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Mãe, Promete-me que Lês
Mãe, Promete-me que Lês
Mãe, Promete-me que Lês
E-book166 páginas2 horas

Mãe, Promete-me que Lês

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Sobre este e-book

Luis Osório abre sem reservas o seu álbum de família. Numa relação convulsa e intimista, folha a folha, conta-nos pormenores de vivências extremas que nos emocionam devastadoramente e nos
confrontam com a terrível complexidade das relações familiares. Ousadas, pungentes, ternas, estas são as recordações de um homem que confessa ter medo, muito medo de voltar a perder alguém, medo de morrer porque gosta muito de viver.
Um relato emotivo de um filho, que decide abrir o baú das suas memórias, de onde surgem personagens que podiam ser de ficção, mas são reais.
Ficam as questões: «Um dia prometes-me que lês? Consegues ler onde estás?» Que mais pode ele desejar? «Continua comigo, mãe.»
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de jul. de 2021
ISBN9789897026591
Mãe, Promete-me que Lês
Autor

Luís Osório

Aos 46 anos, Luís Osório é hoje mais um escritor do que um jornalista. «Mãe, Promete-me que Lês» é o seu sétimo livro e sucede à «Queda de Um Homem», o primeiro romance. Foi director de jonais e de uma estação de rádio. É autor de prgramas de televisão e rádio, encenador, consutor empresarial e comentador político. Ganhou o Sete de Ouro, o Gazeta Revelação, o Prémio Inovação Manuel Pinto Azevedo. Foi nomeado três vezes para os Globos de Ouro pela autoria de Portugalmente e Zapping. Tem três filhos, todos rapazes.

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    Mãe, Promete-me que Lês - Luís Osório

    9789897026591.jpg

    mãe, Promete-me Que Lês

    Título: Mãe, Promete-me que Lês

    Autor: Luís Osório

    © Autor e Guerra e Paz, Editores, S.A., 2018

    Reservados todos os direitos

    A presente edição não segue a grafia do novo acordo ortográfico.

    Revisão: Henrique Tavares e Castro

    Design: Ilídio J.B. Vasco

    Isbn: 978-989-702-659-1

    Guerra e Paz, Editores, Lda

    R. Conde de Redondo, 8–5.º Esq.

    1150­-105 Lisboa

    Tel.: 213 144 488 / Fax: 213 144 489

    E­-mail: guerraepaz@guerraepaz.pt

    www.guerraepaz.pt

    Tens também um sorriso particularmente bonito e que poucas vezes se deixa ver, tranquilo, satisfeito, aprovador, capaz de deixar muitíssimo feliz a pessoa a quem se destina. Não sou capaz de me lembrar se, na minha infância, me teria sido expressamente reservado, mas pode ter acontecido, pois por que razão haverias de mo ter recusado nessa altura em que eu ainda era inocente aos teus olhos e constituía a tua grande esperança?

    franz kafka, Carta ao Pai

    Aos meus filhos,

    razão de quase tudo

    À Ana,

    por quase tudo

    Aos meus leitores,

    com quem caminho

    À minha mãe,

    uma mulher singular

    A todas as mães (e pais)

    Mãe

    Lembro-me que gostavas de bonecas. Na casa de Campo de Ourique, a cama onde dormias estava cheia delas – pareciam de porcelana, extremamente pálidas, gélidas, mortas. Assustavam-me, embora nunca tenha deixado de sentir saudades dos anos em que éramos apenas os dois, não existia a Rita nem conheceras o Carlos, éramos nós, numa casa miserável com baratas que passeavam pelas paredes, e a avó Joaquina, que viveu em função de mim, antes e depois de me teres deixado de pertencer. Bonecas com quem brincavas antes de eu nascer, a dona Fernanda contou-me que as vestias e despias como se ainda fosses criança. Só deixaste de o ser depois de eu nascer, talvez um pouco depois. Congeminavas partidas às vizinhas, corrias pela rua, querias pegar o mundo pelos colarinhos e vingar-te, muito justificadamente, dos anos de sanatório que te forçaram a perder a infância e tudo o resto que te fez a mulher que conheci, detestei e amei. Foi quando a vizinha do primeiro esquerdo me contou que fiquei com a certeza de que tinham ficado pálidas depois de eu nascer, não aguentaram a penosa circunstância de seres talvez obrigada a trocar as brincadeiras com elas pela dedicação a um bebé que não estava previsto. Um bebé que amaste o melhor que pudeste, que abraçaste e fizeste teu, que sossegaste com uma luz de presença que afastou lobos e papões, que satisfizeste com banana esmagada e bolacha Maria, a quem antecipavas a fome e o desconforto com um poderoso instinto maternal; comoveu-me pensar que as tuas mamas pingavam de leite quando me dava a fome, mesmo que estivéssemos longe um do outro e alguém em casa tivesse um biberão pronto. Confesso-te que me desiludi por me terem contado, apenas há umas semanas, que afinal não me amamentaras, o leite era pouco nos três primeiros meses e tu nem estavas cá – viajaras com o meu pai para Paris, onde tentaram a sorte em casas de fados e se divertiram como merecias mais do que qualquer outra pessoa. Estava convencido de que a vossa viagem fora antes do meu nascimento, até gracejava com a feliz circunstância de ter sido feito em Paris, não interessa. Fiquei bem com as avós de um lado e do outro, não podia ter ficado melhor. Sei que te fiz sorrir de uma felicidade que desconhecias, as vizinhas e a avó juraram-mo, mas fui também o que te destruiu a vida que poderias ter tido. A cantora que alguns apostavam ter futuro, a infância e juventude que jamais conseguiste recuperar, o corpo que voltou a deformar-se por culpa de um parto atribulado em que arriscaste ir até ao fim sem ligar a uma gravidez de risco de que não sei pormenores e à opinião generalizada dos médicos que te desaconselharam o meu nascimento.

    Nem os ouviste.

    Eu sei que não os ouviste. Juntaste médicos e enfermeiros da Alfredo da Costa para lhes contar, na manhã do dia 15 de setembro de 1971, que não havia motivo para receios, seria um rapaz e nasceria loiro e com um rabicho de cabelo. Durante a madrugada, pediras à Virgem Maria, senhora que tratavas como princesa por já a conheceres bem de tantas noites de conversa nas vigílias no Sanatório da Parede, quando as dores eram insuportáveis e o teu corpo permanecia aprisionado a uma cama sem bonecas. Foi nisto tudo que pensei naquele princípio de noite. Chegava a casa de um treino e a avó recebeu-me com lágrimas…

    «A tua mãe.»

    Corri para o quarto das bonecas que já não existiam. Havia um cheiro enjoativo, sou capaz de o sentir neste preciso momento, um odor fétido que agoniava. Estavas de cócoras encostada à parede ao lado da porta que dava para o meu quarto, choravas sem lágrimas com os pulsos para cima como alguém que suplica por misericórdia ou entendimento, tinhas sangue a correr nos dois braços.

    «Não aguento mais. Desculpa, meu filho.»

    Disseste-o como súplica de despedida numa voz sumida. A avó já telefonara para a ambulância que te levou sem que eu fosse capaz de deixar de pensar nas saudades que tinha das bonecas, das que penteavas e tratavas antes de eu as substituir, as que conheci já mortas como se fossem de porcelana chinesa, o símbolo do mal que te fiz, do que tiveste de abdicar por causa de mim.

    «Desculpa, meu filho.»

    Repetiste à saída do hospital. E eu sem a possibilidade ou a coragem de te pedir desculpa também, fabricaras um sorriso que nos fez rir, ficarias bem e não havia qualquer motivo para eu ou a minha irmã nos preocuparmos, não tornaria a acontecer. Não voltou a acontecer, mas sabes, mãe, conto-te agora que jamais esqueci aquele cheiro e a tua figura em agachada mortificação. Mais os serenais de que dependeste nos anos de depressão, anos em que te abandonei, anos em que a Rita esteve sempre presente, anos em que tão novinha aviava as remessas na farmácia e na mercearia, cozinhava, limpava e sacrificava-se pelo amor a ti. Não o consegui fazer. E mesmo depois da noite de que me atrevo agora a falar, nem por um segundo me desviei do que já decidira – cada um de nós deveria continuar por sua conta. Uma médica, à saída do hospital, questionou-me sobre os comprimidos que usavas, interessava-lhe a quantidade e se bebias ao mesmo tempo (o que nunca fizeste). Remeti-a para a minha pequena irmã, não devia ter mais de treze anos. Ela sabia tudo. Conhecia o que tomavas e o que te acontecia quando o dinheiro não era suficiente para comprar o que precisavas, o que sofrias na privação, as agudas dores de cabeça, a agitação, a agressividade do que te saía da boca, a tristeza e pessimismo, o formigueiro, a dificuldade de tolerar mais do que a luz de uma mesa de cabeceira, os vómitos, as diarreias, a taquicardia. Não te podia deixar sem comprimidos. E sem tabaco. SG Gigante, que fumavas um atrás do outro, pelo menos dois maços por dia, gostavas de os travar e foste fiel até ao fim àquela marca, recusavas os sem filtro, ficavam bocados de tabaco na boca, agoniava-te. Nunca me pareceu mal que fumasses. Fazia parte. As pessoas que admirei fumavam, os atores dos filmes que me faziam sonhar fumavam, que mal tinha? Lembro-me de um anúncio em que o Pai Natal fumava, os apresentadores de televisão faziam-no nos diretos e não existia qualquer pressão social para que o deixassem de fazer.

    O problema não era o tabaco, os comprimidos, sim. A dependência para adormeceres, para acordares, para te levantares, para saíres de casa, para travares as lágrimas ou para as soltares. Longos anos nisto, mãe. Não acreditei que conseguisses voltar a ser a mãe que passeava pelo bairro de Campo de Ourique comigo na mão, passeios em que me apresentavas às meninas das lojas onde ias, a Lanidor, o Eduardo dos Livros, o Canas, a Tentadora ou a Bonina, que vendia barquinhos de doces de ovos que me oferecias quando sobravam moedas – quase nunca restava dinheiro no meu tempo de criança –, os barquinhos e o arroz à valenciana que fazias com tudo a que tínhamos direito, camarões descascados, ervilhas, frango do bom, lulas, amêijoas, um arroz com especiarias que mandavas a avó comprar no Antunes, eram uma exceção, dias de festa.

    Foi antes da depressão.

    A vida estava posta à tua frente e guardavas ilusões, sei que as guardavas, falavas-me nisso na casa de banho de manhã, bebias um café e fumavas um cigarro e o corpo parecia um relógio, o que me ria com isso, o que nos ríamos com isso, tu dentro e eu à porta, sentado num banquinho na marquise com centenas de formigas que corriam as paredes, recordas-te, mãe? Tenho uma ténue memória do irmão da avó Joaquina, o teu tio António, que dormiu connosco dias antes de ser internado para não mais voltar. A avó preparara-lhe uma caminha num colchão emprestado por uma vizinha numa arrecadação em frente à marquise, e vi uma barata a subir-lhe pelas costas, foi-me difícil apagar essa imagem. Os meus olhos azuis vêm dele, o meu traço aristocrático foi herdado do mais provinciano da família, não há necessidade de mo soprares ao ouvido, até porque acho muita graça à ironia. Atropelo-me, desculpa… temos tempo, não quero apressar-me, pretendo desta vez fazer as coisas bem, escrever-te sobre tudo e ouvir-te neste silêncio que é o nosso, sempre foi. Eu na parte de fora e tu lá dentro, eu a contar-te das minhas coisas e a reproduzir as histórias do Inspector Ventoinha dos Parodiantes e tu a falares do futuro, de tudo o que ainda iríamos ver, do que gostavas de mim, do que sofreras quando tinhas a minha idade, da resistência que te tornara mais forte, do crescer sem amor. Ouvia-te como um mantra. Éramos felizes naquela casa de bonecas e formigas. Muito mais fácil o mundo quando nos parecia caber numa mão. Mais fácil quando conhecíamos quase todos os nomes, os recantos de todas as esquinas do bairro, as portas de todos os prédios. O mundo era mais fácil de explicar e não necessariamente mais pequeno – o campo de futebol da escola parecia enorme, a sala da nossa casa um lugar mágico, a rua um país que nos custava a ultrapassar de uma ponta à outra. Era mais fácil porque o futuro estava ao alcance, o futuro podia ser o que quiséssemos, ninguém nos travaria a capacidade de sonhar e de controlar todos os passos. Mas o bairro não era o país. O campo de futebol não passava de um quintal e o mundo não nos cabia numa mão. Cada vez estou mais certo de que crescer não é ficarmos grandes. Crescer é ficarmos mais pequenos do que anões.

    Mas fomos muito felizes. E continuámos felizes depois de conheceres o Carlos no Teatro da Barraca, o meu pai estava em palco com a Maria do Céu Guerra e ele, promissor engenheiro de som, parecia encafuado numa salinha lateral ao palco onde controlava botões, ele mais jovem do que tu, ele de boas famílias, com casa em Algés onde o seu clã se reunia nos natais e em domingos especiais. Com a Rita bebé, nos primeiros anos do vosso casamento, fomos um par de anos lá passar a noite de 24 para 25. A mãe do Carlos e avó da Rita, creio que Lígia, senhora distinta, parecida com os latifundiários de Dallas, a série da moda de que não perdíamos um único episódio, ajudava timidamente à montagem da Árvore de Natal, um pinheiro a sério que o irmão do Carlos, o Tó, trazia não sei bem de onde, uma árvore que respirava antes de ser cortada e não a que a avó Joaquina mantinha num caixote junto das sobras dos tecidos dos soutiens que levava em sacos grandes para o patrão no final de cada mês. Para mim eram ricos. E a nossa casa de Campo de Ourique deixou de ter formigas e baratas, o Carlos trouxe o dinheiro para as obras e depois, já técnico superior na TV-Marcelo, fez entrar na nossa casa dinheiro a sério, um ordenado certo no final de todos os meses, o paraíso na terra. Isso foi antes de começares a perder a paciência com ele, antes de ele ter decidido trabalhar por conta própria. Desejava ser livre e não depender de patrões, lamentavelmente não conseguia cobrar aos pobres nem regatear com quem lhe pedinchava, calotes atrás de calotes. Ias aos arames.

    Ficou tão bonita a nossa casa.

    Os hóspedes da avó Joaquina tiveram de sair. Ficou a Maria no seu quarto independente do resto da casa, a avó pôde comprar uma máquina de costurar nova que substituiu a velha Oliva, escolheste uma alcatifa cara para a sala e até montaste um bar da moda com garrafas, como víamos na televisão: licores, whisky, aguardentes e coca-cola, um luxo asiático.

    A Rita nascera gordinha. Um parto mais tranquilo do que o meu. Fui recebê-la à maternidade, o Carlos levou-me. Tinha cinco anos e uns meses. É uma de três memórias que tenho com ele, essas três e mais uma outra que não interessa agora. Atravessar a rua a caminho de ti e de uma irmã que ia, finalmente, conhecer; um domingo em que me lavou a cabeça (chorei com o shampoo nos olhos, embora tenha tentado que ele não percebesse) e as torturas de chinês que me fazia nos primeiros anos, ria-me por antecipação, dobrava as gargalhadas até a avó Joaquina lhe pedir para parar, com pânico que eu sufocasse. Não me lembro da Rita ou de ti deitada na cama da maternidade e seguramente feliz. Recordo-me, sim, da mão do Carlos na minha e de ter pensado que não queria ter um pai novo, queria só que me largasse a mão e me deixasse em paz no meu quarto com os meus amigos de borracha. A Rita merecia ter

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