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Arte com defeito: Mais Histórias, Vozes e Conversas de Café
Arte com defeito: Mais Histórias, Vozes e Conversas de Café
Arte com defeito: Mais Histórias, Vozes e Conversas de Café
E-book194 páginas2 horas

Arte com defeito: Mais Histórias, Vozes e Conversas de Café

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Sobre este e-book

Histórias que surgem, vozes que se ouvem e conversas ocorridas no café.
IdiomaPortuguês
EditoraM-Y Books
Data de lançamento10 de jul. de 2021
ISBN9781526046673
Arte com defeito: Mais Histórias, Vozes e Conversas de Café

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    Arte com defeito - Nelson Santrim

    NELSON

    SANTRIM

    ARTE COM DEFEITO

    (MAIS HISTÓRIAS, VOZES e CONVERSAS DE CAFÉ)

    O Meu Amigo

    Houve um tempo em que fomos melhores amigos, houve um tempo em que ficámos sem nos darmos e depois perdemos o contacto. Com a entrada na faculdade, cada um acabou por seguir o seu caminho.

    Ele teve muitas namoradas e eu ficava a ver. Às vezes ele e as namoradas, uma de cada vez, à vez, deixavam-me servir de velinha. Acompanhava-os e convivíamos os três. Tinha uma admiração por ele, por ser tão hábil com as raparigas. Não sei se chegava a invejá-lo, apenas gostaria de ter o à-vontade e a facilidade dele em fazer-se e em falar com elas.

    Eu era bom aluno e ele assim-assim ou mais ou menos. Poucas vezes estudámos juntos. Eu era de uma família de classe média, na altura. A minha mãe era professora e o meu pai um pequeno comerciante. Ele era de classe alta. O pai dele era engenheiro e a mãe fazia qualquer coisa. Tinham muito dinheiro. Ele é filho único e eu tenho duas irmãs.

    O meu amigo dizia-me que eu tinha sorte em ter irmãs, porque assim podia conhecer as amigas delas, mas ele estava a ser irrealista, porque as minhas irmãs eram mais velhas do que eu e nem todas as suas amigas, quaisquer raparigas que fossem, se iriam interessar por um miúdo mais novo. Acho até que as raparigas, nessas idades, até preferem sempre rapazes mais velhos. Se elas nos acham imaturos, sempre ou em algumas idades, o que não achariam de um rapaz mais novo!

    Uma vez safei o meu amigo de um imbróglio. Ele tinha sido chamado ao gabinete do diretor da escola por haver suspeitas, ou comentários, de ele andar a fumar ganza dentro do espaço escolar e estava de sobreaviso de que poderia sofrer consequências. Nisto, num intervalo, estávamos a jogar à bola e num chuto mal dado ele quebrou a janela de uma sala de aula. Os vidros a despedaçarem fizeram um estardalhaço enorme. Fui eu quem o safei dizendo que tinha sido eu a fazer o remate enviesado.

    Nunca recebi um agradecimento da sua parte por ter tomado responsabilidade por algo que não fiz e o ter safado por aquela vez, mas não tomei a mal. Continuámos amigos e, quando chegou a época de exames de acesso à faculdade, chegámos a estudar juntos nalgumas ocasiões. Tentei dar-lhe uma ajuda. Nessa altura ele tentou recompensar-me oferecendo-me charros, mas eu não quis experimentar.

    Quando entrei na faculdade que pretendia, na primeira opção, fiquei animado, mas ao saber que ele não tinha entrado lamentei. Felizmente, entrou na segunda fase num outro curso da mesma faculdade. Ele integrou-se facilmente na vida académica, na parte lúdica e relaxada digo, e eu optei por dar mais atenção ao estudo. Completei o curso em cinco anos, como era requerido na altura para a licenciatura, e depois segui para o mestrado e para o doutoramento. Soube que ele desistira no primeiro ano e que fora trabalhar com o pai. O pai tinha várias empresas no ramo dos têxteis e isso até permitiu ao meu amigo viajar bastante pelo mundo inteiro, alargando e intensificando os negócios da família.

    Agora ele é um empresário com alguma visibilidade na imprensa. O casamento com uma atriz também o tornou numa presença nas revistas cor-de-rosa. Fala-se de casos extraconjugais, porque afinal ele não mudou assim tanto desde os tempos de escola, quando mudava todas as semanas de namorada.

    Nunca mais falei com ele. Para mim ele era um bom amigo e uma referência, mas talvez isso não fosse recíproco. Tenho uma vida estável, mas não tenho amigos. Às vezes sinto falta do amigo que conheci. A figura pública em que ele se tornou não me fascina tanto. Não casei nem me dou com ninguém. Sinto falta dos tempos em que andávamos na escola e éramos amigos.

    Arte com Defeito

    - Sabes que estão a censurar as músicas do Michael Jackson?

    - Ouvi dizer. Por causa das acusações de pedofilia, veiculadas por um recente documentário sobre o tema.

    - É, creio que foi no Canadá que estações de rádio procederam à censura.

    - É quase como que um estalinismo.

    - É um neo-estalinismo a abater-se sobre as artes, nomeadamente na música.

    - Mas a arte vai para além da pessoa do artista.

    - Também penso assim. A arte faz parte da História, mas, como José Estaline apagava personagens de fotografias históricas, agora também se quer apagar artistas da música e outras artes.

    - Sim, o Kevin Spacey é outro caso.

    - Acusado de abuso sexual de um jovem chegaram ao ponto de refilmar um filme onde ele era personagem central.

    - E no «House of Cards» ouvi dizer que querem filmar a série toda de novo, mas sem ele.

    - É estalinismo.

    - Há que separar as águas e fazer uma distinção entre o criador e a criação.

    - Eu concordo contigo, mas anda aí uma virose de puritanismo extremado. Não digo que não fizeram coisas horrendas, não. Mas...

    - Se analisares a História encontras mais casos de artistas com defeito.

    - E é como se a sua arte fosse por inerência defeituosa.

    - Sempre ouvi os entendidos da crítica literária elogiarem, por exemplo, o Louis-Ferdinand Céline, que era um grande escritor embora fosse simpatizante dos nazis.

    - E os nazis apreciavam grandes obras de arte e, sendo eles monstros, a grande arte que eles apreciavam nunca deixou de ser grande.

    - Isso é um pouco diferente.

    - Mas é uma forma de dizer que uma coisa é a arte e outra as pessoas que a produzem ou que a admiram.

    - Eu sempre tive uma admiração pela obra do Woody Allen, sentia-me atraído pelos seus filmes, e no entanto…

    - A Mia Farrow disse coisas do pior dele. Acusações graves.

    - Sim, e ele vai e até casa com a filha adotiva de ambos.

    - Mas em que ficamos perante a sua obra?

    - Ele agora até caiu um pouco em desgraça com um seriado que resultou num flop.

    - Sim, constou-me.

    - Também há o caso de outro realizador: o Roman Polanski.

    - Esse também se envolveu num grande imbróglio.

    - Aparentemente a violação de uma menor na altura dos factos.

    - Parece-me que sim. E tinha havido um acontecimento macabro com a mulher dele.

    - Foi assassinada numa trama relacionada com algo satânico.

    - Dizem que foi a consequência do seu filme «A Semente do Diabo».

    - O Charles Manson não esteve associado ao crime?

    - Para ser sincero, não te sei dizer.

    - O Polanski refugiou-se em França, porque na Europa procura-se ter outra perspetiva sobre certos comportamentos…

    - … que nos Estados Unidos não são digeríveis de todo.

    - Somos mais permissivos?

    - Não sei ao certo.

    - E em que ficamos? Achas que devemos deixar de ouvir as músicas do Michael Jackson? Ou deixar de ver o filme «American Beauty», por exemplo?

    - Acho que o mundo se vai dividir entre os pró e os contra. Cada um que escolha.

    - Então vamos ter duas histórias da música e do cinema, por exemplo. A não ser que algo seja imposto de forma radical e temo que venha a ser de facto uma espécie de estalinização da nossa cultura.

    - Isso serão como que apagões na história da nossa cultura universal.

    Regionalização

    - Leste a opinião do Tavares?

    - Qual deles?

    - O João Miguel Tavares, no Público.

    - Sim, li. Acho que tem razão acerca da poesia do amor.

    - Na mosca. A poesia é o ócio de homens efeminados ou desvairados. E também de uma qualquer vaca com alma de cabra, usando de uma expressão do Cela.

    - Camilo José Cela, escritor.

    - E poeta também. Vejo que tens as tuas leituras.

    - Sim, leio de tudo um pouco. Menos poesia, claro.

    - Claro.

    - Nota que o jornal Público de hoje não faz referência ao Dia Mundial da Poesia.

    - É um jornal sério e vanguardista. É para «cidadões» do mundo, como diria o outro.

    - Vê lá se o Nuno Pacheco te dá uma trepa.

    - De fato ou de facto?

    - Talvez nu e com argumentos.

    - A nu está a fragilidade das populações face às alterações climáticas.

    - É verdade, o que aconteceu em África é alarmante. Há ainda um risco muito grande na Beira, em Moçambique.

    - Estou ao corrente.

    - Mas olha, ontem ouvi um debate na TSF.

    - Já estás a virar o assunto. As tragédias acabam por nos cansar. Ou habituamo-nos a elas.

    - Foi interessante, é o que te digo. Foi sobre a regionalização.

    - E então? És a favor ou contra?

    - Estive só a ouvir os argumentos.

    - Ai foi?

    - Achei piada a um lisboeta que ligou para lá e acusou o Pedro Marques Lopes de falar de futebol muitas vezes, nomeadamente em prol do F.C. Porto.

    - E depois dizem que não há uma futebolização do País.

    - Sim, para alguns a regionalização é uma conspiração do Norte, melhor dizendo, de uns oportunistas do Porto que querem dividir o País.

    - Têm medo que surja uma nova classe política que seja o cruzamento entre um Pinto da Costa e um Alberto João Jardim.

    - Têm medo e querem criar o medo no cidadão comum.

    - Acredito que um novo referendo desse um novo Não à regionalização.

    - Dizem que há o perigo de divisão e que por isso é deixar tudo como está que está bem.

    - Achas mesmo que está bem?

    - Claro que não. Vê só o argumento da divisão: somos um País sem divisões artificiais e não há por que criá-las.

    - O País é pequeno e unido. Uma só língua…

    - Aí é que te enganas. Há o Mirandês, um dialeto asturo-leonês.

    - Vejo que consultas o Wikipédia.

    - Goza à vontade. Diz-me só que sentido faz uma união em moldes que perpetuam desigualdades?

    - É óbvio que é preciso fazer alguma coisa, uma descentralização efetiva, mas não sei se será a regionalização.

    - Dizem que vai haver mais corrupção, insistindo que vai dividir os Portugueses.

    - Fazem-se valer do medo para equacionar Portexits e coisas semelhantes.

    - Achas que o Nortexit poderia acontecer?

    - Claro que não. Primeiro somos «cidadões» do mundo, depois somos portugueses e só depois é que somos de uma região.

    - Vê só o impasse que se está a verificar no Reino Unido.

    - Não há perigo de haver saídas, no sentido de uma fragmentação de Portugal em micro-estados, estados regionais. O Reino Unido é outra história.

    - O Farage farejou a oportunidade de fazer estragos e fê-los.

    - Bem pode limpar as mãos à parede.

    - É incrível o mau exemplo que a classe política inglesa está a dar.

    - Venceram o referendo do Brexit apostando no medo.

    - E o Não venceria novamente o referendo pela regionalização também pelo medo.

    - Como dizia Roosevelt, «só devemos ter medo do próprio medo».

    - O medo é uma manipulação. É usado para impedir as pessoas de pensar e de se abrirem a outros caminhos que concretizem novas soluções.

    - Isso é assustador.

    A Felicidade no Quotidiano

    Sei que não sou infeliz. Não tenho o máximo de felicidade na minha vida presente, mas sinto-me realizada no final de cada dia. O que seria a felicidade plena? E qual seria a sua duração? Dizem que a felicidade é feita de momentos e então decidi-me a aplicar isso ao meu quotidiano, como se cada dia, por mais banal que parecesse ser, estivesse repleto de situações, quase banais, em que se exprime alguma forma de felicidade, mesmo que de pequena felicidade.

    Hoje creio que tive um dia feliz. Acordei e fiquei satisfeita por estar um dia de sol. Sei que é nocivo chover de menos e que a chuva é precisa, mas andar ao sol faz-me tão bem que esqueço que têm de haver dias chuvosos. Fiquei feliz com a luminosidade que augurava um dia com muita clareza e limpidez.

    Comecei por garantir que a casa ia ficar arrumada e fazer as tarefas para tudo ficar certinho deixou-me com uma sensação de dever cumprido. Fiquei a sentir-me bem. Orientei o meu filho para o levar à escola. Não é fácil ser mãe solteira de um pré-adolescente de doze anos.

    No carro fui a ouvir a minha estação de rádio preferida e quase esqueci o trânsito calamitoso. Ri-me à gargalhada com o que diziam na rádio. O meu filho também, e por isso foi uma felicidade compartilhada. Senti-me bem, quase esquecendo que estava no meio de um trânsito caótico. Tudo decorreu quase sem stresse, como se a vida corresse mais leve naquele momento em que a companhia da rádio fazia tudo parecer mais fácil.

    Cheguei às imediações da repartição dentro do meu horário habitual e ainda tive tempo para ir tomar um café. Trabalho nas Finanças. Quando entrei no café dei os bons-dias e foi-me retribuído o cumprimento e isso fez-me sentir muito bem. Um senhor idoso agarrara o jornal do dia e lia-o concentrado, enquanto no televisor passava um programa informativo da manhã. Pessoas em redor tinham calmas conversas matinais.

    Na repartição os colegas vieram com as piadas do costume. Ninguém acreditaria se contasse o que se passa nos bastidores. Há um clima de boa disposição permanente. É claro que as minhas colegas podem ter os seus problemas e acontece por vezes escolherem-me para confidente. Contam-me o que as vai preocupando e fico feliz quando consigo dar uma linha de orientação a alguma delas e elas seguem o meu conselho e conseguem resolver

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