Outra educação é possível: Feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula
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Outra educação é possível - Luana Tolentino
Como uma carta, como uma irmã
Escrevo na manhã de um dia decisivo, quando estará em jogo muito do que sabemos e construímos da história do nosso país, e também muitas das nossas esperanças no futuro.
Impossível ficar indiferente a tanta tensão vinda dos jornais, das notícias, dos últimos acontecimentos, das conversas compartilhadas e também daquelas que naufragaram recentemente. E, no entanto, vejo que o livro da Luana atua em mim com uma força dupla inesperada: por um lado, me ajuda a mergulhar em todas as memórias e sonhos que estão em jogo agora; por outro, me lembra que há algo ainda mais fundo e mais alto do que este dia. Algo que vem de muito antes e não se encerra de modo algum depois.
Peguei-me, inclusive, pensando: quando foi mesmo que o caminho da Luana e o meu se tocaram? Como foi que esta ponte se construiu?
Ah, sim: li um texto dela no Facebook e me encantei completamente.
Tento entender o motivo. Vejo que tenho dedicado a vida, nos últimos 10 anos, a um trabalho intenso de formação continuada em larga escala de professores das redes públicas. E isso tem significado, mais que tudo, tentar trazer à tona a experiência concreta da sala de aula do Ensino Básico, com seus desafios mais difíceis e relevantes. Para isso, tem sido crucial desenvolver uma escuta atenta diante desses professores, de modo a contribuir para que o diálogo entre eles e deles com a reflexão acadêmica possa de fato acontecer.
Nesse sentido, desde o primeiro texto da Luana, vi ali exatamente o tipo de voz que mais pude sonhar ver se erguendo: aquela que articula em si mesma uma atenção profunda aos alunos e uma capacidade de reflexão e de pesquisa mais que notável; aquela que é capaz de experimentar na pele todo tipo de desafio e dificuldade e, ainda assim, é capaz de mobilizar todas as suas forças e todas as parcerias possíveis no seu entorno; aquela que traz em si uma articulação rara entre vocação e talento, espírito de missão coletiva e desejo profundamente pessoal.
Porque eu bem sei que não é isso que se espera de uma professora como ela. Estamos, afinal, falando de uma categoria que sempre está à beira do esgotamento físico e mental, obrigada a aceitar um volume de trabalho desumano e pressões de todos os lados, apenas para conseguir sobreviver. E que é desvalorizada brutalmente não só com salários baixos, mas também com a imagem de uma hierarquia acadêmica
que muitas vezes nos induz a pensar que a sala de aula das escolas públicas é um ambiente destinado aos menos qualificados
, e que aquilo que os pesquisadores mais talentosos deveriam fazer é, basicamente, tentar escapar desse lugar.
Pois Luana faz o contrário disso e, com seu gesto acostumado a remar contra a maré, constrói pontes pelas quais de fato muito pouca gente tem passado. Estudiosa séria e integrante de sólidos grupos de pesquisa, ela dá conta de uma bibliografia teórica refinada e atual; ao mesmo tempo, porém, mantém seu interesse apaixonado por sua sala de aula, percebida por ela como um lugar complexo, potente e fascinante.
Tentando dar conta desse fascínio, aliás, é que ela começou a escrever sobre o seu dia a dia na escola – inclusive nas redes sociais. Ali, onde outros contam de viagens e praias, publicam fotos de gatinhos ou só compartilham textos supostamente sofisticados, ela faz esta coisa inesperada: mergulha na sala de aula de escolas públicas usando um fluente e originalíssimo discurso autoetnobiográfico e nos mostra que lá, mesmo no meio de todas as precariedades e apertos, há um grande tesouro sendo encontrado dia após dia, e há uma travessia preciosa que está sendo feita. E que é importante que a gente veja isso.
É assim quando nos conta do engajamento de seus alunos ao produzirem um vídeo inspirado na letra de um funk que luta contra a estigmatização da pobreza. É assim quando inventa de refazer a rota entre a África e o Brasil noutras bases, para outras descobertas, promovendo uma correspondência desbravadora entre seus alunos da periferia de Ribeirão das Neves/MG e outro grupo de alunos de Moçambique. É assim quando se articula a colegas de trabalho e a uma igreja para conseguir receber ao vivo uma mulher indígena no maior espaço disponível naquela comunidade. É assim quando mostra o impacto que teve, para seus alunos, a descoberta de escritores negros e africanos capazes de revirar pelo avesso longas omissões e estereótipos com que nos acostumamos a viver inclusive nos ambientes escolares. É assim que se contrapõe lucidamente a uma educação envenenada por preconceitos
que tem feito um mal secular a negros e brancos, que acabam se vendo, então, pisando sobre um chão falso e separados por um abismo que nos afunda em solidões e medos que precisam urgentemente ser ultrapassados, se quisermos de fato viver numa democracia que mereça esse nome.
É assim, também, quando ela convida suas alunas e seus alunos a ler escritoras como Carolina Maria de Jesus ou Chimamanda Ngozi Adichie, oferecendo exemplo e inspiração para que mais vozes como as delas venham à tona. É assim que oferece, na prática, um contraponto poderoso a uma cultura machista que, nas suas próprias palavras, inibe as meninas e desumaniza os meninos. É assim quando liga esse repertório à última notícia sobre feminicídio e trabalha, de fato, para que seus alunos se engajem na luta por outro padrão de relação entre homens e mulheres.
É assim, ainda, quando convida seus alunos a meditar e a escrever diários e cartas: ela sabe que é possível e necessário ativar, em cada um, certo espaço interior para o contato consigo mesmo, e que é a partir desse contato que as melhores relações podem acontecer e transbordar de verdade, para além do seu tempo e seu lugar de origem. É assim, também, quando os estimula a escrever para seus parentes, escrever para sua professora, bancarem a aventura impressionante que é se despirem da capa mais superficial e se arriscarem em outro nível de comunicação. É assim quando escreve para sua irmã morta há cinco anos, reafirmando com seu impulso muito de um voto de fé e de uma prática de manter o pé no chão e, ao mesmo tempo, de fato cruzar distâncias inimagináveis.
Há algo, aliás, que me tocou muito em especial, nessa carta: tão tremendamente íntima, foi publicada para que todos pudessem vê-la; tão atravessada por questões públicas, manteve-se delicada e comovente como a conversa mais pessoal.
De certa forma, foi como se a Luana nos dissesse: há aqui uma chance de irmandade entre nós que vai além dos laços de sangue e das meras vizinhanças; há aqui um gesto de amor e um voto de confiança que transborda sua origem.
Eu, aqui, do meu lado, só posso abraçar esta irmã que a vida me trouxe e desejar que esta experiência de enfrentamento e entusiasmo que ela divide com a gente continue afetando minha vida e meu olhar, assim como os de tantos que têm estado com ela na construção de mais pontes sobre os abismos. Precisamos disso como de um dia de Sol, como de sementes já indestrutíveis porque cresceram e se fortaleceram mais do que costumamos perceber. Para muito além de todos os perigos de agora, para muito além de todo aparente risco de destruição.
Cristiane Brasileiro
Doutora em Letras pela PUC-Rio
Coordenadora da Área de Linguagens & Códigos da Fundação CECIERJ
Introdução
Para quem acredita em destino, o meu se mostrou cedo demais. Quando criança, não conseguia entender o meu interesse pelos livros didáticos e pelos cadernos do Dennis e da Miriam, meus irmãos mais velhos. Sem falar da minha paixão pelas letras: cursiva ou de forma, não importava. Sempre que tinha exercícios de uma colega em mãos, fixava o meu olhar na maneira como ela escrevia. Aos dez anos, alfabetizei a pequena Bárbara, que, na época, estava com cinco.
Atenta ao meu interesse precoce pela docência, dona Nelita, minha mãe, disse que não gostaria de ter uma filha professora. Na verdade, ela não queria que eu experimentasse as dificuldades vividas por boa parte do professorado deste país: os baixos salários, as condições degradantes de trabalho e o desprestígio da profissão.
Certa vez, ao passar em frente a uma passeata de professoras no centro de Belo Horizonte, minha mãe me segurou pelo braço, apontou o dedo na direção das mulheres que marchavam