Nessa Suécia em que tinha que falar uma língua que me era estranha, compreendi que podia habitar minha língua, com sua fisionomia repentina particular, como o lugar mais secreto, mas mais seguro, de minha residência nesse lugar sem lugar que é o país estrangeiro no qual nos encontramos.
Escrever para mim, também é habitar um mundo em uma língua (Língua Portuguesa) que desperta sentimentos adversos. Amada por ser a minha língua de compreensão do mundo e ao mesmo tempo complicada por ser predominantemente valorizada na vida dos sujeitos surdos, em muitas vezes prejudicando a luta pela possibilidade de igualdade de tratamento da sua língua, Libras. Meus pais também são esses sujeitos surdos
. Ser estrangeira em meu próprio idioma (português) ou ser estrangeira na língua dos meus pais (Libras) me faz querer me refugiar na escrita como sempre fiz em toda a minha vida. Diários, anotações, cadernos de recordação... tudo que envolve escrita, desde meus 5 anos, quando dominei essa arte, trouxe a mim o fascínio e a necessidade de expressão. É como se a escrita fosse um outro mundo, um outro processo.
Pensar sobre a escrita como experiência, transforma esse texto em quase um diário, no qual eu, como pesquisadora, vou caminhando com minhas angústias, questões, encontros e compartilhando com outros narradores suas angústias, questões e práticas. Até o último momento de escrita dele, haviam questões abertas dos movimentos surdos que consequentemente trazem modificações nos percursos da formação dos professores e da educação bilíngue em nosso Estado. E questões ainda possíveis de serem exploradas uma vez que os percursos da formação dos professores de surdos não acabam com o último capítulo dela. Todavia outras possibilidades de reflexão são criadas quando acerto o ponto final.
E nesse movimento de experiências e experimentos, ser filha de surdos é ocupar um lugar nessa ordem discursiva. E além disso, ser professora bilíngue também me coloca em um lugar específico entre o grupo que trabalha comigo. E por isso, neste texto falo sobre a formação dos professores de surdos, os percursos e as experiências da educação de surdos o que com certeza são temas relacionados de forma estreita a esse lugar que ocupo.
Vale ressaltar que é um texto que foi escrito em pelo menos três anos e por isso, ele acontece de diversos modos. E com esses modos, meus pensamentos vão sendo moldados a cada tempo que passa. Minhas certezas substituídas por outras ou mesmo por incertezas. Perguntas refeitas, modificadas e reescritas. Mas uma hipótese se comprova nesse processo: um professor de surdos consegue se identificar muito mais com o ofício quando é engajado no movimento surdo pela luta por uma educação de qualidade para esses sujeitos. Seus conceitos sobre a educação dos surdos, sobre o sujeito surdo vão sendo moldados a cada percurso formativo em que se engaja, mas principalmente os subjetivam e influenciam diretamente na perspectiva bilíngue que vai sendo configurada.
A formação dos professores de surdos não se descola em momento algum das práticas e dos discursos que constitui a experiência desse profissional. E essas experiências e atitudes constituem por sua vez o que chamamos hoje de educação bilíngue, grande discurso que se coloca, neste nosso presente, como uma verdade de salvação para o sujeito surdo. Mas o que estamos chamando de bilíngue? A formação dos professores de surdos está dando conta de discutir esse conceito? Ou esse conceito que constitui a formação?
PREFÁCIO
Este livro é o resultado de muitas lutas travadas pela autora ao longo de sua vida acadêmica, que tem sido intensa e profunda. Entretanto, as temáticas presentes aqui não estão situadas apenas na carreira da autora, mas tiveram início em sua tenra infância. Infância essa marcada pela cultura surda ao lado de seus familiares e da comunidade surda. A autora é ouvinte, filha de surdos e, em virtude desse pertencimento, tem desenvolvido, com base na paixão por essa cultura e as questões que a perpassam, um trabalho rigoroso e disciplinado com o propósito de contestar a norma imposta a essa comunidade e contribuir com uma contraconduta
para transformar as realidades social, cultural e educacional, desfavoráveis ao seu processo de inclusão, em possibilidades.
Neste livro a autora problematiza as experiências, as práticas e os saberes acadêmicos dos professores de surdos e interpela como eles tornaram-se esses professores. Para tanto, aborda o conceito de educação bilíngue, o qual considera que não se dá de forma linear, pois se organiza por meio dessa tríade. A partir da discussão do processo de formação, relacionando-o às questões históricas e aos discursos recorrentes presentes nessa formação, a autora discute as práticas bilíngues que compõe o próprio conceito, tendo como matéria-prima as narrativas dos professores de surdos sobre como as formações iniciais e continuadas constituíram-nos nessa profissão.
A temática relativa à formação de professores tem se constituído como fundamental diante das mudanças nas políticas de educação especial. No entanto, o lócus dessa formação ainda está indefinido. Por isso não gostaria de falar apenas da escrita sucinta desta obra, que me cabe neste prefácio, mas do modo como ela foi solidária e humanamente produzida. Foi criada uma rede de conversações entre professores de surdos e a autora, que possibilitaram uma série de ações: análise de currículos dos cursos de formação de professores de surdos ao longo da história, a história dos movimentos surdos no Brasil e no mundo e as formações na perspectiva da educação bilíngue. Para além dessas ações, fundamentais à educação dos estudantes surdos, está o compartilhamento de ideias entre a pesquisadora e os professores, retratando um modo vivo de fazer pesquisa.
Por fim, a análise dos diversos assuntos tratados nessa rede permitiu à autora reconhecer os movimentos formativos como possibilidade de diálogo, lutas e constituição do conceito – educação bilíngue. Nesse sentido, os resultados apontam, conforme destaca a autora, percursos que delineiam discursos que vão desde os religiosos aos pretensamente científicos.
No entanto, como já mencionei, a importância deste estudo está nessa rede de conversação entre pesquisadora e professores, que permite, como nos revela a própria autora, [...] compartilhar experiências, práticas e saberes, mostrando possibilidades de formações, sem modelos, mas basicamente apontando princípios que optem por formar professores em uma perspectiva de que os sujeitos surdos sejam de fato protagonistas do processo da educação bilíngue, como se tem buscado incessantemente, a fim de que possam ter acesso a um ensino de qualidade em uma escola em que a sua língua seja língua de instrução
.
E, como não poderia deixar de ser, o livro representa o mergulho cada vez mais profundo da autora no debate sobre a educação de surdos, fazendo emergir excelentes contribuições, as quais tive a honra e o prazer de ver acontecendo.
Profa. Dra. Sonia Lopes Victor
Universidade Federal do Espírito Santo
sumário
INTRODUÇÃO
Para Iniciar a Conversa
O Porquê da Escolha desse Tema
(Per)Cursos da minha Própria Formação Docente
1.
CONTORNOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DESSE TRABALHO: CAMINHOS PERCORRIDOS
Narrativas e Experiências