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Assim se benze em Minas Gerais: Um estudo sobre a cura através da palavra
Assim se benze em Minas Gerais: Um estudo sobre a cura através da palavra
Assim se benze em Minas Gerais: Um estudo sobre a cura através da palavra
E-book514 páginas8 horas

Assim se benze em Minas Gerais: Um estudo sobre a cura através da palavra

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Sobre este e-book

Assim se benze em Minas Gerais é resultado da pesquisa de campo aliada a uma atenciosa reflexão teórica. Sem pretender esgotar um tema de tão variadas implicações, os autores percorrem alguns dos caminhos dessa prática sagrada tendo como guias os próprios devotos. Seus depoimentos mostram a complexidade dos rituais de cura, bem como a rede de trocas sociais subjacentes às relações de uma extensa faixa da população brasileira.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de jul. de 2021
ISBN9786557490082
Assim se benze em Minas Gerais: Um estudo sobre a cura através da palavra

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    Assim se benze em Minas Gerais - Edimilson de Almeida Pereira

    EDIMILSON DE ALMEIDA PEREIRA, NÚBIA PEREIRA DE MAGALHÃES GOMES - Assim se benze em Minas Gerais: um estudo sobre a cura através da palavra - Mazza EdiçõesASSIM SE BENZE EM MINAS GERAISEDIMILSON DE ALMEIDA PEREIRA, NÚBIA PEREIRA DE MAGALHÃES GOMES - Mazza EdiçõesAssim se benze em Minas Gerais: um estudo sobre a cura através da palavra - 3ª edição

    A Cyro Dias Pereira e Palmyra de Araújo Pereira.

    A Ercília Maria da Silva, Geraldo Mendes e

    Iraci de Almeida Pereira.

    Sumário

    Capa

    Folha de Rosto

    NA FORÇA DA DEVOÇÃO

    Faustino Teixeira

    INTRODUÇÃO

    VEREDAS DO SAGRADO

    Assim mesmo eu benzo e te transfiro meus poderes

    O tempo na benzeção e na doença autolimitada

    A integração do homem na natureza

    SUPORTES DA CURA

    A palavra: eixo de tudo

    Elementos naturais

    Água

    Fogo

    Ar

    Terra

    Vegetação

    A força energética dos excrementos

    Saliva

    Sangue

    Leite

    Unha

    Cabelo

    Metáfora do corpo intermediário

    Simbologia dos referentes: unidade e fragmentação

    Círculo

    Cruz

    Signo de Salomão

    A oposição homem x mulher

    A dupla direção esquerda e direita

    Sol e Lua: forças celestes

    O poder da estrela na luta entre luz e trevas

    Outras formas de desintegração da unidade

    HISTÓRIAS DE VIDA E INICIAÇÃO DE BENZEDEIRAS

    No começo, o verbo

    A palavra emprestada

    A saga de Maria Raminha

    A menina dos anjos

    Uma visita ao sagrado

    O verbo feminino

    ANÁLISE ESPECÍFICA DAS BENZEÇÕES

    Espinhela caída e ventre virado

    Quebranto e mau-olhado

    Cobreiro

    Erisipela

    Dor de dente

    Pé destroncado

    Íngua

    Terçol

    Unheiro

    Impinge

    Bicheira de gado

    Inflamação de peito

    Dor de cabeça

    Azia

    Engasgado

    Queimadura e fogo selvagem

    Orações contra raios, trovões e tempestades

    Orações e promessas para chover

    Hemorragia

    Mordida de cobra

    Fechar corpo

    Orações e benzeções gerais

    NOTAS

    ANEXOS

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    CRÉDITOS

    Landmarks

    Capa

    Folha de Rosto

    Dedicatória

    Sumário

    Introdução

    Bibliografia

    Página de Créditos

    Na força da devoção

    "Muita religião,

    seu moço!"

    Um traço característico da sociedade brasileira, apontado por muitos estudiosos, é a relação com o outro mundo. É algo que faz parte da dinâmica e da trajetória de boa parte da população. Uma familiaridade singular com os espíritos, entidades, almas, guias, orixás, que circulam e se comunicam com naturalidade. Como mostrou Gilberto Velho, ao falar dos sistemas de crença na cultura brasileira, é plausível indicar que cerca da metade da população no país participa de alguma forma de sistemas religiosos ou práticas que envolvem a crença nos espíritos e sua manifestação periódica. Esse é o Brasil, das altas rezas, das muitas e diversificadas expressões de fé, adornadas com o toque da pluralidade e da interconexão.

    É nesse campo encantado que se encaixam as benzedeiras e benzedores, tecendo as malhas das relações com o outro mundo. São pessoas muito especiais, portadoras de um poder singular, nomizador, que ajudam com suas preces e presença a manter o fundamental equilíbrio das pessoas com o seu ambiente. Tudo se dá através de uma linguagem que cura, de uma palavra que aciona e dinamiza as forças de harmonia e pacificação. É através da benzeção que se garante o funcionamento da normalidade almejada. A palavra guarda também um mistério, e ela se espraia muitas vezes de forma incompreensível, revelando um poder oculto capaz de reorganizar o mundo e conferir sentido. O segredo essencial está na confiança depositada na palavra, e sem ela fica bem difícil a realização do intento.

    Esses agentes da palavra são portadores de um poder, são lideranças reconhecidas pela comunidade. Não é tarefa facultada a todos, mas àqueles que recebem um dom especial, que retomam a cadeia de uma memória comunitária, onde cada palavra tem um lugar definido no mapa do sagrado. Na base do ofício há um aprendizado, onde cada agente sabe situar com precisão os espaços que interligam os sujeitos com os espíritos, santos, anjos, almas e entidades. Tudo vem aprendido no melhor recanto da memória, sendo aplicado nos momentos de precisão. Há também um traço sonoro peculiar no fenômeno da benzeção. As palavras são comumente ditas às pressas, rompendo a intelecção comum, mas tudo acontece num movimento natural, sem erro, com o pensamento firmado, para garantir e resguardar a força da oração.

    A prática da benzeção rompe a lógica do mercado, garantindo uma gratuidade difícil de encontrar no ritmo cotidiano. Talvez seja o toque singular da experiência: dar de graça o que de graça se recebeu. E há uma consciência viva de que Deus é o portador da cura. A benzedeira ou o benzedor são simplesmente seus intermediários. É de Deus que recebem o dom, e sua palavra é sempre emprestada. No caso brasileiro, percebe-se a presença viva do elemento feminino. São muitas mulheres conjugando o verbo da benzeção, demarcando um espaço garantido e especial, de presença e força numa sociedade ainda machista e excludente.

    Essa preciosa obra de Núbia Pereira de Magalhães Gomes e Edimilson de Almeida Pereira, Assim se benze em Minas Gerais, constitui porta essencial de entrada no mundo fascinante da benzeção. Agora na sua terceira edição, a obra é fruto de uma ampla pesquisa envolvendo 198 localidades da região mineira. Um trabalho incansável, realizado por pesquisadores que escapam ao enquadramento exclusivamente acadêmico. Trazem consigo uma empatia singular com o mundo popular e suas tradições de cultura e fé. É o grande diferencial dessa obra, cuja difusão ganha hoje particular importância, num tempo onde o saber religioso popular se fragiliza em razão do enfraquecimento de sua cadeia de transmissão. Torne-se mais do que essencial acordar essa linda memória.

    Juiz de Fora, abril de 2017

    FAUSTINO TEIXEIRA

    Professor do Programa de Pós-graduação

    em Ciência da Religião,

    Universidade Federal de Juiz de Fora

    Introdução

    A cultura popular de Minas Gerais se converteu em nosso tema de estudo sistemático desde o ano de 1978, quando realizamos nossas primeiras viagens pelo interior, a fim de fazer gravações e registrar as diversas práticas das comunidades rurais do estado. Na verdade, nossa história de amor às pessoas e à terra mineira está relacionada às nossas experiências da infância, das brincadeiras, das histórias, dos casos de assombração, das férias na roça, enfim, de todo um ambiente em que se acreditava nas forças de preservação e também de mudança que permeiam as teias do passado: ali, naquela vivência, estavam os germes da cultura que posteriormente começaria a ser analisada de maneira mais detida e aprofundada. Entre tantas outras manifestações marcantes da cultura popular, as benzeções se tornaram nosso centro de interesse. Primeiro, porque se situam no âmbito das práticas rituais em que um iniciado atua como mediador entre os deuses e os homens gerando, com isso, a expectativa de uma vida mais extensa, revelada para além da história cotidiana do sujeito; segundo, porque as transformações sociais têm interferido, em diferentes graus e medidas, na atuação desses iniciados bem como na manutenção de seu patrimônio sagrado; terceiro porque, apesar dessas mudanças, a benzedeira e o benzedor se destacam como agentes sociais que desempenham – no meio rural ou na periferia dos centros maiores – a função de mantenedores do equilíbrio do homem e do mundo. Embora possam receitar ervas e chás como medidas complementares, a benzedeira e o benzedor curam pelo poder da palavra e seu trabalho não é remunerado, ainda que as condições de sobrevivência material lhes sejam geralmente difíceis e, em muitos casos, penosas.

    A presença da mulher é marcante no mundo da religiosidade popular e é ela, numa maioria quase absoluta, quem conhece o segredo das palavras e dos gestos capazes de exorcizarem o mal. Em algumas fórmulas de benzer estudadas na Península Ibérica ocorria frequentemente a presença da frase, inicial ou final: Eu sou a mulher, a benzedeira –, o que denota a vitalidade do elemento feminino registrada nas palavras santas. A devoção com a qual o benzedor – mulher ou homem – se entrega ao exercício de seu mister atesta o caráter religioso da função: muitas vezes, às sextas-feiras, havia fila nas portas da casa de um benzedor, que perdia o dia da colheita ou de outro trabalho – e o dinheiro consequente, tão necessário – para atender ao sagrado dever de curar. Segundo o preceito de que se deve dar de graça o que de graça se recebeu, os benzedores confiam na recompensa de Deus, expressa no agradecimento tantas vezes ouvido: Deus há de prover. Recebem, na verdade, gêneros alimentícios que são muito mais um agrado do que um pagamento: a galinha, uma verdura, ovos, canjiquinha, a broa feita no dia, a garrafa de leite – tudo isso pode fazer parte de uma troca de graças. Já ouvimos referência a pessoas que perderam o poder ou trabalham para as trevas, porque recebem dinheiro: Aquela num é benzedeira não. É mandingueira: ela cobra e trabalha é pro demônio.

    Faz-se necessária uma referência ao segredo da benzeção: há uma confiança na magia das palavras desconhecidas e muitas vezes o benzedor se recusa a ensiná-las, já que lhes foram transmitidas sob essa condição de não revelação. Além disso, acredita-se que o conhecimento da palavra sagrada pelos não iniciados pode esvaziar-lhe o poder: daí, alguns devotos se recusaram a explicar a benzeção; outros, após uma negativa inicial, se dispuseram a informar, no desenvolvimento natural da entrevista, e ainda outros revelaram espontaneamente, alegando que além do conhecimento da fórmula é preciso ter o poder, sem o qual as palavras nada valem. A presente obra analisa os ensalmos, evidenciando as ações do benzedor e do benzido, ouvidos no contexto da cultura popular de várias regiões de Minas Gerais. Por isso, a demarcação desse recorte no título do livro. Trata-se, portanto, de um estudo restrito que, esperamos, possa servir de referência para estudos comparativos relacionados a este tema e aos seus desdobramentos em outros grupos sociais. No ato de benzeção, a palavra sagrada – responsável pela cura – leva os devotos, benzedor e benzido, a participarem de um universo mais vasto, permeado pelas forças míticas que se revelam por meio das fórmulas de benzeções. Os ensalmos, geralmente, têm a oralidade como suporte e expressam, para além da cura, uma conceptualização de mundo específica de seus usuários. A recorrência dessas fórmulas e de outras similares aponta o seu sentido arquetípico, pois se referem ao fato de que em diferentes épocas e em diferentes grupos sociais os homens sempre manifestaram o desejo de compartilhar a vivência do sagrado criando, para isso, canais de comunicação entre os deuses e seus devotos.

    Nossa pesquisa utilizou as seguintes técnicas durante a coleta de dados: a) viagem para documentação e gravação inloco; b) correspondência para as prefeituras municipais, solicitando a aplicação de um questionário nas escolas públicas locais; c) palestras e cursos oferecidos para professores de Língua Portuguesa, orientando o trabalho de coleta de dados com os alunos. O trabalho foi realizado em 198 localidades, das quais 35 foram visitadas pessoalmente. No caso de gravações, usamos a transcrição da fala informalmente tal como ela ocorreu; nos questionários enviados por correspondência nos mantivemos fiéis às formas escritas documentadas. A primeira versão da obra participou do Concurso Nacional de Folclore Sílvio Romero/FUNARTE – 1987, sendo distinguida com a 1ª Menção Honrosa. Posteriormente, acrescentamos ao texto o vasto material proveniente do Vale do Jequitinhonha, coletado sob a coordenação da professora Sílvia da Silva Nascimento, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Teófilo Otoni. Esta contribuição enriqueceu de forma substancial o acervo referente às fórmulas de benzeções e aos patuás encontrados em Minas Gerais. O resultado, ainda que parcial, dessa viagem ao sagrado aqui está. Nossa interpretação é apenas uma leitura; que sobre este texto outras leituras críticas sejam feitas para que a visão do objeto se complete na dependência do ponto de vista de cada observador. Acreditamos que a tentativa de interpretação das práticas culturais amparada por recursos teóricos provenientes dos estudos linguísticos, psicológicos, sociológicos, históricos e literários nos ajudará a compreender a complexidade da cura através da palavra, fato no qual cultura e homem constituem as linhas de um mesmo ângulo.

    Queremos registrar os nossos renovados agradecimentos aos habitantes das Minas Gerais, representados pelas pessoas que nos prestaram valiosas informações e que são, por isso mesmo, coautoras de nosso trabalho; aos dirigentes municipais, que com tanto empenho dirigiram a aplicação do questionário em suas localidades; às professoras e professores de Língua Portuguesa, bem como aos seus alunos e alunas que, acreditando na seriedade de nossa pesquisa, colheram os dados em suas cidades; e à Jacqueline Machado de Melo, auxiliar de pesquisa, a cuja dedicação e competência tanto devemos. Somos gratos à Sra. Rejane Dias, responsável pela Autêntica Editora, que nos permitiu incluir na presente edição o ensaio Senhoras da fé: histórias de vida e iniciação entre benzedeiras, publicado em 2002 por aquela editora, no livro Flor do não esquecimento: cultura popular e processos de transformação.

    Agradecemos também às professoras Marilda Fátima da Silva e Audineta Alves de Carvalho, que nos convidaram para ministrar aulas para os discentes do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu/Especialização em Arte-Educação/Disciplina Cultura Brasileira, na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). A partir dessas atividades, vários alunos do Curso se tornaram colaboradores de nossa pesquisa sobre o ritual de benzeções. Por isso, nossos agradecimentos aos discentes: Luiza Maria Barbosa Ferreira e Weslane Roberta Silva (que entrevistaram a Sra. Hilda Isabel Chagas, em Belo Horizonte, em 22 de fevereiro de 1996); Levy Vargas Filho, José Márcio Silva e Williane Nunes Leão (que entrevistaram o Sr. Custódio Moreira de Araújo, em 20 de setembro de 1999); Maria Aparecida Fulanete Vidal de Carvalho e Edna Rosália Duarte Moreira Martins (que entrevistaram a Sra. Dalva Maria Ildefonso, em 5 de outubro de 1999); Dirlene Malheiros dos Santos, Estenita Ferreira e Heloiza Helena da Silva (que registraram o depoimento da Sra. Debrandina Laktin Jannucce, em 1º de outubro de 1999); e Iara Fátima F. Falcão e Davi de Oliveira Pinto (que ouviram a Sra. Maria Coleta, no bairro Jardim Alvorada, Belo Horizonte, em 4 de outubro de 1999).

    Há tempos vínhamos pensando na reedição deste livro, razão pela qual reunimos novos ensalmos e delineamos uma análise mais apurada dos fatos ligados à cura através da palavra. Contudo, envolvidos com outros projetos, não pudemos realizar esse intento. A versão que ora apresentamos mantém, em linhas gerais, o traçado da primeira edição. As modificações se resumem, como dissemos, ao acréscimo de um capítulo sobre a iniciação das benzedeiras, à junção dos parágrafos e à mudança de determinados vocábulos. Por isso, contando com a ajuda de nossas amigas e amigos leitores esperamos, em outra oportunidade, transformar em bons frutos as falhas e as limitações dessa viagem inicial ao sagrado. A demanda pelo livro – seja por parte dos devotos ou de outros estudiosos – nos anima, pois revela a atualidade do tema num mundo onde os conflitos e as trocas culturais são cada vez mais intensos. Por essa razão, o mergulho nas vivências culturais locais se torna indispensável para entendermos os modos de relacionamento entre sociedades e indivíduos situados em condições diversas e, no entanto, passíveis de uma confrontação a curto prazo. As análises aqui propostas tomam o estado de Minas Gerais como referência, mas, pela natureza dos eventos registrados, devem ser consideradas como notas que pretendem se inserir no concerto maior de estudos sobre as relações entre o ser humano e o sagrado, entre a experiência religiosa e as mudanças sociais.

    Veredas do sagrado

    ASSIM MESMO EU BENZO E TE TRANSFIRO MEUS PODERES

    É difícil imaginar o momento inicial em que o ser humano sentiu a necessidade da comunicação com o Criador, estabelecendo o elo entre o conhecido e as forças pressentidas através da prece: a primeira oração do homem se perde na névoa dos tempos. No entanto, podemos pressupor que houve, no processo evolutivo, um desenvolvimento de áreas cerebrais que permitissem tanto o andar bípede quanto o início de abstrações que caracterizam a formação da reflexão. Os estudos da Psicolinguística nos esclarecem que a linguagem só pode manifestar-se no homem quando as camadas do neocórtex, no hemisfério esquerdo, se tornaram aptas a desempenhar funções de reconhecimento, comparação, nomeação e extensão de sentido. O ser criado, observando a natureza, experimentou o pensamento metafórico e intuiu a presença de uma força maior do que a realidade concretamente manifesta. Essa força – que se expressava através dos fenômenos da natureza – se fez sentir como causa e princípio do Cosmos. Por temê-la, o homem se dirigiu a ela, oferecendo objetos materiais para que, num sistema de troca, a ordem do mundo se mantivesse inalterada. Se o raio ou o trovão pareciam uma ameaça – um grito do Criador com o filho desobediente – fazia-se mister dirigir-se aos céus, em atitude súplice, gesticulando e usando a palavra, para abrandar a ira celeste.

    Na tentativa de conceptualizar o universo circundante, o homem, ao longo da experiência social, foi tecendo seus mitos, descobriu o medo do desconhecido e a necessidade de tentar controlá-lo.

    Fosse qual fosse a época e a região da terra, o mito nasceu sempre do temor e da crença em poderes desconhecidos que o homem atribuía a seres diferentes de si próprio e que lhe eram superiores. Perante as forças da natureza, que não consegue vencer, os fenômenos naturais e tudo quanto constitui uma ameaça para a sua existência, desde a falta de alimento às tempestades e à morte o primitivo chega à conclusão de que existem à sua volta vontades mais fortes que a sua, cuja atuação não pode dominar nem de forma alguma prever. Na maior parte dos casos essas forças são-lhes adversas, mas sucede também mostrarem-se-lhe propícias. De qualquer maneira, o homem nunca sabe como elas se manifestarão. (LAMAS, 1972, p. 17-18)

    Aprendendo a dialogar com os entes sobrenaturais, o homem usou a palavra, o rito, a oferenda – numa tentativa de controlar a natureza e eliminar o mal. A religiosidade do homem antigo se reduplica e permanece na fé do mineiro, o que demonstra que os povos têm acreditado em formas do imaginário que muitas vezes convergem para um único caminho, fazendo com que os mitos regionais adquiram matizes universais. Nossa pesquisa se fundamenta na religiosidade popular, onde buscamos as fórmulas de benzeção com as quais se curam as doenças, se sanam os males, se vencem os inimigos, se evitam as dificuldades: é o poder da palavra que cura, da palavra que benze. A experiência de fé que confere sentido à benzeção é partilhada por uma faixa significativa de nossa população. Crer nessas coisas parece, à primeira vista, uma marca da classe social que não teve acesso à cultura escolar ou até mesmo a outros recursos materiais (como a ida a um médico ou farmacêutico). Como parte da vivência do sagrado, o exercício do ato de crer avulta entre os socialmente desprestigiados, que assumem sua condição de crédulos, que fazem promessas e as cumprem publicamente, arrastando-se degrau a degrau nas escadarias das igrejas, portando pedras na cabeça ou caminhando, cruz às costas, para um sacrifício exemplar: o modelo do Cristo. É a fé vivida, assumida por convicção, desligada do julgamento social e de qualquer forma de preconceito: é assim, foi assim desde sempre. E a convicção íntima – que dá força para a representação do espetáculo sagrado – se fundamenta no valor da transmissão: é assim desde que o mundo é mundo.

    Assim, a Bíblia vivida pelo povo é a do tempo de antigamente, da época que minha avó contava – e a fé nos antepassados reside exatamente no fato de estarem mergulhados no passado e mais próximos do tempo primordial, aquele tempo das origens. Se é verdade que o povo (essa designação genérica para os grupos de pessoas sem saber erudito, sem classe social prestigiada) acredita nessas coisas e o demonstra, também é certo que o ato de crer em agentes e forças inexplicáveis tem trânsito mais ou menos discreto em todas as camadas da sociedade. A crença no sobrenatural é mítica e, por definição, não científica. O que independe de comprovação, o que ultrapassa os critérios objetivos de veracidade, tudo que vai acima e além do dado científico é questão de fé, de convicção assumida. E, aqui, nem se pode estabelecer a diferença em relação à religião do povo e à instituição eclesiástica. Está além da explicação objetiva do mundo colocar o chapéu do marido na cabeça da gestante para facilitar o parto (convicção popular), como também extrapola os limites científicos a prática recorrente no Mosteiro das Luzes (instituição eclesiástica) que consiste em fornecer papelinhos de Frei Galvão para serem deglutidos como comprimidos.¹ O chapéu se liga à facilidade de expulsão do feto da mesma maneira que uma pequena tira de papel dobrada tem efeitos terapêuticos. Crer nessas coisas – muito mais do que simples incompreensão dos recursos reais para solucionar a problemática existencial – é parte da vida do homem. E o questionamento dessa busca do desconhecido é a própria decifração da nossa incógnita. Refletimos – e essa é nossa característica humana –, nossa maior aquisição no processo evolutivo da espécie. Chardin (1979, p. 169) já nos alertava sobre o dom de pensar, quando esclarecia:

    Do ponto de vista experimental, que é o nosso, a Reflexão, como a própria palavra o indica, é o poder adquirido por uma consciência de se dobrar sobre si mesma como de um objeto dotado de sua própria consistência e de seu próprio valor: já não só conhecer – mas conhecer-se a si próprio; já não só saber, mas saber que se sabe.

    Assim, qualquer assunto é objeto de reflexão, mormente essas coisas, que não são, como podia parecer, pequenas coisas do povo mas grandes coisas do homem. Crer na energia criadora, no poder de lidar e vencer o inatingível não é falha do homem: é sua tentativa de saber e saber-se. Por mais enigmáticos que possam parecer os vínculos Criador/criado, por mais distantes que estejam da razão humana, eles se ligam ao sentido de existência, da própria essência. Enquanto o homem usa palavras, ele se exerce diante do indecifrável, em admirável resistência. As benzeções são a prova da luta do homem contra suas próprias limitações. Recolher esses ensalmos é um primeiro passo, tão somente; tentar entendê-los é usar o atributo da reflexão para decifração parcial de nós mesmos.

    O que é benzeção?, perguntaríamos de início. Uma benzeção é uma linguagem orogestual com a qual algumas pessoas – detentoras de poder especial – controlam as forças que contrariam a vida harmoniosa do homem. Benzer é garantir o funcionamento da normalidade desejada e conter o mal. Estamos fazendo uma distinção entre benzeção – que emprega o uso de formas orais e gestuais quase sempre de poder exclusivo do benzedor – e simpatia, qualquer recurso material que pode ser usado pelas pessoas em geral, para evitar o mal e alcançar o bem, mudando o curso dos acontecimentos. O valor da benzeção reside exatamente na sua privacidade e no fato de transmitir-se entre os escolhidos, sendo privilégio de um pequeno número de iniciados. As simpatias não dependem da linguagem e são procedimentos a serem adotados para atingir um objetivo. É simpatia dar de beber água a uma criança na casca de ovo de galinha para que ela venha a falar. Não há necessidade de uma pessoa especial – intermediária entre o doente e as forças a serem vencidas –, de palavras sagradas ou gestos mágicos.

    Através da oralidade, algumas fórmulas de benzeções caíram no conhecimento geral, ainda que reduzidas em seu conteúdo inicial. Assim as pessoas puderam adquirir parte do conhecimento sagrado e chegaram à experiência de utilizar palavras semissacralizadas. Porque a difusão das fórmulas esvazia – ainda que parcialmente – seu sentido primevo. Por isso muitas das simpatias se acompanham de fórmulas de linguagem, constituindo um estado intermediário entre a benzeção e um procedimento genérico de cura. Nesse caso, utilizamos a nomenclatura autobenzeção: o indivíduo, qualquer que seja, pode se utilizar da palavra mágica, invocando a cura para si próprio. Não se trata de uma oração oficial, dentro de um modelo religioso, mas do uso de sequências, às vezes fragmentárias, que podem fazer parte de fórmulas de benzeção ou são referências à fundamentação mítica dos rituais. Consideremos os três casos, separadamente. Para a cura da azia, podemos ter os seguintes processos:

    a) Benzeção:

    O benzedor diz a palavra, benzendo o doente com um galho:

    – Santa Sofia

    Tinha três filhas

    Uma bordava outra cozia

    A outra curava o mal de azia. (Belo Horizonte)

    b) Autobenzeção:

    Socar bem três pedaços de carvão, com água, dizendo:

    – Pelas três filhas de Santa Sofia. (São Domingos do Prata)

    c) Simpatia:

    Para curar a azia o segredo é dormir com um pedaço de pão queimado debaixo do travesseiro. (Barbacena)

    Na benzeção, temos três fatores essenciais: o benzedor, o benzido e a palavra portadora da cura (ainda que o rito possa incluir gestos ou a utilização de elementos naturais, a tríade sobre a qual se sustenta o ensalmo é essa). Na autobenzeção, temos como elementos pertinentes o doente e a invocação, através de palavras aprendidas, isto é, benzedor e benzido são uma única pessoa. O dado relevante é o fato de a cura processar-se pela força verbal – mesmo que ocorram outros procedimentos. Em relação à simpatia, o mecanismo é ainda mais simples; trata-se de um processo para prevenir ou remediar o mal. A palavra não se faz presente e a cura não depende da força restauradora do Verbo. O próprio benzedor tem conhecimento dessa diferença quando esclarece:

    – Benzê num é pra qualqué um não, por causa do dom de Deus. Uma pessoa tem que passá a benzeção pra senhora, com orde de Deus. Agora tem umas palavras que pode ensiná as pessoas, um pouquinho, pra quando precisá e num tivé benzedô por perto. Coisinha pouca, que muita gente sabe. Pra ajudá, que assim o cristão mesmo benze ele, numa hora de apertume. (Vazante)

    – As simpatia falada já é mais importante do que as que num tem palavra. Tem mais força. Mas num é a mesma benzeção de um rezadô. Rezadô é de Deus, povo é do mundo. Tem diferença, e muita. (Poté)

    Em algumas ocasiões o benzedor utiliza orações oficiais, tais que a ave-maria, o pai-nosso, o credo, a salve-rainha, como recursos complementares: após a recitação da fórmula específica, vale-se das rezas de padre. É uma espécie de reforço, através do prestígio da religião institucionalizada. É procedimento rotineiro o uso de salve-rainha, com a interrupção em algumas partes, isto é, reza-se até determinada palavra. O valor da oração oficial na cultura popular reside em seu emprego: a partir do momento em que a fé do devoto se apodera de uma prece ela se torna realmente popular. E nesse uso pode perder o seu sentido originário, pela alteração fonética, que causa mudanças semânticas. Quando um benzedor reza, suas palavras são oração, quer sejam provenientes da oralidade, que traz o segredo dos antepassados, quer se tenham divulgado a partir de um texto escrito.

    As orações oficiais nascidas da Igreja chegaram ao domínio popular. Existem aquelas que preservaram a estrutura e a linguagem eclesiásticas, ao passo que outras foram criadas pelo próprio povo, interessado em entretecer o diálogo com o mundo divino. A criação de novas orações segue o influxo das necessidades cotidianas das comunidades: a cura de males como a caxumba, dores de goela e de ouvido, a cessação das tempestades e a realização de um bom parto, por exemplo. A linguagem dessas fórmulas caracteriza-se pela riqueza e profundidade das metáforas que explicitam as dificuldades do homem e sua recorrência ao mundo sagrado. Há uma diferença entre a linguagem das orações oficiais e a das orações populares. Nas orações populares a linguagem acontece no âmbito lúdico das relações entre os deuses e os homens, incitando-os a uma aproximação mais intensa. Veja-se esta oração que pede aos santos o fim da chuva:

    Santa Clara clarear

    São Lourenço manda o vento

    Para enxugar meu lencinho

    Do Divino Sacramento. (Teófilo Otoni)

    Muitas vezes as palavras da fórmula de benzer se modificaram na repetição oral, afastando-se do sentido original e passando a figurar como elemento sonoro de poder mágico, independente de significado. A mudança de sentido, decorrente da evolução fonética – ou a própria incompreensão do sentido das palavras – em lugar de dificultar, favorece: é o mistério acrescido pela superioridade do obscuro. Fascina o homem aquilo que ele não pode entender, a realidade maior, que ultrapassa a tentativa de resposta clara, racional. Repetir palavras incompreensíveis faz parte da magia da benzeção, como tão bem esclareceu Jung:

    Quanto mais a imagem é bela e modelada, majestosa e ampla mais ela é distante da experiência individual. A linguagem hermética presta-se melhor à expressão do desconhecido, enquanto a clareza rouba o segredo ao que é obscuro e torna-o uma coisa banal;

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