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Do mundo de Herberto Helder
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Do mundo de Herberto Helder
E-book770 páginas11 horas

Do mundo de Herberto Helder

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Sobre este e-book

Do mundo de Herberto Helder ensina: "A luta é dolorosa desde sempre/ antes de Homero escrever/ cantar que a luta é dolorosa" (Maffei, Vista de Olímpia, 2016). Aceite o ensaio como gênero impuro (Goulart), no limiar do poema, sem estabelecer dependência de qualquer lei de gênero (Silvina Rodrigues Lopes), enquanto acadêmico e ensaísta, Luis Maffei não teme interrogar a hipótese de haver uma pedagogia da poesia em geral e da herbertiana em particular, sabendo que ensinar literatura é já um paradoxo. Leitor incendiado por dentro do fogo que a faca não corta, Maffei coloca-se no centro da ferida-Herberto – quem será este tipo? quem será este texto? –, em combate e embate frontal com o poema, puro e duro, em cópula. Resultado do trabalho de mais de década e meia de investigação, este livro participa da lição (e é dela réplica, também sísmica) de Camões e de Herberto-leitor-de-Camões, conforme à metamorfose do amador em que se transforma o leitor na coisa lida. Em pathos e patologia partilhada com raros ensaístas que pertencem à comunidade aflitiva que lê A poesia portuguesa hoje (Gastão Cruz), Luis Maffei é, dos da sua geração, um dos mais antigos, informados e potentes leitores da atualidade, sujeito forte em diálogo revolto e desobediente com parte do cânone da literatura portuguesa, que se refaz com a sua leitura. A concepção eminentemente atual do poema (Ruy Belo, Na senda da poesia) herbertiana é, pela leitura de Maffei, expandida a um programa: o exercício de um poder que atende pelo nome arriscado de liberdade. A luta é dolorosa e a poesia não salva. E, no entanto, há raros leitores como Maffei (um dos ensaístas vivos que me interessa mais), que criam uma zona de liberdade transitável. Este lugar (em que é livre também ser contaminado) é lição a ser aceite por quem ler "os livros atrás a arder para toda a eternidade".
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de dez. de 2017
ISBN9788595000162
Do mundo de Herberto Helder

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    Do mundo de Herberto Helder - Luis Maffei

    Referências

    Em 1988, Herberto Helder lança As magias, um de seus livros com poemas mudados para português. Na abertura (1988, p. 7), Magia, escrito orginalmente pelo norte-americano Thomas Wolfe:

    E quem dirá

    – seja qual for o desencanto futuro –

    que esquecemos a magia,

    ou que pudemos atraiçoar

    na terra amarga

    a macieira, a canção

    e o ouro?

    São quatro as palavras-chave, nomes que, se atraiçoados (como podemos? Como podermos?), tornarão insuportável o desencanto futuro; se dignificados, manterão, entre nós e o mundo, através das palavras, um vínculo perigoso e vivo, luminoso e dramático, metal fundente, para usar expressão preciosa de Mário Cesariny (1982, p. 37). Entre nós e as palavras, entre nós e as coisas, magia, macieira, canção e ouro no mundo advindo do mundo de Herberto Helder. Neste momento da história das leituras de poesia portuguesa, o poeta já recebeu bastante atenção. A hora, talvez, fosse de tentar estranhá-lo um pouco, recuperando o espanto da personagem de Manuel Alegre: como fazer Herberto Helder voltar a ser legível como se pela primeira vez? Quem, afinal, será este tipo, de poemas tão raros?

    Encontrei Herberto pela primeira vez ao me deparar, sem muito preparo, com Photomaton & Vox. Sem tíquete ou guia, eu, um então juvenil amante de coisas de poesia, louco por Camões, futuro pesquisador de literatura portuguesa, descobria um material, ou melhor, uma matéria um pouco estranha, meio viciante, e pensei: quem será este tipo? Em resumo, a aventura que ali começava, e que teve na Poesia toda encontrada logo depois um corpo inseparável, foi mesmo para responder à pergunta, que ia sendo sucessivamente mudada: que será este poema? Que serão estas coisas? Como acolher este objeto? Como desobjetar estas fúrias?

    Acabou que escrevi uma dissertação de mestrado sobre Do mundo, livro lançado em 1994, e uma tese de doutorado sobre a obra do poeta. Coisas acadêmicas, por certo, insuficientes para responder às tais perguntas, ou melhor, para continuar formulando perguntas em expansão. Mas, em meio a material demais e demasiadamente pronto ao descarte, alguns núcleos de aproximação, verdades interessadas, um honesto estudo, honesto e eventualmente audaz. Muitas vezes me perguntaram se, ou quando, eu iria publicar a tese. Eu sempre respondi que não iria publicar a tese, pois seus fogos não bastavam para aquilo sair dos bancos acadêmicos e rumar ao livro, que, ou é incendiado, ou não deve ser.

    Entre 2008, ano seguinte à apresentação da tese, e 2015, ano de morte do poeta, Herberto Helder publicou livros – e mesmo depois da morte... Isso me fez, por moto próprio, circunstância ou convite, escrever várias páginas sobre o poeta. Os vários textos não deixavam de resultar, no fundo, das muitas, mais de 500, páginas em A4 que eu depositara no fim de 2007. Houve uma espécie de iluminação: os textos recentes torciam o antigo, que enfrentava a passagem do tempo sem muito brilho, mas com alguma dignidade. E havia os núcleos de aproximação, alguns atritos que faiscavam, uma ou outra fumaça.

    Não sei quando exatamente decidi construir este livro. Sei que foi por volta da morte de Herberto Helder. A primeira parte provém da tese e oferece ao conjunto o título, pois a pretensão é ainda tratar do mundo de Herberto Helder; os títulos dos capítulos (não dos sub) também permanecem, pois a estratégia, baseada nas palavras de Wolfe trazidas ao português por Herberto, é mesmo usá-las, ainda, para abrir portas de leitura. Mas essa leitura não é propriamente a tese de doutorado corrigida, é, profunda e, muitas vezes, radicalmente, a tese de doutorado reescrita, outro texto que, não raro, diz coisas muito distintas do que dizia o outro. Espero não estar errado em permitir que venha ao mundo este que agora vem.

    O trabalho de reescrita, doloroso e vivaz, fez rever-me em dois níveis, pelo menos. O primeiro tem a ver com encontrar o leitor que eu não sou mais. Ainda que 2007 não esteja tão longe, a contagem dos anos, para o processo de reinvenção do leitor, não é assim tão imperiosa. Além do mais, 2007 foi, sobretudo, foz de um processo longo, começado anos antes. Rever-me, nesse sentido, foi reencontrar também, no tempo em passagem, um tempo passado, memórias, inclusive, até pessoas que, de várias e distintas maneiras, também mudaram – essas pessoas estão dentro do texto, leitores de uma comunidade aflitiva, ou fora, em diálogos, afetos, lateralidades. Mas este, que não sou mais, ainda tem a ver comigo; não tivesse, o desmedido texto não poderia sequer servir de alimento para o que está aqui.

    Rever-me, se é estranhar a leitura e o leitor, é também estranhar o lido: quem será este tipo? Desconfiando de saber muito de um autor a ponto de lhe dedicar uma tese, estranhei um bocado o Herberto reencontrado, não apenas por trabalhar, na carne da leitura antiga, coisas que o poeta escreveu após 2007, mas por, volta e meia, me surpreender perguntando, com olhos semelhantes aos que viram Photomaton & Vox pela primeira vez: quem será este texto? E este, pretextado por magia, macieira, canção e ouro, que será? Sei que cada um dos capítulos parte de sua palavra-chave para enfrentar séries de aspectos da poesia de Herberto Helder, o que se mistura tanto que as divisões acabam fracassando. Mas há uma estratégia, que não se manterá obscura à medida que as páginas forem sendo encontradas.

    E quem dirá/ – seja qual for o desencanto futuro – que entre um leitor e o que ele lê não há metal fundente? Que as palavras sobre poesia são pobre espectro arrogante que não consegue ser poesia e, portanto, devia calar? Entendo que, leitor criado pelo texto, crio regiões de interseção e recolho para recônditos da vida muitos lugares da poesia, dessa poesia, cujo enfrentamento é luta e frenesi erótico.

    Antes de começar de fato, há agradecimentos a fazer. Para escrever este texto, estes textos, assim como para repensá-lo(s), criticá-lo(s), viabilizá-lo(s), contei com vários leitores, tive distinta ajuda e distintas ajudas. Por essas e outras, agradeço a Evelyn Rocha, áurea potência da aventura, transformação; Rosa Martelo, Maria Lúcia Dal Farra, Gilda Santos, Ida Alves, Cinda Gonda, atenta e experta, Eucanaã Ferraz e, especialmente, Jorge Fernandes da Silveira, poeta; a Ana Cristina Joaquim, Silvana Pessôa, João Tiago Lima, Rogério Barbosa, Roberto Menezes, Maria Lúcia Wiltshire, Sílvio Renato Jorge, Tatiana Pequeno, Renata Flávia da Silva e Marcia Arruda Franco; a Manuel Rosa, Vasco David, Eduardo Coelho e Sergio Cohn; a Gastão Cruz, com emoção nos olhos, Carlos Mendes de Sousa, Eunice Ribeiro, Silvina Rodrigues Lopes, Daniel Rodrigues, Catherine Dumas, Ilda Mendes dos Santos e Frederico Lourenço; a Pedro Eiras, Diana Pimentel, a arder, Luís Mourão, Lilian Jacoto e Gustavo Rubim; a Mariana Vilhena, Marcelo Gargaglione, Fernando Miranda, Ana Adão, Sebastião Edson Macedo, Mayara R. Guimarães, Izabela Leal, Milena Maximo e Júlia Osório, xadrez sem peças; a Paulo Braz, Beatriz Helena Souza da Cruz e Kigenes Simas Ramos.

    Antes, a Blony e Oyama Maffei, e depois, e a Ingmar Dias Maffei e Dioniso Menezes Maffei, e antes.

    1 A MAGIA

    1.1 PALAVRA PERVERSA, ENCONTROS, MÁXIMA ABRANGÊNCIA

    Afirma Ernst Fischer (1966, p. 23), em ensaio intitulado A função da arte:

    Em todas as suas formas de desenvolvimento, na dignidade e na comicidade, na persuasão e na exageração, na significação e no absurdo, na fantasia e na realidade, a arte tem sempre um pouco a ver com a magia. (...) a arte (...) é necessária em virtude da magia que lhe é inerente.

    O ficcionista argentino Ernesto Sabato (1982, p. 85), por sua vez, escreveu: Em nosso tempo, só os grandes e insubornáveis artistas são os herdeiros do mito e da magia, são os que guardam no cofre de sua noite e de sua imaginação aquela reserva básica do ser humano, através destes séculos de violenta alienação que vivemos. Herberto Helder pertencer a esse conjunto de artistas é o que permite a Maria Lúcia Dal Farra (1986, p. 281) afirmar: a palavra de Helder começa (...) no duelo contra o incrustado e automatizado, no trato de descascar cada camada sobreposta, a fim de perscrutar, nesse espectro, onde se guarda o ‘descido’ coração das coisas. A generalidade dos nomes e um uso burocrático da linguagem é o atraiçoamento a que se refere o poema de Thomas Wolfe citado no 0, o que subtrai da palavra sua potencialidade criadora. Se só o poeta, como escreveu Ruy Belo (2002, p. 108), se fica na linguagem, pois os outros passam por ela, servem-se dela, afirma Herberto Helder (2001a, p. 194), numa espécie de autoentrevista: Sente-se um tremor secreto na palavra, desde a origem, desde as invocações e as imprecações dos feiticeiros, dos xamãs, dos hierofantes. A obra herbertiana constrói palavras, de vocação inauguradora e construtiva, que serão surpreendidas, surpreendentes, como se lê em Os selos (2014, p. 460):

    A poesia é um baptismo atónito, sim uma palavra

    surpreendida para cada coisa: nobreza, um supremo

    etc.

    das vozes –

    As palavras são poeticamente batizadas para que se surpreendam e se livrem, com nobreza (não está longe daqui um amor cortês, no e do texto), de um uso apressado, aparentemente comum mas avaro, e comum apenas num sentido banalizado. É criado um supremo/ etc./ das vozes, uma sucessiva possibilitação de sentidos e futuros, pois as palavras, na poesia de Herberto Helder, abrem-se à potência criadora que as faz reviver, e que através do poema se vai espalhar no mundo, de acordo com Silvina Rodrigues Lopes (2003a, p. 58) – um dos testamentos herbertianos, dos últimos poemas escritos pelo autor, diz, em A morte sem mestre (2014, p. 749): e encerrar-me todo num poema,/ não em língua plana mas em língua plena. É isso o que, de modo irônico, o narrador de Estilo (1997a, p. 11) nega, ao descrever a maneira que encontrou para mimetizar a cultura e sua imposição de esvaziamento:

    Começo a fazer o meu estilo. Admirável exercício, este. Às vezes uso o processo de esvaziar as palavras. Sabe como é? Pego numa palavra fundamental. Palavras fundamentais, curioso... Pego numa palavra fundamental: Amor, Doença, Medo, Morte, Metamorfose. Digo-a baixo vinte vezes. Já nada significa. É um modo de alcançar o estilo.

    Afirma Maria Lúcia Dal Farra (1986, p. 106), acerca deste conto de Os passos em volta, que estar na posse de um estilo é agora estar aliado à vida do sistema, cumpliciado a ela. O que a poesia de Herberto Helder procura é justo o oposto do que faz o narrador do conto, pois as palavras desta poesia não permitem que qualquer sistema (pego a palavra do fragmento de Dal Farra) as neutralize, pois cada uma delas é surpreendida – além de surpreendente, cada uma é pega por cima, se eu levar em conta a etimologia de surpreender, o que confere ao materal do poético um caráter fortemente material, físico, erotizável. O próprio poeta declara, acerca da natureza do poema (2001a, p. 192): E temos essa forma: a forma que vemos, ei-la: respira, pulsa, move-se – é o mundo transformado em poder de palavra, em palavra objectiva inventada, em irrealidade objetiva, o que permite a Pedro Schachtt Pereira (2002a, p. 100) asseverar: o poeta investe-se de um poder que se exerce no próprio acto de escrever. A realidade objectiva que é a palavra do poema, baseada num poder fundamental, urde uma irrealidade objectiva, ou seja, reais no real, mundos no mundo; o poema, afinal, diz Herberto (2001a, p. 191), é um objecto carregado de poderes magníficos, terríficos.

    A construção de uma palavra/ surpreendida para cada coisa não deixa de solicitar um movimento destrutivo, todavia (e se eu me lembrar do capítulo 15 deste livro, até autodestrutivo). Disto advém a violência da poética herbertiana, que quer esvaziar as palavras de uma semântica contaminada de abusos, ou, em outras palavras, estas de Silvina Rodrigues Lopes (2003a, p. 104), desnaturalizar a linguagem. Tal violência é notável em "(a poesia é feita contra todos)", de Photomaton & Vox (1995, p. 161): Nós respeitamos os atributos e instrumentos da criminalidade: agressão, provocação, subversão, corrupção. Queremos conhecer, exercendo-nos dentro de poemas, até onde estamos radicalmente contra o mundo. É notável a presença do nós, já que, mais adiante, lê-se que (1995, p. 162) a poesia é feita contra todos, e por um só; de cada vez, um e só, em resposta ao Lautréamont que escreveu (1997, p. 282): A poesia deve ser feita por todos. O nós herbertiano é toda uma tradição com que o poeta se irmana. Além disso, gosto de pensar na ambição por uma coletividade que não passa por um projeto sectariamente ideológico, pelo menos no sentido político usual, mas por uma sorte de acesso, talvez utópico, ou utopicamente artístico, a um tempo de máxima abrangência, semelhante àquele que Octavio Paz chama de original. Cito esse Paz (2012, p. 43), que tem exatamente a sentença de Lautréamont como objeto de reflexão:

    Assim como ninguém mais afirma que o povo seja o autor das epopeias homéricas, tampouco se pode defender a ideia do poema como uma secreção natural da linguagem. Lautréamont quis dizer outra coisa quando profetizou que um dia a poesia seria feita por todos. Nada mais deslumbrante que esse programa. Mas, como ocorre com toda profecia revolucionária, o advento desse estado futuro de poesia total supõe uma volta ao tempo original. Nesse caso, ao tempo em que falar era criar. Ou seja: voltar à identidade entre a coisa e o nome.

    Está a poesia contra todos porque o tempo original se perdeu – fique claro que esse tempo, como esclarece o próprio Paz, não é necessariamente histórico, ainda que sugira certa memória muita antiga, ou uma antiguidade pré, quiçá para-histórica. Talvez por isso cativem a prática poética de Herberto Helder os xamãs, os sacerdotes, os profetas. E os do verbo primitivo e furioso, sangue e sopro (...), nas palavras do próprio Herberto (2005, p. 114), num texto sem título vindo à luz em 2005, pois estes podem ser partícipes na invenção das origens, das surpresas, de palavras novivelhas. Como afirmou Luiz Alfredo Garcia-Roza (2001, p. 7), Houve um tempo, na Grécia arcaica, em que as palavras faziam parte do mundo das coisas e dos acontecimentos. Uma prática afim a essa foi forçada a ter, hodiernamente, caráter individual, pois recusa muitíssimas das solicitações daquilo a que se pode chamar sociedade, o que não obsta a necessidade de participação que afeta a poesia, segundo Paz (2012, p. 33): Há um traço comum a todos os poemas, sem o qual eles nunca seriam poesia: a participação. Enquanto sigo com muitas companhias esta leitura, anuncio que já tratarei da irmandade que Herberto Helder reúne, mas cabe imediatamente uma referência a Ernesto Sampaio, cujos poemas-meditações – ou como se lhes queira chamar –, nas palavras do autor de Os passos em volta (1985, p. 265), são dos textos mais agudos e corajosos que entre nós se escreveram, na modernidade, dentro da e sobre a ‘experiência poética’ : "A literatura exige solidão. A solidão é o estado de equilíbrio da consciência que prolonga a lucidez desde a mais simples percepção até à mais complexa representação de formas interiores sagradas" (In: HELDER, 1985, p. 267).

    Com "sagradas, Sampaio não diz de qualquer religião estabelecida, como esclarece em nota de pé de página: O sagrado (...) representa a energia polarizada (...) onde vibra a essência da Vida (In: HELDER, 1985, p. 267); com solidão, condição que prolonga a lucidez, diz da necessária individualidade que ambienta os exercícios que a experiência poética propicia ser agudos e corajosos, como são os de Sampaio segundo Herberto Helder. Neste sentido, encontra-se a afirmação de Sampaio recolhida por Herberto Helder com uma de Mircea Eliade (2002, p. 41) acerca do homem religioso: ele é projetado para um nível vital que lhe revela os dados fundamentais da existência humana, quais sejam, solidão, precariedade, hostilidade do mundo circundante – Herberto nomeia, precisamente, xamãs, sacerdotes e profetas em seu texto de 2005, figuras cuja religiosodade interessa enquanto poesia, traço que faz o mundo circundante hostilizá-las: contra todos a poesia é feita, e por um só, posto que é o poético enquanto gesto afirmativo e peculiar que sofre a hostilidade do mundo circundante. Mas a este mundo a poesia também hostiliza, contando para isso com a participação de múltiplos outros – o um só" que escreve possui grande capacidade de alterização, e sua solidão se dáa a encontros, como bem indicou Octavio Paz.

    As práticas de magia querem o que racionalmente se considera inacessível, buscam o que Bataille (1989, p. 39) chamou de identidade das coisas refletidas e da consciência que as refletiu. Ocorre algo análogo na literária definição de poesia de "(guião)", presente em Photomaton & Vox (1995, p. 142): "Não somente ‘a poesia é o real absoluto’ do Romantismo Alemão, mas é um absoluto real, e o poema é a realidade desse absoluto. Ao pretender ser absoluto, o poema não se contenta em ser reflexo, seja do mundo real banalizado, seja de um mundo de intangíveis ideias. Pelo contrário, o poema possui uma ambição ousada, e procura, num gesto agudamente fundacional, uma palavra/ surpreendida para cada coisa e uma palavra identificada com cada coisa", ainda que eu entenda esse absoluto como não coincidente com um Todo megalômano. Aproveito a deixa para lançar uma pedra no caminho, desde já: sendo o título Poesia toda tão dado a recepções potencialmente equivocadas, não há uma consciência de fragmento quando Herberto Helder, a partir de 2009, abandona a famosa expressão no título de sua poesia reunida?

    Bataille (1989, p. 39) encerra seu aqui citado parágrafo com uma pergunta cuja resposta está na própria interrogação: Mas o único meio de não ser reduzido ao reflexo das coisas não é, com efeito, querer o impossível? Talvez um bom encontro da palavra absoluto seja com impossível, e nessa esquina detecto um dos desejos do poema, resultado de astuta fábrica, oficina de surpresas; cito Do mundo (2014, p. 508):

    Por súbita verdade a oficina se ilude: que,

    de inspiração,

    o marceneiro transtorne o artesanato do mundo.

    Aparelha, aparelha as tábuas cândidas.

    A sua vida é cada vez mais lenta.

    Como entra o ar na gramática!

    Que Deus apareça.

    Se a verdade ilude, não apenas dá esperança, mas dá, a partir do étimo, ludo, ludicidade. O trabalho de transtorno e transformação do artesanato do mundo é um jogo, o que sugere ser o transtornador uma criança, ser que, nas palavras de Maria Lúcia Dal Farra (1986, p. 129), indica a enunciação do ‘conhecimento informulado’ : a oficina, lugar onde se faz o poema, é iludida, infantilizada, e o poema, logo, será cândido, como cândidas são as tábuas. Já que cândido pode também ser formoso, as tábuas dão ao poema uma forma, claro que pertencente à ordem da beleza – ou de uma beleza que seja a ciência cruel, imponderável, sempre fértil, da magia, como se lê em Cinemas (1998, p. 7) –, que extrapola a formulação do conhecimento. A prática poética será a realização lúdica de um absoluto: por isso, Deus, uma das maneiras de se dizer do absoluto – a ideia do absoluto em relação ao espaço é a mesma que a da imensidade de Deus, afirmou Leibniz (2000, p. 140) –, é chamado por uma espécie de fórmula mágica, um tipo de abre-te sésamo: Que Deus apareça, já que essa gramática é cheia de pneuma, ar, inspiração, e Deus pode ser criado, justo como ocorrerá pela força da/ esferográfica dolorosa, que insertará no papel a palavra Deus saída pronta (2014, p. 595) num poema de 2001 que faz parte de A faca não corta o fogo.

    Num fragmento de Mão: a mão, de A cabeça entre as mãos (2014, p. 378), leio algo afim:

                           Da carnagem das gramáticas

    arranco a música

    o nome

    o número,

                      Trabalho à raiz do ouro

    As gramáticas, maneiras de organização das linguagens, têm de si arrancadas, ordenhadas, o que podem fornecer de mais poético: a música, ou seja, uma linguagem artística que melodiza o poema; o nome, a carne substantiva dos vocábulos; e o número, precisão formal do texto trabalhado. O poema opera alquimicamente à raiz do ouro, ao fundamento do que pode haver de mais brilhante, e Herberto Helder (1998, p. 7) poderá escrever que Deus é uma gramática profunda: há fundo na gramática de Deus porque ela pode ser soprada, mudada, e que Deus, também soprado, apareça. Mudado o artesanato da gramática, ela se torna mais uma das nervuras respirantes, sintagma de Os brancos arquipélagos (2014, p. 266). A magia herbertiana que possibilita a aparição de Deus é aparelhada pela transformação da poesia, real absoluto, em poema, "realidade desse absoluto. Por isso, Silvina Lopes (2003a, p. 19) pode afirmar que, entendendo o divino enquanto potência absoluta, só poderemos entendê-lo enquanto abertura. E esta abertura se dá, é claro, no poema, lugar em que o entendimento do divino enquanto potência absoluta torna-se, não apenas possível, mas realidade desse absoluto".

    A criança é alguém que poderá acessar a magia, como fica evidenciado pelo primeiro poema da Canção em quatro sonetos, de Cinco canções lacunares (2014, p. 248):

    Uma criança de sorriso cru

    vive em mim sem dar um passo (...)

    (...)

    (...) Ela não sofre e apenas sente

    a máquina que é, com cabeleira e dedos cheios

    de energia rápida: a magia, os segredos.

    Num sujeito desequilibrado por uma intrínseca alteridade, vive a criança de sorriso cru, pronta a ser cruel e fazer violenta a poesia. Pronta a criança também a brincar de mágica com seus dedos cheios: é com eles que se constrói a lírica, e eles, porque imparáveis, são maquinais como a criança e dotados de energia rápida, da magia, dos segredos. A poesia de Herberto Helder não apenas procura o descido coração das coisas (2014, p. 119), mas também, atenta que está a uma unidade perdida, como afirma Maria Etelvina Santos, [1] labora no que eu gosto de chamar, num quase pequeno refrão, de máxima abrangência, que encontra interlocução frutífera no pensamento dos pré-socráticos; segundo Marilena Chauí (2002, p. 60),

    Anaximandro concebe a ordem do tempo como uma lei necessária – por isso fala em injustiça e reparação justa – segundo a qual os elementos se separam do princípio, formam a multiplicidade das coisas como opostas ou como contrários em luta e depois retornam ao princípio, dissolvendo-se nele para pagar o preço da individuação injusta porque belicosa.

    O princípio é uma espécie de fonte, algo quantitativamente sem limites e qualitativamente indeterminado (CHAUÍ, 2002, p. 60) ao qual, segundo Anaximandro, retornam todas as coisas. Retorno afim, na poética herbertiana, fica aventado na estrofe de encerramento da parte III de O poema, de A colher na boca (2014, p. 33):

    – Cada boca pousada sobre a terra

    pousaria

    sobre a voz universal de outra boca.

    O órgão do corpo que figura no título do livro é, no fragmento, metonímia de um encontro bastante abarcador, já que a voz a sair de cada boca terrena é universal. A reparação justa citada pelo pensador de Mileto conversa com um aspecto da poesia de Herberto Helder; um dos poucos fragmentos restantes de Anaximandro (In: BORNHEIM, 2001, p. 25) diz: Todas as coisas se dissipam onde tiveram a sua gênese, conforme a necessidade; pois pagam umas às outras castigo e expiação pela injustiça, conforme a determinação do tempo. Notar em Herberto certa violência justiçadora – Anaximadro fala em castigo e expiação – talvez não seja descabido, dada a criminalidade do fazer poético, cuja justiça a se construir se liga ao que posso chamar de uma ética do encontro. A volta das coisas a seu princípio é inexorável para Anaximandro; para Herberto Helder, qualquer prática universal de encontro só se pode fazer com o exercício, justamente criminal, da poesia (1995, p. 8):

                                          – Esta

    espécie de crime que é escrever uma frase que seja

    uma pessoa magnificada

    Chauí diz (2002, p. 19), acerca do pensamento de Anaximandro, de uma culpa a ser expiada pelo retorno de todas as coisas ou formas individuais à unidade primordial indiferenciada. Na lírica de Herberto Helder, não vejo algo que se assemelhe a culpa, vejo a espécie de crime que é escrever, uma expiação talvez às avessas. Mas, se todas as coisas relacionam-se com todas as coisas, existe uma memória (criativa, criada) de princípio como o anaximândrico, e tudo se relaciona com tudo, e tudo pode ser base para a criação poética, ainda que não se possa localizar, em Herberto Helder, devoção a uma origem que se confunda com a autoridade de um Deus silente:

    Todas as coisas são mesa para os pensamentos

    onde faço minha vida de paz

    num peso íntimo de alegria como um existir de mão

    fechada puramente sobre o ombro. [2]

    A parte III do Tríptico de A colher na boca (2014, p. 17) revela que, se todas as coisas são mesa para o pensamento que se desdobra em fazer poético, elas se encontram como potenciais fontes de criação. A vida de paz é intimamente pesada, pois a poesia que está violentamente contra todos é plena de altíssima densidade, e a mão que alegremente se põe sobre o ombro está fechada, como que recém-nascida. Não posso deixar de observar que Herberto Helder reconhece, na poesia, uma potência de fragilidade, o que se agudiza nos últimos livros, especialmente de Servidões em diante. Diz o poeta (2003a, p. 13), no prefácio a Uma faca nos dentes, de António José Forte: sabe-se às vezes que a poesia é tão inviável que ninguém a empunha como uma arma, não subverte o quotidiano nem a história. Quando e em que estilo se mantém ela como bagagem da guerra vista (...)?. Diz mais Herberto, no mesmo raciocínio: E já ouvi que a palavra não traduz a acção. Se a não traduz, como pode superlativamente ser a acção?. O tópico é sensível, claro: a palavra não age nesta poesia de tremor secreto na palavra?

    É claro que age, nem que seja pelo que Sousa Dias (2016, p. 82) chamou de impotência potente, pois o homem, desprovido de natureza, é aquele que pode ser a sua própria impotência. Mesmo uma reflexão como a herbertiana recém-citada aposta num tipo de acção, ou melhor, é um tipo de ação, cônscia, todavia, de ser uma ação que não pode ambicionar ter objetivos que sejam os mesmos, por exemplo, de uma revolução armada. Afirmarei, ainda neste capítulo, certo Romantismo na poesia de Herberto Helder, e acabo de trazer um dado que diz um pouco deste espírito romântico, não no sentido da mudança diretiva do mundo – ambição de certos românticos –, mas no da consciência de que esta mesma mudança tem facetas inconspícuas, e a arte não pode ser empunhada como a maioria das armas de foto – resignação de outros românticos. Penso num sintagma radicalizador do que acabo de citar do prefácio a Forte, e seu autor, Manuel de Freitas (2007, p. 113), é um apaixonado leitor da poesia de Herberto Helder: A guerra já está ganha,/ a morte é garantida e um poema, infelizmente, não é uma arma química. Escrevendo sobre Freitas, afirmei (2014, p. 35): A luta que se vê na estrofe final de ‘Escudos humanos’ procura por armas eficazes, e (...) a mais acessível ao poeta é mesmo o poema; (...) se posto nessa comparação, pode ser entendido como uma arma, de força, é certo, ínfima, o que levanta questão de caráter político: que fazem poemas num mundo de gente surda e endurecida? A fase final da poesia herbertiana trará essa questão política para a intimidade: que sente um poeta a poucos passos da morte, tendo dedicado sua vida à poesia, se versos não intervêm diretamente no real, tampouco salvam ninguém do fim?

    Fato é que certos gestos criminosos mais imediatos não são os preferidos por Herberto; diz ele, textualmente (2005, p. 115): Faz duas semanas fugiram da penitenciária seis condenados a penas graves. Roubo à mão armada, assassínio. Não amo estes criminosos. Que são eles? Nada. A mediania que não vale, para resgate, um esforço canibal de lirismo. De acordo com a violência que se vê na poesia de Herberto Helder, pois, uma arma química talvez participe também da mediania (ainda que o lamento de Freitas seja pela ausência de um impossível poema-arma-química) e não valha um esforço de lirismo – a propósito, os combatentes dos criminosos que não são Nada tampouco merecem qualquer louvor (2005, p. 115): E os irmãos deles, na ordem assassina, os carcereiros e polícias, os sinistros proprietários da lei e do mando, ponho-os na conta do desamor, minha, meu. O esforço de resgate lírico herbertiano, por exemplo, quererá algo de outra ordem no universo do crime; cito a parte 2 de Exemplos (2014, p. 308):

    É como que se faz aos textos: toda a destruição.

    Pensamos que nos interessa varrer tudo muito bem:

    não é nada com a atmosfera, não é nada que não seja

    com destruir por conta

    da paisagem escrita que começa sempre à volta de um orifício.

    Crime, destruição: a força simbólica que advém de vocábulos como textos e paisagem escrita deixa indicado que à violência da poesia herbertiana interessa varrer tudo muito bem. Esta limpeza lírica vai além da destruição e advoga para si um labor físico, operário. Nada de arma química, mas um idioma capaz de sentidos em multiplicação, um idioma mortífero enquanto criativo – e é o próprio Manuel de Freitas (2005, p. 115) quem dirá, ao comentar o crime herbertiano: são inesgotáveis as faces do crime: escrita, conhecimento/ amor, incesto, memória executora... –:

    (...) Uma arte inextrincável que,

    pela doçura, enche as bolsas cruas

    da carne, embriaga, queima tudo, mata,

    mata.

    O fragmento de Última ciência (2014, p. 426) fala não só de morte, mas de uma arte que mata, violentamente, através de um extremo incêndio. É inextrincável a arte, embaraçada, capaz de emaranhar um gesto de altíssima violência à doçura, ou melhor, praticar pela doçura seus violentos incêndios. O crime bruto e carnal nada tem que ver com o dos seis condenados a penas graves fugidos da cadeia, pois embriagadora é a própria acção da palavra desta arte que mata,/ mata enquanto cria uma realidade de acentuado poder de expansão de sentidos. É em vereda semelhante que se encontra um dos traços do idioma herbertiano que o torna bastante surpreendente, a reunião de coisas aparentemente díspares e inconciliáveis:

    Mulheres geniais pelo excesso da seda (...)

    (...)

    (...) Se mungem o gado, esplendem

    de pêlo e segredo, abaladas pelo bafo

    do fundo: uma vaca é um jarro sumptuoso

    com o rosto delas (...)

    As Mulheres geniais de Última ciência (2014, p. 421) permitem a inaudita aproximação entre vaca e jarro, possível porque as Mulheres mungem, extraem das tetas do gado seu leite, seu rico alimento – seu, do gado; seu, de mulheres. Dada a proximidade, no plano do significante, entre os verbos mungir e mugir, entrevejo semelhança não apenas entre vaca e jarro na metáfora mais desconcertante do poema (uma vaca é um jarro sumptuoso), mas também entre vaca e Mulheres, pois elas mungem aquelas que mugem. Além disso, uma vaca é um jarro sumptuoso/ com o rosto delas, ou seja, face a face com as mulheres que, personagens do poema, o criam. Elas serão também jarro, e um radical encontro, sem apagamento das particularidades, se celebrará, porque se unirão Mulheres, vaca e jarro. O que acabo de notar é uma das marcas da poética de Herberto Helder: a produção de constantes e insuspeitas convergências, sem que os elementos convergidos percam o que os faz singulares.

    João Amadeu C. da Silva (2000, p. 121) afirma que a linguagem metafórica, em Herberto, representa uma tentativa de criação de uma nova ordem, sugere uma postura diferente perante a realidade e uma transgressão constante. Trangressão: Esta/ esta espécie de crime que é escrever encerra perversão própria, cujo instrumento, arma, é uma linguagem de multiplicação de potências no poema e no mundo que o poema altera – fundação, no poema, de um mundo; vontade de alteração do mundo em que o poema irrompe. Fica proposta uma nova ordem, através do transgressor encontro de coisas tão distintas como Mulheres, vaca e jarro: Toda a metáfora em Herberto Helder introduz uma zona de sombra e de ilogicidade na linguagem. Este discurso infinito e exasperado cortou todos os vínculos dialéticos com a representação (a mimesis) e produz um excesso cognitivo, como bem observou António Guerreiro (Apud: SILVA, 2000, p. 65).

    Esse discurso do excesso e de uma acentuada potência autoconferida transparece na lúdica arte poética que é o Texto 1 das Antropofagias (2014, p. 273-274):

    Todo o discurso é apenas o símbolo de uma inflexão

    da voz

    a insinuação de um gesto uma temperatura

    à sua extraordinária desordem preside um pensamento

    melhor diria um esforço não coordenador (de modo algum)

    mas de moldagem perguntavam estão a criar moldes?

    não senhores para isso teria de preexistir um modelo

    uma ideia organizada um cânone

    queremos sugerir coisas como imagem de respiração

    imagem de digestão

    imagem de dilatação

    imagem de movimentação

    (...)

    agora estamos a ver as palavras como possibilidades

    de respiração digestão dilatação movimentação

    (...)

    O nós lírico do poema qualifica o discurso poético, infinito e exasperado, como o símbolo de uma inflexão/ de voz. A voz, curvada, a serviço do símbolo, entoa uma extraordinária desordem presidida por um pensamento. Este pensamento, geografia que permite transitarmos na aparente ilogicidade desta poesia, não quer servir a um modelo, um cânone, pois a inflexão/ de voz produz um excesso cognitivo, uma imagem de respiração digestão dilatação movimentação: um profundo vitalismo faz a imagem possuir características de corpos vivos e do próprio universo, por sua vez também um corpo vivo. As palavras, para susto de um leitor menos afeito a situações cheias de novidade – expressão também de Antropofagias, mas do Texto 3 (2014, p. 278) –, estão andando por si próprias, autonomizadas e potentes, criando fome para

    Que se coma o idioma bárbaro, palpitação da lêveda

    substância dos vocábulos:

    no prato. Eu devoro. Às vezes electrocutado, uma ígnea linha escrita

    para dizer o abastecimento de estrelas

    em cal escaldando, da poesia.

    Os versos de Os selos (2014, p. 459) investem na criação de um idioma não apenas violento, mas bárbaro, em tensão com a cultura dominante e defendido de sua nada perversa civilidade semântica. O idioma terá que ser comido, devorado (Eu devoro), para que se chegue à palpitação da lêveda/ substância dos vocábulos. Posso supor, já que todas as coisas são mesa para os pensamentos que produzirão, devidamente escaldados pela barbaridade do idioma, o poema, que o prato está, entre outros lugares, sobre a mesa do Tríptico, lugar de alto favorecimento de corrente elétrica.

    Posso pensar também, a partir da devoração empreendida pelo poema, numa peculiaridade da poesia de Herberto Helder: seus textos possuem uma mútua referencialidade espantosa, ou uma "propensão autobibliográfica, nas palavras de Maria Lúcia Dal Farra (1986, p. 107), o que permite a suposição de Gastão Cruz (2008, p. 249) de que poucos poetas nos darão como Herberto Helder a impressão de que toda a sua obra é um só poema. O próprio Herberto (2001a, p. 192), sobre este tópico, comenta: Quando olho para esse livro (...), vejo que escrevi apenas um poema, um poema em poemas". O livro a que o poeta então se referiu é a Poesia toda. O nome da nova Poesia toda passou a ser Ou o poema contínuo, e fica ainda mais evidente que esse livro é apenas um poema, um poema em poemas: o poema segue, contínuo e, porque o, um[3] a primeira aparição de Ou o poema contínuo foi num livro de 2001, que contém uma súmula da obra herbertiana e um poema inédito que depois passou a compor A faca não corta o fogo. Dentro de Ou o poema contínuo, diversos poemas, dentre os quais os doze Textos de Antropofagias. Se os poemas se completam, ou se iluminam uns aos outros, eles também se devoram, se alimentam uns dos outros na construção do poema contínuo, e esta fagia me permite ver a Poesia toda como um prato a ser comido, sendo ela uma privilegiada contentora do idioma bárbaro, por ela própria, mesmo porque ela passa a ser chamada de Ou o poema contínuo, título de admirável vocação construtiva. Por outro lado, Herberto diz (2001a, p. 190), no mesmo texto de 2001:

    Sou um autor de folhetos. Um dia alguém perguntou-me: porque não reúne tudo? De facto, porque não? E apareceram livros, esse livro, Poesia Toda. O que me surpreendeu não foi o volume, enfim, não tão grande como isso, contudo para mim próprio de uma espessura inesperada, não foi o volume mas a sua forma, a coesão interna, isso, claro, surpreendeu-me bastante.

    Mas elas estão andando por si próprias? A continuidade do poema contínuo dá-se espontaneamente, independentemente da vontade daquele que põe seu nome na capa do livro? Sedutora leitura, ainda mais quando se tem claro que é o poema, e não o poeta, o que interessa. No fim das contas, mesmo o poeta, surpreendido pela coesão interna do volume, pode ser modificado pelo poema, ou, nas palavras de Gustavo Rubim (2008, p. 19), aspirado para o espaço do ‘poema contínuo’ que fez sem saber e descobriu, surpreendido, que tinha feito. Em 2009, o poema contínuo recebe o nome de Ofício cantante, recuperando o título escolhido para a primeira publicação, em 1967, de poemas reunidos do autor (2009, p. 5), com o subtítulo poesia completa, acentuando a vocação órfica da poesia de Herberto Helder ao longo do tempo. Em 2014, enfim, um título aparentemente protocolar, Poemas completos (que reúne toda a produção que Herberto subscreveu até o fim da vida), que ganha, no entanto, tintas irônicas ao ser posto em perspectiva ao sintagma mestre que é Poesia toda. [4]

    É, pois, bárbaro o idioma do poema contínuo, idioma que respeita os instrumentos da criminalidade, idioma praticante de uma espécie de crime, o de uma transgressora fundação, ou conflituosa intervenção, poética. O baptismo atónito reage ao esvaziamento dos significados consagrados por um uso abusivo, mera e superficialmente voltado à comunicação. O enunciador de Os selos (2014, p. 441), por exemplo, estupefaz-se diante de Deus, lexema cujo significado se vilipendia a cada segundo na história da humanidade: Será que Deus não consegue compreender a linguagem dos artesãos?. No poema, artesanato diz de uma construção cujos materiais receberiam, não fosse a criação artesanal, outro fim que não uma obra criativa, e a poesia, obviamente, lança mão do material que é a língua para afastá-lo de usos que não sejam criação.

    Em alguns textos de Herberto Helder vê-se uma veemente destruição do que o uso comum consagrou. No prefácio aos Poemas de Edmundo de Bettencourt, o autor de A colher na boca expõe o que considera ser revolucionário na poesia, ao mesmo tempo em que revela, de maneira bastante clara, traços de seu próprio projeto poético (1965, p. XVI): Revolucionar equivale a imaginar, a ser individual. Revolucionar é destruir a instituição. O artista deve, por conseguinte, opor-se, em sentido dinâmico, à encomenda social. O projeto poético de Herberto Helder se manteve coerente durante décadas de produção; o prefácio supracitado data de 1963 e, em 2001, num texto publicado na revista A Phala, o tom mantém-se, e também a ideia de solidão revolucionária (2001b, p. 10):

    Cada vez são menos – e sempre foram menos – os que vão para as montanhas conspirar contra a polícia. Até que não é mau, isto de serem menos. A intensidade concentra-se. E o risco é maior, e embriaga.

    (...)

    (...) entrei na guerra, só ou pouquíssimo acompanhado, tanto dá, porque mesmo acompanhado deve-se ir às montanhas sem companhia nenhuma, para ouvir mais as vozes, para iludir melhor as polícias, para lembrar menos às autarquias.

    Da revolução solitária de 1963 à guerra também solitária, sem companhia nenhuma, de 2001, mantém-se contra as polícias, contra o mundo, o poeta. Herberto Helder mantém-se de braços dados a Ernesto Sampaio (In: HELDER, 1985, p. 267): A literatura, ainda, exige solidão. Além disso, Revolucionar é destruir a instituição: em diversos momentos, a poesia de Herberto Helder busca sua barbaridade ao manobrar com ironia a semântica convencional. Um dos textos mais provocativos de Photomaton & Vox é "(o humor em quotidiano negro)", em que se encontra um trabalho de perversão de significados. O que se mostra contaminado pelo senso comum, aqui representado pela forma do relato pretensamente neutro das notícias de jornal, ganha novos sentidos (1995, p. 90, 91):

    Numa fábrica de papel registrou-se um invulgar desastre no trabalho: um operário caiu num misturador e ficou literalmente transformado em pasta para papel. Só se deu pelo acidente quando os filtros da pasta se entupiram. Nessa altura apenas restavam no misturador uma das mãos da vítima, uma rótula, madeixas de cabelo e tiras de pele. O corpo achava-se integrado nas folhas de papel que entretanto continuavam a sair das prensas. [5]

    Em Herberto Helder, a violência é um fabrico da poesia, prática invulgar, termo cuja presença no texto particulariza o acontecimento, que se vê livre da esmagadora rotina do trabalho. A propósito exatamente de trabalho, prática socialmente elogiável que mecaniza o homem e o aliena de si mesmo, afirma Herbert Marcuse (1972, p. 86), numa obra que segue estrahamente atual:

    O trabalho básico, na civilização, é não-libidinal, é labuta e esforço; a labuta é desagradável e por isso tem de ser imposta (...). Se não existe um instinto de trabalho original, então a energia requerida para o trabalho (desagradável) deve ser retirada dos instintos primários – dos instintos sexuais e dos destrutivos.

    O trabalho que deserotiza o homem só pode ser desagradável. Já o desastre na fábrica de papel é invulgar exatamente porque, como num trabalho erótico, transforma o homem no material onde a poesia tem lugar, o papel, num perverso e metamórfico encontro herbertiano. Algo similar se vê num poema de A faca não corta o fogo (2014, p. 608) cuja tabuleta diz: "um dos módulos da peça caiu e esmagou-o contra um suporte de aço do atelier e cujo último verso é morreu esmagado pela sua obra, numa fusão extrema entre criador e criação, artista e arte. Outra ocorrência violenta e fundente na poética de Herberto Helder é o vertido poema de Stephen Crane, O Coração", presente em As magias (1996, p. 486):

    No deserto,

    vi uma criatura nua, brutal,

    que de cócoras na terra

    tinha o seu próprio coração

    nas mãos, e comia...

    Disse-lhe: É bom, amigo?

    "É amargo – respondeu –,

    amargo, mas gosto

    porque é amargo

    e porque é o meu coração." [6]

    A criatura do poema come seu próprio coração e alimenta-se de uma víscera, em um gesto (com o perdão da redundância) visceral de brutalidade – a criatura é nua e brutal, e bruto é afim ao bárbaro que caracteriza o idioma herbertiano, é o que não recebeu domesticante tratamento, enquanto nu é o que acena, na condição de corpo, com peculiares hipóteses de discussão da cultura. [7] Esse tipo de ato brutal, para o mudador do poema de Crane, é bom porque é amargo, selvagem, primitivo, pré-cultural. Também de maneira jubilosa reage o narrador de Teorema, ao ver o rei D. Pedro devorar-lhe o coração (1997, p. 120):

    – Só o coração – diz. E levanta-o de novo, e depois trinca-o ferozmente. A multidão delira, aclama-o, chama-me assassino, cão, encomenda-me a alma ao Diabo. Eu gostaria de poder agradecer a esta gente bárbara e pura as suas boas palavras violentas.

    Um filete de sangue escorre pelo queixo de D. Pedro, os maxilares movem-se devagar. O rei come o meu coração.

    Não é inequivocamente irônica a reação do narrador que tem seu coração comido pelo rei, apesar da crítica à violência de um sistema ditatorial – Teorema é texto de inegável fundo político, antissalazarista. O rei é, antes de tudo, um amante, e o narrador é um dos que assassinou Inês para preservar, eternidade afora, o amor de D. Pedro. Ao ter seu coração comido, o sentenciado passa a fazer parte do próprio corpo do amador e comparte a eternidade com este ser amante. Na semântica herbertiana, não surpreende que o substantivo palavras seja determinado, a um só tempo, por adjetivos como boas e violentas. Em virtude de a violência e o desastre serem tão recorrentes na obra de Herberto Helder, Maria Estela Guedes (1979, p. 226) afirma:

    Herberto Helder tem a paixão do crime (...). O crime puro e simples funciona magneticamente, em termos de objeto altamente fascinador. De fato, o crime é um ato que, para além de violentar de imediato qualquer código social ou moral, traz a fascinação das obscuras motivações desencadeadoras do gesto excessivo, gratuito e irreprimível.

    Se o crime é magnético e fascinador, pode ser lido também como uma prática, não tão distante de um exercício de magia (penso na transformação que tanto o crime como a mágica pode efetuar), de poetização do homem, criatura a se desnudar e brutalizar e da qual se devem extrair os gestos de caráter mais excessivo, irreprimível. O título das subvertidas notícias de jornal, "(o humor em quotidiano negro), cria, ao juntar humor a negro", uma hipótese insólita de humor negro, explodindo limites convencionados por diversas morais e abrindo um campo semântico no qual se divisam sombras, obscuridade, atração etc. Não é casual que Maria Estela Guedes batize seu estudo de Herberto Helder – poeta obscuro, título retirado de um conto de Os passos em volta, pois a ideia de obscuridade é uma tônica nesta poesia.

    1.2 NÓS NA POESIA CONTRA TODOS: CAMÕES, OUTROS AMANTES, TRADUÇÕES

    Segundo Manuel Gusmão (2010, p. 43), a própria ‘acção contra’ diz já a pressuposição do encontro, do contacto, da relação, pensando, inclusive, no René Char segundo o qual o poema pode ser ‘action contre le réel’ , o que não se distancia da versão herbertiana da assertiva de Lautréamont. Faz, portanto, sentido perceber que ir contra também é encontrar, e, no universo que ora me interessa mais de perto, vai-se contra indo-se com. O nós visto no poema de Thomas Wolf, em "(a poesia é feita contra todos) e no Texto 1" das Antropofagias representa uma espécie de irmandade poética constantemente reinvindicada pela obra de Herberto Helder, e não apenas na prática abrangente de traduzir (ou mudar) poemas para o português. No ensaio sem título de 2005, Herberto elenca, logo após falar dos que possuem um verbo primitivo (xamãs, sacerdotes, profetas), alguns poetas que o proferem (2005, p. 114): Dante, Villon, Camões, Shakespeare, Blake, Nietzsche, Rimbaud, Sá-Carneiro. Todos, em algum momento, aparecerão neste trabalho, por uma exigência mesma da poesia herbertiana, não por terem sido citados por Herberto em seu texto. Mas, como esta lista não encerra nada, outros poetas, diversos, serão postos em diálogo, em Do mundo de Herberto Helder, com a poesia aqui estudada, pois, como bem afirma Pedro Eiras (2005, p. 383), é útil integrar Herberto Helder num contexto literário. Clara Riso (2002, p. 9) vê em Herberto Helder o movimento de singularização de uma escrita própria que consiste num trabalho de reescrita e selecção. Quem também situa Herberto Helder num contexto literário é António Ramos Rosa (1962, p. 149), em ensaio publicado em 1961 e posto em livro em 1962, portanto no calor da hora da estreia herbertiana:

    Herberto Helder é um poeta visionário e um poeta órfico da estirpe de um Hölderlin ou de um Rilke. Não falemos em influências, mas não tenhamos receio de apontar as vozes que nos evoca Herberto Helder, que são as de alguns grandes poetas de nosso tempo: um Jouve, um Aleixandre, um Neruda, às vezes um Dylan Thomas, além da de Rilke. (...) não (...) pretendo sufocar a originalidade de um poeta autêntico sob a importância e diversidade de tais nomes. Penso, como aliás, alguns outros ou muitos, que a originalidade não exclui a assimilação, que ela pode ser até o resultado de uma imitação profunda e pessoal.

    Herberto é um poeta de francos diálogos, de afinidades eletivas e deflagradas. Herberto Helder ser um poeta que nos evoca vozes advém de ele entender, como deixou expresso (2003, p. 11) no prefácio a António José Forte, que (...) toda a poesia, a verdadeira, possui apenas uma tradição. Isso me faz lembrar de um ensaio de Jorge Luis Borges, El escritor argentino y la tradición (1996, p. 273): repito que no debemos temer y que debemos pensar que nuestro patrimonio es el universo. O assunto borgiano é a literatura nacional, enquanto o texto herbertiano passa ao largo disto. No entanto, Herberto diz algo semelhante ao que diz Borges, pois, se o patrimônio da poesia é o universo, Todas as coisas são mesa para os pensamentos e para a feitura da tradição de um poeta, a que se inventa para exercícios de plena liberdade, sem estritos limites nacionais, políticos, escolásticos ou de qualquer outra ordem.

    Nuno Júdice (2015, p. 33) entrevê um encontro promissor: Joyce, ao passo que Herberto procura o instante primordial da palavra, do verbo, no espaço da totalidade do poema, irá procurar esse momento fundador da ficção na génese do acto narrativo em Homero. Diz mais o ensaísta: "Herberto verifica que o poema se identifica nessa concentração de sentidos e símbolos, e de uma escrita que nasce com essa energia vulcânica que faz explodir a frase em todas as direcções, com o oximoro joyceano do Ulisses". Joyce acaba sendo interlocutor privilegiado em virtude da própria concepção de poesia de Herberto Helder, não por algum específico intertexto, ainda que a ideia de poesia, para Herberto, se afirme também em várias experiências intertextuais. Uma delas, camoniana, está em A colher na boca e abre a parte I do Tríptico (2014, p. 13):

    Transforma-se o amador na coisa amada com seu

    feroz sorriso, os dentes,

    as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído

    e silêncio. Traz o barulho das ondas frias

    (...)

    Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.

    E a coisa amada é uma baía estanque. [8]

    Afirma Maria Lúcia Dal Farra (1978, p. 85) acerca do poema herbertiano em questão: quando o leitor toma o seu texto, ele não vem desprovido: traz ‘ruídos’ e ‘silêncio’ . A relação vivida entre o amador e a coisa amada é, simbolicamente, a relação entre o poema apropriador (amador) e o apropriado (coisa amada). Ambos (amador e amada, os dois poemas) amorizam de cima, ou seja, de um privilegiado lugar superior, já que amoroso e poético, o mundo, nos versos que encerram o poema (2014, p. 14):

    Então o mundo transforma-se neste ruído áspero

    do amor. Enquanto em cima

    o silêncio do amador e da amada alimentam

    o imprevisto silêncio do mundo

                                                        e do amor.

    É erótico o poema de Herberto, é erótico o poema de Camões. A relação é múltipla, pois forma diz, em ambos, de corpo: (...) a matéria simples busca a forma (CAMÕES, 2005, p. 126) porque o desejo se adequa ao pensamento e à ideia se ajunta o corpo. Mas, no poema herbertiano, extremante do sutil erotismo do outro, as formas serão também as do poema de Camões, e o amador, por isso, corre pelas formas dentro, pela baía estanque e penetrável que é o soneto, parado no papel e dinâmico em seus sentidos. Camões é um dos poetas mais convocados para a irmandade herbertiana, facultadora do surgimento de um eu transformável em nós, e posso dizer que Herberto é dos mais potentes leitores que Camões encontrou. Exercendo-nos dentro de poemas (HELDER, 1995, p. 161), além de tudo, indica um estado movente, um gerúndio que entra (está entrando) em poéticas alheias. Há mais Camões nos versos iniciais da parte I de Teoria sentada, de Lugar (2014, p. 167):

    Um lento prazer esgota a minha voz. Quem

    canta empobrece nas frementes cidades

    revividas. Empobrece com a alegria

    por onde se conduz, e então é doce

    e mortal.

    O cansaço camoniano n’Os Lusíadas (X, 145, 1-2), anúncio do encerramento do poema que, enfim, ainda apresentará agônicas estrofes – "No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho/ Destemperada e a voz enrouquecida –, é afim ao cansaço herbertiano na Teoria sentada. É o empobrecimento de quem canta o que permite à voz" adoçar-se e mortalizar-se, isto é, tornar-se palatável, numa perspectiva de prazer lingual e linguístico, e humana, porque morrerá. Em Poemas canhotos, livro póstumo de Herberto Helder, é encenado novo diálogo com o Camões de Transforma-se o amador na coisa amada, tendo a pobreza como diapasão:

    coisa amada nas montanhas

    amador ao rés das águas

    por mais que subam as águas

    e arrebatem as montanhas

    e as engulam inteiras

    haverá coroas de pedra

    sustentadas pela espuma

    a coisa amada é coroa

    pesando em minha cabeça

    (...)

    coisa amada nas montanhas

    amador ao rés das águas

    a redondilha maior

    é menor que a sua história

    mas maior que tudo isso

    é a dor que o amor transporta

    mais naquilo que não diz

    que tudo aquilo que mostra (2015, p. 8,9)

    Outros versos, como o penúltimo, composto apenas pela palavra boca e de dois pontos (:), abandonam a redondilha. Segundo Rosa Martelo (2016, p. 49),

    A chamada medida velha sintoniza aqui uma voz que diz escrever ao rés das águas, ou seja, num tom mais baixo do que era habitual, enquanto a poesia, lembrada como amada, pertenceria a uma altura a que os poemas canhotos já não poderiam ascender.

    Já Diana Pimentel comentou que a casa vazia de Photomaton & Vox diz da escassez e do vácuo, e escassez é o que indica o tom mais baixo (2007, p. 48) dos Poemas canhotos. A coisa amada (expressão camoniana que interessa ao primeiro HH póstumo como interessou ao primeiro em vida), poesia, vista por um amador que não mais a alcança, é um canto desesperado posto em cena desde uma espécie de exílio, afastamento semelhante ao vivido na Canção IV de Camões (2005, p. 210): Ó quem cuidar pudera/ que houvesse aí no mundo apartar-m’eu de vós, minha Senhora! Desespero, em Camões, é mesmo perda da esperança, como se lê na Canção VIII (2005, p. 218): Tomei a triste pena/ já de desesperado/ de vos lembrar as muitas que padeço.

    A pena desesperada e morredoura de que saem os Poemas canhotos, vindos à luz após a morte física de seu autor, é a da perda da esperança, já que o afastamento entre amador e coisa amada é também afastamento da voz em relação à poesia, além de assunção de uma pobreza que se consegue cantar, em mais um dos serviços feitos pelo poeta das Servidões – e não perco de vista que é em serviço que Camões escreve alguns de seus mais autobiografantes versos, num elenco adjetivo que muito ensinou ao adjetivante Herberto Helder (2005, p. 220):

    Junto de um seco, fero e estéril monte,

    inútil e despido, calvo, informe,

    da natureza em tudo aborrecido

    onde nem ave voa, ou fera dorme,

    nem verde ramo faz doce ruído;

    cujo nome, do vulgo introduzido,

    é felix, por antífrase, infelice;

    Na Canção X, à escassez do sujeito concerta-se a escassez do lugar, gerando o máximo desconcerto que é, na condição de desterro, num lugar (o Cabo Guardafui, geograficamente localizado no poema, um entre Oriente e Ocidente de dialética dificílima naqueles tempos, nestes tempos), simplesmente não haver lugar, mais ou menos como nos lugares não relacionais do poema herbertiano. Uma vívida e doce mortalidade, privilégio que apenas gente como os fazedores de poemas pode inventar, aparece em Bicicleta, de Cinco canções lacunares (2014, p. 244):

    Na memória mais antiga a direcção da morte

    é a mesma do amor. E o poeta,

    afinal mais mortal do que os outros animais,

    dá à pata nos pedais para um verão interior.

    Morre o que ama, sendo o amor a energia de muitas faces que rege o universo herbertiano, de acordo com Maria Lúcia Dal Farra (1986, p. 119). Portanto, ser mortal é ser amador unificável à coisa amada; por outro lado, a memória, sendo a mais antiga, a arcaica, descortina uma

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