O psiquiatra em conflito: fatos, valores e virtudes nas internações involuntárias
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O psiquiatra em conflito - Gustavo Bonini Castellana
O psiquiatra em conflito: fatos, valores e virtudes nas internações involuntárias
© 2021 Gustavo Bonini Castellana
Editora Edgard Blücher Ltda.
Publisher Edgard Blücher
Editor Eduardo Blücher
Coordenação editorial Jonatas Eliakim
Produção editorial Luana Negraes
Preparação de texto Karen Daikuzono
Diagramação Guilherme Henrique
Revisão de texto Maurício Katayama
Capa Leandro Cunha
Imagem da capa iStockphoto
Logo_BlucherRua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar
04531-012 – São Paulo – SP – Brasil
Fax 55 11 3079 2707
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Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 5. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, março de 2009.
É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora.
Todos os direitos reservados
pela Editora Edgard Blücher Ltda.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Castellana, Gustavo Bonini
O psiquiatra em conflito : fatos, valores e virtudes nas internações involuntárias / Gustavo Bonini Castellana. – São Paulo : Blucher, 2021.
192 p.
Bibliografia
ISBN 978-65-5506-238-0 (físico)
ISBN 978-65-5506-234-2 (eletrônico)
1. Psiquiatria 2. Psiquiatras – Valores
3. Internação compulsória – Aspectos morais e éticos 4. Ética psiquiátrica I. Título
CDD 616.89
Índice para catálogo sistemático:
1. Psiquiatria
À Luciana, à Helena e ao Vinícius.
Conteúdo
Prefácio
Apresentação
Capítulo 1 O psiquiatra em conflito
Capítulo 2 Fatos: o conhecimento psiquiátrico e seus limites
Capítulo 3 Valores: da perspectiva ética à ação moral em psiquiatria
Capítulo 4 Virtudes: o psiquiatra e a sabedoria prática
Capítulo 5 O dilema das internações involuntárias
Capítulo 6 Exercícios de julgamento clínico e tomada de decisão
Capítulo 7 Experiências profissionais
Capítulo 8 Tipos de raciocínio em psiquiatria
Capítulo 9 Tipos de psiquiatra e o campo da psiquiatria
Capítulo 10 Psiquiatria, uma disciplina estranha
Referências
Posfácio – Psiquiatria: ciência e arte da medicina?
Landmarks
Cover
Title Page
Copyright Page
Dedication
Preface
Preamble
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Bibliography
Afterword
Table of Contents
Prefácio
Daniel Martins de Barros¹
Estava no começo da faculdade de Medicina quando a série Plantão médico (ER, no original em inglês) estreou com estardalhaço no Brasil. Num período pré-internet, sem streaming, aguardávamos a exibição semanal na televisão aberta, comentando com os colegas cada episódio. Lembro-me particularmente de um no qual o psiquiatra do serviço, personagem que não durou muitas temporadas, defendia a especialidade. Não me recordo das palavras exatas, mas em sua fala ele assumia que a psiquiatria era realmente diferente da medicina como um todo. Cheia de particularidades, recheada de subjetividade, carecendo de exames laboratoriais. Mas, para ele, isso tudo eram qualidades. Segundo o personagem, a psiquiatria perdia sua função quando os psiquiatras corriam atrás do respeito dos colegas tentando emular as outras especialidades.
Esse talvez seja o maior mérito da tese defendida por Gustavo Bonini Castellana, ora transformada em livro. Ele não se esquiva dos problemas ao explorar a complexidade da psiquiatria. Antes, assume tanto as limitações como os alcances que suas características lhe conferem para refletir de uma forma profunda, abrangente e multifacetada sobre o fazer cotidiano dos profissionais de saúde mental, aqui representados nos psiquiatras. Suas reflexões alcançam tal profundidade, contudo, que o leitor reconhecerá sem dificuldade que boa parte do que se encontra nestas páginas aplica-se à medicina em geral, e até mesmo a todo o universo do cuidado com a saúde.
Começando pelo fim, o trabalho nos ajuda a pensar as intervenções de saúde em geral, sejam médicas ou não, ao trazer para o primeiro plano o papel da sabedoria prática que permeia toda ação de qualquer profissional da área. Ao resgatar o conceito grego da phronesis, o autor mostra que essa é uma das virtudes fundamentais para quem se dispõe a cuidar e intervir na saúde do outro. Não é por acaso que a carga horária nesses cursos é apenas em parte teórica. É na prática, a partir da observação dos mestres, da interação com os pacientes, que se desenvolve essa virtude, sem a qual não se pode ser enfermeiro, médico, fonoaudiólogo ou dentista.
Antes de tratar das virtudes, contudo, o livro nos faz passar pelos valores. Para o autor, eles são os guias de nossas preferências diante de atos morais. Aqui talvez o foco se estreite um pouco mais, não para restringir o alcance da reflexão, mas para iluminar melhor o objeto de seu estudo. Uma vez que, embora qualquer ato de qualquer ser humano possa ter implicações morais, a medicina nos coloca mais amiúde diante de tais circunstâncias. A premência por decisões de vida e morte, a figura de autoridade do médico e a vulnerabilidade dos pacientes são fatores na construção do setting médico que tornam as decisões mais delicadas, seja em suas justificativas, seja em suas implicações. O autor destaca, nesse contexto, a importância dos trabalhos de Diego Gracia, em sua teoria da deliberação moral, e de Bill Fulford, com a prática baseada em valores, na busca por um mapa que nos ajude a encontrar o caminho prudente a seguir. O que, muitas vezes, é o melhor que se pode oferecer aos pacientes.
Se esses pilares são importantes para as práticas de saúde em geral, e na medicina em particular, na psiquiatria eles se tornam pedra fundamental, dadas as especificidades dos fatos que a cercam. Psicopatologia, fenomenologia, psicanálise, organicismo – o livro oferece ao leitor um desfile das mais influentes escolas teóricas que moldam o pensamento psiquiátrico ao longo da história, e assim revela que nenhuma delas foi suficiente para dar conta da complexidade do tema. Desde as dificuldades epistemológicas para diferenciar o normal e o patológico no que diz respeito ao comportamento humano até as controvérsias nosológicas que cercam os diagnósticos e suas classificações, o mister do psiquiatra – diferenciar sãos e insanos – é marcado por dúvidas quanto aos fatos, além de incertezas quanto aos valores e dificuldades quanto às virtudes.
O estudo da decisão dos psiquiatras diante de casos clínicos que envolvem dilemas de difícil resolução por não terem diagnósticos claros (dimensão dos fatos), que envolvem conflitos éticos (dimensão dos valores) e que dependem de nossa experiência (dimensão da virtude) evidencia como a subjetividade é componente inextricável da atuação em saúde mental. Mais do que isso, faz parte do seu instrumental. O autor conduz as entrevistas com os profissionais o tempo todo mostrando como essas dimensões permeiam as atitudes e posturas e influenciam mesmo as decisões racionais baseadas em evidências. O fato de serem casos difíceis não os torna diferentes dos demais casos em sua essência. Eles são apenas a epítome do que se faz diuturnamente diante dos pacientes e suas famílias. Sua escolha é feliz na medida em que sua maior complexidade funciona como uma lupa, habilmente manejada pelo autor-entrevistador, ao nos permitir vislumbrar melhor os detalhes envolvidos. Mas a verdade é que eles estão presentes mesmo quando não lhes damos a devida atenção.
Não estava errado, portanto, o psiquiatra do saudoso seriado Plantão médico. De fato, ao concluir a leitura, saímos com a sensação de que a psiquiatria é mesmo eivada de peculiaridades e – por que não? – excentricidades. Mas, ao contrário do que se pode imaginar, isso não desqualifica seus conhecimentos nem torna inócua sua prática. Dá-se justamente o oposto, uma vez que seu saber e suas técnicas mostram-se úteis não apenas para os próprios psiquiatras, mas para todo ser humano que, em qualquer contexto, precise cuidar de outro ser humano.
Ou seja, um saber universal.
Doutor em Ciências e bacharel em Filosofia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Professor colaborador do Instituto de Psiquiatria da FMUSP.
Apresentação
Pois, uma das tarefas essenciais de qualquer ciência da vida cultural dos homens é, realmente, desde o início, a apresentação
clara e transparente de suas ideias, para compreendê-las e para
saber o porquê de se ter lutado por elas.
Max Weber, 2001
Em setembro de 2019, apresentei a tese de doutorado O psiquiatra em conflito: fatos, valores e virtudes no dilema das internações involuntárias ao Departamento de Medicina Preventiva¹ da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, sob orientação da prof. dra. Lilia Blima Schraiber. A tese teve como principal objetivo explorar a subjetividade do trabalho exercido pelos psiquiatras, em especial o julgamento clínico e a tomada de decisão em casos que envolvem a possibilidade de internação involuntária. Assim, tão voltado para as motivações que estão no íntimo dos psiquiatras, não seria adequado a este trabalho prescindir de expor logo de partida minhas próprias motivações para esta pesquisa, ora transformada em livro pela Editora Blucher.
Graduado em 2004 pela Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA), instituição pioneira no ensino por meio do Problem Based Learning (PBL) e na formação humanística em Medicina no Brasil, escolhi a psiquiatria antes mesmo da medicina, influenciado por um psiquiatra amigo de meus pais – ambos médicos. A medicina era uma passagem (e que se revelou fundamental em minha formação) para a profissão de psiquiatra. Mais que uma especialização técnica dentro da medicina, a psiquiatria representava a possibilidade de me aprofundar na compreensão do sofrimento humano.
A residência em Psiquiatria no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HCFMUSP), realizada de 2005 a 2007, permitiu o encontro com pacientes que apresentavam as mais diversas formas de adoecimento mental.
No entanto, logo percebemos, eu e muitos outros residentes, que o conhecimento técnico-científico se revelava insuficiente para a compreensão daquelas vivências. Por isso, iniciamos formações paralelas à residência em grupos de estudo e de supervisão em psicopatologia fenomenológica, psicanálise e psicodrama.
Na área acadêmica, optei por cursar o ano adicional em Psiquiatria Forense, área pela qual tinha interesse desde a graduação, justamente por condensar as questões mais complexas da psiquiatria. Como parte da residência no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica (NUFOR), prestava atendimento à saúde mental de jovens infratores na Fundação Casa, em um projeto que durou cerca de dez anos. Lidar com jovens em contextos de violência demandava atenção a questões éticas importantes, como sigilo, autonomia e medicalização do comportamento (Donnangelo; Pereira, 1979; Schraiber; Mota, 2015; Illich, 1975).
Sob a orientação do prof. dr. Geraldo Busatto Filho, desenvolvi a pesquisa de mestrado visando compreender as influências constitucionais e ambientais do comportamento antissocial. A dissertação foi concluída e apresentada em 2014 ao Departamento de Psiquiatria da FMUSP.
Nesse ínterim, cursando as disciplinas do mestrado, tomei conhecimento dos estudos sobre a profissão médica com base em depoimentos pessoais realizados pela prof. dra. Lilia (Schraiber, 1993; 2008). Descobri ali que a pesquisa qualitativa oferecia instrumentos muito diferentes dos que eu conhecia até então, ideais para a pesquisa da dimensão subjetiva do trabalho como psiquiatra. Por isso, pouco tempo após a conclusão do mestrado, estimulado pelo prof. Geraldo, procurei a prof. Lilia e apresentamos um projeto ao Departamento de Saúde Coletiva da FMUSP, tendo como título inicial O psiquiatra em conflito: dilemas éticos, teóricos e individuais nos casos difíceis.
Os primeiros resultados da pesquisa foram avaliados pela banca de qualificação em setembro de 2017, e, entre outras sugestões, os examinadores propuseram rever o título do trabalho.
A primeira adequação ocorreu com a expressão caso difícil
, considerada imprecisa pelos avaliadores. De fato, a intenção inicial era abordar casos nos quais o psiquiatra tivesse dificuldade para tomar sua decisão não em razão do diagnóstico ou do desafio terapêutico em si, mas por causa de algum dilema moral envolvido no caso. No entanto, a pesquisa concentrou-se em casos clínicos nos quais o conflito se dava em função da decisão médica sobre a internação involuntária de algum paciente, sendo, portanto, mais adequado restringir o campo de análise apenas a tais situações.
A segunda adequação dizia respeito à sobreposição dos dilemas apresentados inicialmente: as dimensões ética, teórico e individual
estavam tão imbricadas em um caso concreto que a separação entre elas seria artificial. Ao ponderar sobre isso, minha orientadora e eu notamos que o dilema central da pesquisa estaria na decisão sobre internar ou não o paciente e no fato de que os conflitos explorados estariam subjacentes ao dilema no caso concreto. Por isso, influenciados pelas leituras feitas ao longo do trabalho de pesquisa, optamos por renomear as dimensões mencionadas inicialmente. Assim, a tese recebeu o seu título final: O psiquiatra em conflito: fatos, valores e virtudes no dilema das internações involuntárias. Para este livro, o título foi apenas adaptado.
Antes de dar por encerrada esta apresentação, cabe ainda esclarecer duas motivações adicionais para esta pesquisa.
A primeira delas é que parece haver certo ceticismo entre os médicos em relação a estudos assemelhados a este em virtude de sua pretensa inutilidade
à prática profissional e da restrição ao âmbito acadêmico de reflexão (Clavreul, 1978). A meu ver, estudos como o do presente trabalho não apenas podem, mas devem dialogar com os médicos atuantes e contribuir diretamente para a prática da medicina, sendo necessários para o desenvolvimento da especialidade. Quero dizer com isso que pretendo atingir a prática dos psiquiatras, despertando-os de uma atitude natural
nos termos de Husserl (2006). Conforme Habermas (1989), o enfoque fenomenológico salienta o caráter intersubjetivo das relações cotidianas, e essa configuração expressa no mundo da vida seria constitutiva das visões pré-científicas do pesquisador.
Por isso, pode-se dizer que, do ponto de vista epistemológico, isto é, do sentido de uma reflexão ou vigilância interna da ciência sobre seus procedimentos e seus resultados
(Bruyne; Herman; Schoutheete, 1977, p. 41), a atitude fenomenológica foi um guia permanente desde a concepção até a conclusão de toda a pesquisa.
A segunda motivação diz respeito ao contexto mais propriamente acadêmico no qual está inserida a presente pesquisa. Ainda que localizada na interface de estudos históricos sobre as práticas da psiquiatria² e influenciada por trabalhos dessa natureza, procurou-se evitar um recorte histórico-social stricto sensu e vai em direção ao estudo dos conflitos que envolvem a prática do psiquiatra a partir do próprio relato desse profissional. Valoriza-se, assim, a relação médico-paciente e o julgamento clínico exercidos no cotidiano da prática profissional, semelhante ao que fez Atkinson (1995) e que denominou de microssociologia do conhecimento médico
. Por fim, vale dizer que o livro é produto não somente da trajetória desenvolvida durante o doutorado, mas também pela experiência e aprendizado adquirido como colaborador do NUFOR desde 2007. A psiquiatria forense é, por excelência, o campo do debate dos valores na psiquiatria. Por isso, inspirados pelo próprio desenvolvimento da pesquisa, passamos a realizar periodicamente encontros para discutir dilemas éticos no NUFOR. Tais reuniões são abertas a todos os membros do IPq – isto é, psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais – e passaram a fazer parte da grade oficial dos residentes do terceiro ano de Psiquiatria em 2018. A partir da exposição de um caso clínico por algum membro do corpo clínico (residente ou assistente), no qual estaria implícito certo dilema ético, discutimos a conduta mais prudente a ser adotada com base na teoria da deliberação moral e na prática baseada em valores, abordando temas complexos e sensíveis, como sigilo em caso de pedofilia, ameaça de heteroagressividade e autonomia no tratamento de transtornos alimentares. Promover a reflexão sobre a prática dos psiquiatras a partir de dilemas éticos tem proporcionado não somente a exposição a temas importantes na formação dos residentes, mas também aprimorar e ajustar a nossa prática pelo desenvolvimento das virtudes necessárias à profissão.
Esse desdobramento em paralelo
do trabalho aqui apresentado representa, de certa forma, a consolidação tardia de um projeto pessoal antigo: ainda como residente de Psiquiatria Forense propus ao Departamento de Psiquiatria que essas reuniões fossem realizadas. À época, a ideia foi rejeitada com o argumento de que aquilo já havia sido testado, sem sucesso. Por isso, a realização dessas atividades aponta para uma mudança de valores na instituição, agora mais interessada em permitir o debate sobre as diversas facetas da psiquiatria, em toda sua complexidade.
Outro aspecto particular dessa pesquisa refere-se à metodologia utilizada. Especialmente em um momento em que o mundo científico está voltado para dados estatísticos característicos das pesquisas quantitativas, na busca de parâmetros que possam nos orientar em relação às tomadas de decisão, a pesquisa qualitativa costuma ser menos valorizada – ou até