A cadeia secreta: Diderot e o romance filosófico
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A cadeia secreta - Franklin de Mattos
A cadeia secreta
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Conselho Editorial Acadêmico
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Newton La Scala Júnior
Pedro Angelo Pagni
Renata Junqueira de Souza
Rosa Maria Feiteiro Cavalari
Editores-Adjuntos
Anderson Nobara
Leandro Rodrigues
Franklin de Mattos
A cadeia secreta
Diderot e o romance filosófico
Prefácio de Marilena Chaui
À memória de Amilcar de Castro
© 2018 Editora UNESP
Direito de publicação reservados à:
Fundação Editora da Unesp (FEU)
Praça da Sé, 108
01001-900 – São Paulo – SP
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD
Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior – CRB-8/9949
Índice para catálogo sistemático:
1. Filosofia francesa 194
2. Filosofia francesa 1(44)
Editora Afiliada:
Sumário
Prefácio
Advertência
CAPÍTULO 1
Três romancistas tardios
CAPÍTULO 2
A cadeia secreta
CAPÍTULO 3
Uma alegoria licenciosa das Luzes
CAPÍTULO 4
Moral em exercícios
CAPÍTULO 5
Abismos do Prefácio-anexo
CAPÍTULO 6
O paradoxo do romance
CAPÍTULO 7
O desafio de La Pommeraye
Referências
Prefácio
Quem poderia imaginar uma exposição sobre a natureza da alma como energia material e uma crítica ao dualismo cartesiano na boca da favorita de um sultão? Ou quem imaginaria que de um sonho desse sultão viesse o elogio da ciência experimental contra a esterilidade das hipóteses metafísicas, isto é, o elogio da Enciclopédia? Quem pensaria em expor uma filosofia materialista determinista contando uma intriga amorosa, provocada pelo orgulho ferido de uma mulher?
Numa escrita límpida, concisa e precisa, este livro nos oferece uma fina interpretação do nascimento de um gênero literário paradoxal, inventado pelos filósofos da Ilustração: o romance filosófico.
Por que paradoxal? Porque pretende conciliar numa articulação original teoria e eloquência, verdade e ilusão, o homem de gênio
, dotado de autodomínio racional, e o homem sensível
, que vive à mercê do diafragma
. Paradoxal também porque o romancista, enquanto filósofo, quer ser acreditado como verdadeiro, mas, enquanto poeta-dramaturgo, quer encantar, interessar, comover, persuadir, entrar furtivamente na alma
do leitor. Paradoxal, enfim, porque, para romper com os cânones aristotélicos, o novo gênero precisa exercitá-los dialeticamente a fim de que, fazendo falar as paixões, leve a poesia à mais extrema singularidade e a história à mais alta universalidade, narrando, ambas, a natureza humana. Desses paradoxos, Franklin de Mattos nos apresenta um de seus grandes teóricos e praticantes: Diderot.
O título, A cadeia secreta, é arguto, pois opera em dois registros simultâneos: é a chave para a leitura da obra literária de Diderot – o materialismo determinista ou a articulação entre necessidade natural e necessidade moral como fundamento da articulação entre filosofia e literatura; mas é também o que estrutura os ensaios de Franklin de Mattos sobre o autor de Jacques, o fatalista.
De fato, este livro se inicia com o exame da atitude ambígua de Diderot e seus contemporâneos diante do romance (capítulo 1), passa à interpretação dos modos de articulação entre filosofia e romance (capítulos 2 e 3) até chegar ao núcleo teórico do novo gênero literário ou da ficção romanesca (capítulos 4, 5 e 6) para, finalmente, explicitar o sentido da cadeia secreta como destino, fatalidade, necessidade e alcançar o neoespinosismo de Diderot (capítulo 7), ou a combinação da ordenação majestosa
da Ética – unidade, unicidade e imanência da substância – com o empirismo materialista – a unidade da matéria móvel-movente e sensível, que produz a multiplicidade dos seres numa cadeia causal contínua e necessária.
A trama urdida pelo percurso de Franklin de Mattos nos faz ver como e por que os Ilustrados aderem ao novo gênero que, de algo frívolo, grosseiro e imoral, torna-se crítica dos costumes sociais e políticos, discurso edificante que coloca as paixões a serviço do bem
para expor a identidade entre felicidade e virtude. Mostra-nos, em particular, como Diderot o realiza, ora se aproximando ora se afastando de seus contemporâneos. Do ponto de vista do conteúdo, Diderot se distancia da tradição dos moralistas franceses (ou a moral em máximas) para praticar o romance como moral em ação
, em que a equivalência de emoções deve produzir a equivalência de condutas
. Do ponto de vista formal, articula realidade e ficção graças ao emprego da polifonia de vozes e de recursos dramáticos para obter a identificação do leitor com as personagens e ao uso abundante de circunstâncias comuns para arquitetar circunstâncias extraordinárias, obtendo verossimilhança ao alicerçar o inverossímil no cotidiano, no mundo em que vivemos
, para fazer ver como o acidental é determinado pelo necessário e, sobretudo, para oferecer a universalidade por meio da singularidade, de sorte que o romance é superior à história, porque esta pinta os excepcionais
e aquele todo o coração humano
.
Vistos sob a perspectiva dessa urdidura, os capítulos 4, 5 e 6, à medida que apresentam Diderot como teórico do romance filosófico, organizam o modo de exposição dos capítulos que oferecem Diderot como romancista; os três primeiros capítulos preparam o leitor para compreender a teoria literária do autor de A religiosa, e o último é a consecução, agora compreendida, da teoria do novo gênero. Dessa maneira, para expor a cadeia secreta concebida pelo filósofo romancista, os ensaios formam uma cadeia causal invisível, que se inicia indo dos efeitos às causas (dos romances à teoria) e termina indo das causas aos efeitos (da teoria aos romances). Graças a essa fina elaboração reflexiva, vemos aparecer as ideias de matéria sensível (ou a unidade metafísica da cadeia dos seres) e de causalidade necessária como operadores filosóficos secretos tanto do conteúdo como da forma dos romances.
Esse procedimento permite a Franklin de Mattos aprofundar a articulação entre metafísica e literatura e, debruçando-se sobre Jacques, o fatalista e seu amo, oferecer uma interpretação nova para o célebre episódio de La Pommeraye. A análise tem como referência o necessitarismo espinosano e a afirmação do capitão de Jacques de que caminhamos na noite
, pois em nossa finitude ignoramos todos os anéis da cadeia de seres e acontecimentos que nos determinam. Ora, em seu orgulho, madame de La Pommeraye não só age como se possuísse tal conhecimento, mas ainda pretende encarnar o rigor do destino
. Necessariamente fracassa. Torna-se, na feliz expressão de Franklin de Mattos, a encarnação malograda do destino
. Porém, não é nova apenas essa interpretação do sentido moral e filosófico da famosa personagem, também o é a do significado da própria empreitada de Diderot, filósofo dos paradoxos: quem poderia imaginar, indaga Mattos, que o determinismo universal e a ilusão da liberdade pudessem ser expressos pelo mais caprichoso e mais livre dos gêneros literários, o romance?
Deixemos ao leitor o prazer de acompanhar as peripécias deste belo livro, que nos fala de um tempo em que a filosofia, na tradição de Sócrates e Montaigne, era o prazer da conversação. Diderot era homem da conversação. Pensava que, na cadeia única dos seres, a linguagem, energia material, nos dá o acesso ao espírito, nosso e alheio. Num momento fulgurante, analisando os procedimentos da fatura de O sobrinho de Rameau, Franklin de Mattos escreve: jamais o universal brilhou tanto em algo tão trivial quanto um bate-papo de boteco
.
No entanto, justamente ao falar de um outro tempo, este livro nos dá a pensar sobre o nosso. As perguntas que fizemos ao iniciar só parecem surpreendentes depois que a filosofia, nascida como conversação, virou profissão, tornou-se provinciana, isto é, universitária, e julgou garantir sua própria relevância apresentando as credenciais de uma disciplina particular, claramente distanciada da leviandade
literária, dotada de normas de boa conduta intelectual que, permitindo-lhe a ilusão de domesticar os paradoxos, asseguram-lhe seriedade
, a qual, quando vista bem de perto, nada mais é senão sua existência pesadamente prosaica, incapaz da leveza que transfigura o trivial e alcança o universal sem sacrificar o singular.
Marilena Chaui
Advertência
Os ensaios aqui reunidos foram escritos de modo independente, em circunstâncias as mais diversas,¹ mas em vista de um livro futuro. Os primeiros apontamentos sobre A religiosa datam de 1992, o último texto, que trata de Jacques, o fatalista, é de 2001.
Sou do tempo em que se devia escolher entre experimentalismo e realismo, e meu interesse por Diderot certamente se explica pelo desejo de recusar a alternativa. Como o leitor verá, ele foi um dos fundadores do realismo moderno e, ao mesmo tempo, um inquieto experimentador, sempre em busca de novas formas.
Daí a aparente dispersão de sua obra em geral e de seus romances em particular. Este livro procura sugerir que, por trás da desordem, há uma unidade de preocupações. Ou uma cadeia secreta, metáfora que volta e meia aparece nos melhores escritores das Luzes e que se aplica indistintamente à natureza, à linguagem, à literatura e até mesmo à arte da conversação.
Franklin de Mattos
São Paulo, novembro de 2003
_______________
1 O texto A cadeia secreta
foi publicado no Jornal de Resenhas da Folha de S. Paulo, n.68, 11 nov. 2000, como resenha para as Obras I e II de Denis Diderot (tradução, organização e notas de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2000); A alegoria licenciosa das Luzes
é uma versão ligeiramente modificada de "Livre gozo e livre exame. Ensaio sobre Les Bijoux indiscrets de Diderot", publicada em Libertinos libertários, obra organizada por Adauto Novaes (São Paulo: Companhia das Letras, 1995); "Os abismos do Prefácio-anexo" é a versão revisada da comunicação apresentada no VII Encontro Nacional de Pós-Graduação em Filosofia, realizado em Caxambu (MG), em setembro de 1998, e publicada em Rapsódia – Almanaque de Filosofia e Arte (n.1, p.7-16, 2001); O paradoxo do romance
é uma versão ampliada de "O corpo enclausurado – Sobre A religiosa de Diderot", presente na edição de O homem-máquina, organizado por Adauto Novaes (São Paulo: Companhia das Letras, 2003). Os demais ensaios são inéditos. O desafio de madame de la Pommeraye
serviu de base à prova didática do concurso de titularidade em Filosofia, realizado em 17 de dezembro de 2001, cuja banca era formada por Benedito Nunes, Bento Prado Jr., Franklin Leopoldo e Silva, Jacyntho Lins Brandão e Wander Melo Miranda.
CAPÍTULO 1
Três romancistas tardios
Voltaire, Rousseau, Diderot
Imoral, ignóbil, inverossímil
Georges May examinou certa vez as causas e os efeitos do desprestígio do romance nos séculos XVII e XVIII. As reservas então formuladas eram fundamentalmente de dois tipos: estéticas e morais. A acusação de imoralismo transparece na suspeita de que o romance constitui uma ameaça para os costumes, e deve-se principalmente à predominância que confere ao tema do amor.¹ Essa ideia surge, por exemplo, em Diderot, que associa o gênero a um passatempo ilícito (perigoso para os costumes
, dirá o autor do Elogio de Richardson). Basta lembrar o apelo dirigido à sua leitora pelo narrador de Les Bijoux indiscrets:
Zima, aproveita o momento. O agá Narkis entretém tua mãe, e tua governanta vigia no terraço o retorno de teu pai: pega, lê, não temas nada. Mas ainda que se surpreendessem Les Bijoux indiscrets atrás de teu toucador, acreditas que se espantariam? Não, Zima, não; sabe-se que o Sofá, o Tanzai e as Confissões já estiveram embaixo de teu travesseiro. Hesitas ainda? (Diderot, 1951, p.1)
É bem verdade que, segundo essa passagem, o romance não é propriamente perigoso para os costumes
, mas uma espécie de retrato da dissolução circundante e, assim, algo meio inócuo. Pouco importa: o que nos interessa é que o satanismo do narrador faz da leitura uma atividade, por assim dizer, pecaminosa.
Como se verá em seguida, o argumento moral já fora invocado contra o teatro no século XVII e, a longo prazo, inutilmente, pois as reputações de Corneille, Racine e Molière sobreviveram à crítica sem maiores arranhões. Mas o romance – ao contrário do teatro, cujo prestígio datava da Antiguidade – era sujeito a outro tipo de restrição: a estética. Assim, seus inimigos não se cansam de repetir que ele corrompe o gosto
. Em princípio, a acusação se deve