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O Bolivarianismo: Culto e Manipulação Política na Venezuela da Era Chávez (1999-2013)
O Bolivarianismo: Culto e Manipulação Política na Venezuela da Era Chávez (1999-2013)
O Bolivarianismo: Culto e Manipulação Política na Venezuela da Era Chávez (1999-2013)
E-book419 páginas5 horas

O Bolivarianismo: Culto e Manipulação Política na Venezuela da Era Chávez (1999-2013)

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Sobre este e-book

Quem foi Hugo Chávez? Por que falava tanto em Simón Bolívar? Por que angariou tanta popularidade? Seu jeito excêntrico o definia como líder político? Estes questionamentos de leitores curiosos podem começar a ser respondidos neste livro.
Enquanto figura política, costumava despertar extremos: era alvo tanto de críticas vorazes quanto de defesas efusivas. A complexidade em analisar a era Chávez na Venezuela aumentou porque o principal sustentáculo simbólico de seu regime foi o culto a Simón Bolívar, herói da Independência venezuelana que ao longo do tempo foi receptível a inúmeras interpretações. O culto a Bolívar, denominado de Bolivarianismo, se converteu no principal instrumento de manipulação das massas na Venezuela. Chávez soube fazer uso deste culto com uma intensidade poucas vezes vista na história. Esta busca pela identificação de líderes políticos com Bolívar, por meio do uso simbólico de sua espada, os tornava mais capaz de imitá-lo. Com Chávez isso se repetiu. Eram constantes suas aparições empunhando a espada de Bolívar. Ficava em pé apontando-a para o céu diante de uma multidão de fervorosos apoiadores. Em seus últimos dias de vida, a espada de Bolívar também lhe foi útil, servia de suporte ao chão para manter a postura menos arqueada, pois já estava abatido em virtude do avanço do câncer. Compreender o ?Bolívar de Chávez? é essencial para saber como este dirigente conseguiu vencer todas as eleições presidenciais que disputou. Tratado como mais um líder latino-americano excêntrico, este tipo de visão impede de ver a complexidade do processo. Convido, portanto, a ler este livro, escrito com carinho, visão crítica e ampla pesquisa.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento9 de set. de 2021
ISBN9786525210247
O Bolivarianismo: Culto e Manipulação Política na Venezuela da Era Chávez (1999-2013)

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    O Bolivarianismo - Anatólio Medeiros Arce

    CAPÍTULO 1. BOLÍVAR E O BOLIVARIANISMO NA HISTÓRIA E NA HISTORIOGRAFIA DA VENEZUELA

    1.1 – SIMÓN BOLÍVAR E A INDEPENDÊNCIA DA VENEZUELA

    Nascido em 24 de julho de 1783, no seio de uma família aristocrática de Caracas⁴, Simón Bolívar⁵ reunia as características suficientes para colocá-lo no patamar de membro da elite criolla, na época o grupo social economicamente dominante nas colônias espanholas da América. De acordo com John Lynch, a aristocracia da América Hispânica era constituída pelos donos das terras e dos escravos, além de serem os comandantes das milícias coloniais em suas respectivas localidades⁶. Eles estavam no topo da estrutura social daquele período.

    A família Bolívar era uma das mais ricas e proeminentes de Caracas há algumas gerações. Conforme destacam alguns autores, ao ficar órfão de pai e mãe aos nove anos de idade, o menino Simón herdou muitas propriedades. Estima-se que ele e seu irmão, Juan Vicente, herdaram dos pais o equivalente a US$ 40 milhões⁷ em patrimônio líquido⁸. Simón também foi incluído como herdeiro de seu tio, José Félix Aristigueta, que era padre e o havia batizado⁹.

    Assim como a maioria dos jovens do sexo masculino da elite criolla, recebeu formação intelectual por meio de tutores (Simón Rodríguez e Andrés Bello). Posteriormente, mais precisamente em 1799, foi enviado à Metrópole, acompanhado pelos tios Esteban e Pedro Palácios, a fim de ‘aprimorar os conhecimentos’. Para Lynch (2006), no velho mundo, Bolívar pôde adquirir os referenciais e a experiência necessárias ao papel político que desempenharia após 1810¹⁰.

    É fato que estes requisitos não fariam de Simón alguém dotado inevitavelmente da missão de comandar as batalhas durante o processo de Independência dos territórios que atualmente correspondem à Colômbia, Venezuela, Equador, Peru, Bolívia e Panamá. Todavia, as possibilidades oferecidas em razão de ter nascido na proeminente família Bolívar, lhe forneceria as bases, em seu sentido político, econômico e social, para se tornar uma figura de destaque naquele processo.

    Além disso, o momento político vivido pelas colônias americanas era propício a figuras com posturas e perfis iguais a de Simón Bolívar. O questionamento em relação à Metrópole, no tocante às medidas econômicas consideradas arbitrárias pela elite criolla, vinha crescendo ao longo do século XVIII e se acentuou no começo do XIX. O cenário de descontentamento se somou à invasão da península ibérica pelas tropas de Napoleão em 1808 e a consequente deposição do Rei Carlos IV e de seu herdeiro Fernando VII.

    De 1809 a 1811, foram instituídas as Juntas governamentais em praticamente todos os domínios espanhóis na América, ao abarcar desde o México até Buenos Aires¹¹. Todavia, a primeira ruptura ocorreu em Caracas, em razão da Venezuela ser, das colônias continentais, a que se localizava mais perto da Espanha e, portanto, recebia primeiro as notícias do que estava acontecendo na Metrópole¹². Após a invasão da península, a elite criolla da Capitania da Venezuela se reuniu no intuito de avaliar o cenário pós-destituição monárquica. Como resultado, decidiu-se depor o capitão-geral, Vicente Emparan, e formar a Junta Suprema de Caracas em 19 de abril de 1810. É importante destacar que as sucessões de eventos acontecidos na Venezuela também eram consequências de outros processos revolucionários do mundo ocidental, a exemplo das Revoluções Americana de 1776 e Francesa de 1789¹³.

    Todavia, diferente dos exemplos americano e francês que visavam uma ruptura com a ordem vigente, no caso da Venezuela, a Junta de Caracas havia sido formada com o propósito de governar a Capitania em nome do Rei Fernando VII. Seu caráter conservador e transitório era notável e nem todas as províncias da Capitania aceitaram submeter-se à Caracas, pois haviam rivalidades entre as oligarquias locais, a exemplo de Coro, Valência e Maracaibo. Para dirimir as resistências e buscar apoio internacional, a Junta enviou missões diplomáticas à Curaçao, Nova Granada, Estados Unidos e Inglaterra. A missão enviada à Londres foi chefiada pelo recém-promovido coronel Simón Bolívar¹⁴.

    A ordem emanada ao jovem coronel era clara: conseguir o apoio inglês à causa revolucionária. Porém, os objetivos não foram alcançados. Naquele momento, Londres decidiu não apoiar as revoluções nas colônias espanholas, não lhes forneceu armamentos, nem ajuda financeira, pois não era interessante se indispor com os espanhóis, ‘aliados’ na guerra contra Napoleão. O Conselho de Regência, órgão que deliberava para Fernando VII na Espanha, havia declarado as Juntas constituídas na América como rebeldes. Isso repercutiu nos meios políticos ingleses, conforme Bolívar informou em carta dirigida ao Secretário de Relações Exteriores do Governo Supremo da Venezuela, datada de 8 de setembro de 1810¹⁵.

    Contudo, a hipótese de uma ruptura política com a Metrópole estava ficando cada vez mais perceptível, não apenas em razão da ausência do Rei. Havia a incapacidade espanhola em reformar o sistema colonial. A própria Junta, inicialmente formada para garantir os direitos monárquicos, produziu um órgão com postura mais receptiva à Independência: a Sociedade Patriótica de Caracas, formada pela burguesia comercial e agrária e por representantes de outros segmentos sociais, a exemplo dos pardos¹⁶. Rapidamente a Sociedade Patriótica foi agregando uma característica de órgão dissidente em relação à Junta e ao Congresso instalado em março de 1811. Isto é, [...] logo se transformou num fórum para aqueles que, como o jovem Simón Bolívar [...] não acreditavam na capacidade da Espanha de realizar as mudanças em seu sistema colonial [...]¹⁷.

    O papel exercido pela Sociedade ganhou cada vez mais relevância em razão das indefinições políticas na Metrópole e, sobretudo, do esgotamento do sistema colonial. Foi justamente na Sociedade que Simón Bolívar começou a exercer um papel de destaque naquele processo, por meio de seus discursos, oportunidade em que defendia suas ideias. Ao se pronunciar à Sociedade Patriótica em 4 de julho de 1811, ou seja, um dia antes de promulgada a Ata da Independência, Bolívar defendeu a emancipação política, tratada naquele momento como o desejo de ser livre.

    ¿Qué nos importa que España venda a Bonaparte sus esclavos o que los conserve, si estamos resueltos a ser libres? Esas dudas son tristes efectos de las antiguas cadenas. ¡Que los grandes proyectos deben prepararse con calma! Trescientos años de calma ¿no bastan? La Junta [Sociedad] Patriótica respecta, como debe, al Congreso de la nación, pero el Congreso debe oír a la Junta [Sociedad] Patriótica, centro de luces y de todos los intereses revolucionarios¹⁸.

    A postura dos membros da Sociedade Patriótica era considerada subversiva e extremamente radical por aqueles que defendiam a pronta restauração monárquica após a expulsão dos franceses da península ibérica. Isso indicava que não havia um consenso no interior da elite dirigente acerca de pôr fim ao sistema colonial e monárquico. O caráter considerado subversivo de Bolívar e de seus colaboradores da Sociedade Patriótica tornou-se nítido quando eles apoiaram o retorno de Francisco de Miranda à Venezuela. Quando esteve em Londres em busca de apoio diplomático em 1810, Bolívar conheceu Miranda e o convenceu a retornar à Caracas para se juntar aos partidários da Independência. Naquele momento, o jovem coronel enxergava em Miranda o perfil mais adequado, em razão de seu prestígio e de sua larga experiência em guerras, batalhas e revoluções, para formar um exército capaz de enfrentar à resistência do ‘inimigo’ metropolitano.

    Entretanto, o velho combatente tinha um histórico de sérias desavenças com a justiça espanhola, que o considerava um foragido, além de ser um crítico do sistema monárquico-colonial. A presença de Miranda na Venezuela estava longe de ser unanimidade, por isso alguns membros da Junta tentaram impedir seu desembarque. Este temor era explicado pela influência que sua figura exercia em parte da elite dirigente que se mostrava favorável a causa revolucionária. O sistema colonial estava em crise, ‘acéfalo’ na península e o cenário possibilitava à elite criolla desempenhar um papel dominante no Estado e na hierarquia eclesiástica, postos até aquele momento monopolizados pelos espanhóis peninsulares¹⁹.

    A Independência, promulgada oficialmente pelo Congresso em 5 de julho de 1811, e a Constituição de dezembro do mesmo ano foram capazes de conferir bases jurídicas à recém-proclamada República. Entretanto, a Venezuela não foi pacificada. A Independência foi seguida por revezes, restaurações e longas e sangrentas batalhas, pois teve que enfrentar resistências vindas da Espanha e de parte das oligarquias locais que vislumbravam a emancipação política como desfavorável a seus interesses, por isso lutavam em favor da restauração colonial-monárquica.

    A Constituição de 1811 foi duramente criticada por duas figuras proeminentes daquele processo: Simón Bolívar e Francisco de Miranda. Ambos rechaçavam a estrutura federalista, inspirada nos Estados Unidos, ao considerá-la inadequada à Venezuela por apresentar riscos de cisão territorial. Outra questão que desencadeava a resistência da elite criolla era a pretensa igualdade, conferida pela Carta Magna, aos pardos e mestiços²⁰.

    A reação espanhola não demorou. Em 1812, foram enviadas de Porto Rico tropas à Venezuela, comandadas por Domingo Monteverde, destinadas a ajudar os combates de Coro, Maracaibo e Valencia, províncias que haviam se rebelado contra as disposições vindas de Caracas. O pretenso apoio, que os partidários da Independência julgavam possuir, ruiu rapidamente com o terremoto que atingiu Caracas no mesmo ano da chegada de Monteverde. Em uma sociedade predominantemente católica como a Venezuela daquele período, não demorou para uma parte considerável da população vislumbrar aquele abalo sísmico como um ‘castigo dos céus’ aos que estavam se insurgindo contra a monarquia-divina²¹.

    Como resposta em meio ao caos, os partidários da Independência conferiram a Francisco de Miranda o comando supremo com poderes ditatoriais. Nos primeiros meses de batalhas, Miranda e Bolívar ‘dividiram’ o protagonismo. Entretanto, a elite criolla não demonstrava confiança em Miranda, muitos consideravam o velho general arrogante, egoísta, pedante e insuportável. Sentiam indiferença por parte dele²².

    O insucesso em pacificar as províncias rebeldes acentuou o descontentamento. O episódio derradeiro foi a perda de Puerto Cabello, uma fortaleza estratégica aos revolucionários na resistência contra as tropas metropolitanas. Na ocasião, soldados que vigiavam o forte, comandados por Simón Bolívar, foram dominados de uma maneira considerada fácil. Como resposta, Miranda resolveu capitular e preparou sua saída da Venezuela em 25 de julho de 1812. A capitulação de Miranda foi considerada um ato de traição e covardia, não condizente com o prestígio que possuía na época, entendida como abandono da luta revolucionária e não como uma estratégia para voltar com mais força em momento oportuno. Conforme pontua Sherwell (2005), "All the patriots denounced Miranda for the capitulation, which meant the dissolution of the army and the abandonment of all the elements which had so raised their hopes"²³.

    Sendo assim, um grupo de militares, liderados por Simón Bolívar, se rebelaram contra Miranda e o impediram de fugir. O general foi entregue a Monteverde alguns dias após a capitulação e enviado à prisão em Cádiz, onde morreria no ‘ostracismo’ em 1816²⁴.

    Salcedo-Bastardo sintetiza esta ‘troca de comando’ da seguinte forma: "Mientras Miranda declina, se eleva Bolívar"²⁵. A deposição do velho general e seu envio à prisão na Espanha permitiu a Bolívar exercer o protagonismo daquele processo, por meio do comando das batalhas e do recrutamento de soldados entre os escravos negros, mestiços e indígenas. Para tanto, Bolívar apelava a um sentimento de ‘invencibilidade’ e de resistência àqueles que lutam em uma batalha, instando-os a serem capazes de resistir aos primeiros insucessos de uma campanha. Começava-se, portanto, a construir em torno de Bolívar uma ‘aura’ revolucionária e a imagem do homem a cavalo destinado a propagar a liberdade aos povos outrora oprimidos pela tirania colonial-monárquica, conforme expressou no Discurso de Cartagena:

    […] sólo ejércitos aguerridos son capaces de sobreponerse a los primeros infaustos sucesos de una campaña. El soldado bisoño lo cree todo perdido, desde que es derrotado una vez, porque la experiencia no le ha probado que el valor, la habilidad y la constancia corrigen la mala fortuna²⁶.

    A prisão de Miranda tornou Bolívar o comandante mais notável, alguém por quem a elite criolla venezuelana transferiria a responsabilidade pelos logros e malogros do processo. O avanço das tropas e o fascínio exercido pela forma como discursava após as batalhas contribuíram para robustecer seu protagonismo e ofereceria bases à formação do culto, construído após 1842.

    Contudo, entre 1812 e 1814, o protagonismo de Bolívar também foi viabilizado pelo suporte militar vindo de Nova Granada, oferecido pelo general Francisco de Paula Santander. Isso permitiu a retomada da luta pela Independência após os malogros sofridos nas batalhas travadas sob o comando de Miranda. Sendo assim, a imagem de que realmente Bolívar era o Libertador crescia e se tornou conhecida na Venezuela após publicar o Decreto da Guerra de Morte, de 15 de junho de 1813. Nesse documento, Bolívar foi enfático: "Nosotros somos enviados a destruir a los españoles, a proteger a los americanos y a establecer los gobiernos republicanos que formaban la Confederación de Venezuela"²⁷. Bolívar foi extremamente duro e condenou a fuzilamento todo espanhol que se recusasse a lutar a favor da Revolução.

    Em razão de vitórias obtidas nas batalhas para expulsar as tropas de Monteverde de parte da Venezuela, em 18 de outubro de 1813, Simón Bolívar foi condecorado pela municipalidade de Caracas com o título de El Libertador da Venezuela²⁸. Esta honraria o acompanharia pelo resto de sua vida e seria o título por ele mais valorizado, conforme escreveu em vários de seus escritos, em detrimento de todos os outros existentes na época. A partir desse momento, passaria a ser conhecido oficialmente como o Libertador. Nesta mesma ocasião, Bolívar foi proclamado general de todos os exércitos revolucionários.

    Em janeiro de 1814, uma Assembleia, formada às pressas em Caracas, outorgou plenos poderes ao Libertador para se contrapor a situação política do país, extremamente incerta e ainda vulnerável à resistência da ex-Metrópole²⁹. Em discurso proferido após receber o comando supremo, Bolívar enfatizou qual seria o propósito de todas aquelas sangrentas batalhas que estariam por vir: a liberdade. Reforçava-se, portanto, a imagem de Libertador ao prometer não embainhar a espada enquanto a liberdade de sua pátria não fosse conquistada. Embora estivesse recebendo o comando supremo com o título de ditador, descartou haver opressão, por mais que fosse improvável não haver. Por fim, Bolívar se colocou como um cidadão disposto a lutar em favor da liberdade³⁰.

    Começava-se, portanto, a segunda República, uma ditadura personalista e centralizada comandada por Bolívar. Contudo, o Libertador não governaria apenas por meio da força militar, também utilizaria a estratégia e o cálculo. Nos momentos complicados, recorria à falsas renúncias para que a elite criolla lhe devolvesse o comando imbuído com mais poderes. Assim construiria a ‘aura’ de ser indispensável naquele processo³¹. Esta característica o acompanhou até o final de sua vida em dezembro de 1830.

    Bolívar criticava a estrutura federalista, sob a qual havia sido estruturada a República anterior, e atribuiu sua ruína a este fato. Portanto, a segunda República deveria ser estruturada sob bases distintas, ou seja, seria uma ditadura suprema, centralizada e personalista. Contudo, a almejada pacificação do país não foi atingida com a outorga do comando supremo ao Libertador. As tropas de Monteverde haviam sido afugentadas, mas outra figura surgiu no cenário portando ódio em relação à elite criolla e simpatias monárquicas: José Tomás Boves. Conhecido como el león de los llanos, Boves era popular entre os lleneros, tinha inserção nos estratos sociais mais pobres e sabia galvanizar o ódio à elite como uma forma de se insurgir contra a República e em favor da restauração monárquica.

    As ações de Boves eram marcadas pela crueldade, pilhagem, astúcia, carisma entre os llaneiros e valentia. A historiografia venezuelana assim o constrói, sob aspectos negativos para não suplantar o culto a Bolívar, apesar de que atrocidades também eram comedidas em semelhante intensidade pelo exército do Libertador. Ou seja, não havia superioridade ‘moral’ em nenhum dos lados. Contudo, o interessante para esta análise foi que Boves e seu exército ‘popular’ impuseram resistências ao exército de Bolívar. Isso porque a questão racial pendia a favor dos monarquistas. Eles, por sua vez, conseguiam recrutar soldados a uma velocidade maior do que as tropas do Libertador, pois havia um evidente ódio racial que Bolívar precisava dirimir, caso quisesse recrutar mais soldados a fim de derrotar Boves. Conforme destaca Arana (2015) "as massas compreendiam que o mundo era injusto, que os criollos que estavam acima deles eram ricos e brancos [...]"³².

    A segunda República teve curtíssima duração. Em pouco mais de um ano foi à ruína e Simón Bolívar atribuiu sua queda à incapacidade de homens que não desejavam ser livres e preferiam a tirania e o colonialismo³³.

    Contudo, a situação chegou a este ponto não apenas em virtude das ações de Boves com seu exército truculento e devastador. Em 1814, houve uma redefinição na balança de poder na Europa, em razão da derrota de Napoleão, que provocou uma onda restauradora nas monarquias do continente. Sendo assim, Fernando VII foi reintroduzido ao trono espanhol. O absolutismo foi gradualmente reinstalado e o Rei, fortalecido politicamente e dispondo de apoio das principais potências europeias, conferiu a Pablo Morillo, seu general mais prestigiado nas guerras napoleônicas, a missão de retomar o controle metropolitano nas rebeldes colônias americanas. O general e suas tropas foram enviados à América em fevereiro de 1815 com um efetivo de 10 mil homens veteranos das batalhas contra Napoleão, para retomar o domínio colonial³⁴.

    As tropas de Pablo Morillo eram numericamente superiores. O general chegou a Venezuela em abril de 1815 e encontrou cidades dominadas pelas tropas de Boves, com o exército republicano praticamente aniquilado. Partiu para Nova Granada via Santa Marta e ocupou Bogotá em maio de 1816. As tropas pró-Independência foram derrotadas e uma parte de seus comandantes fuzilados. Outros conseguiram penas brandas em razão de lealdades antigas, ou dúbias relações com a Coroa. Um terceiro grupo, incluindo Bolívar, já havia deixado Nova Granada para reunir forças em outras localidades e retomar a luta pela Independência. No final de 1816, praticamente todo o território que compreendia o vice-reinado de Nova Granada (que abrangia Colômbia, Venezuela e Equador) estavam novamente sob o domínio da Coroa Espanhola³⁵.

    Embora tenha retomado o território dos insurgentes, Morillo esteve diante da mesma encruzilhada dos partidários da República: não conseguiu pacificar o território aparentemente dominado. Permanecia o sentimento de insatisfação com a Coroa, acentuado em razão de medidas drásticas (fuzilamentos e julgamentos apressados) que Morillo teve que tomar para restabelecer a ‘ordem monárquica’ naquela parte da América Hispânica. Contudo, a situação era instável para ambos os lados. A elite criolla parecia vislumbrar a Independência como um caminho favorável a seus interesses, porém, não estavam seguros se deveriam pagar o preço para conquistá-la.

    A retomada metropolitana convenceu Bolívar de que sem o apoio de alguma potência estrangeira, de preferência a Inglaterra, não haveria como lutar em favor da Independência. A derrota de seu exército, a guerra civil travada contra as províncias que se recusavam a acatar as ordens de Caracas, o melancólico término da segunda República e a indiferença de potências estrangeiras levaram o Libertador a se refugiar na Jamaica, ilha de domínio inglês. A escolha não foi uma coincidência. Bolívar mantinha laços de amizades com cidadãos britânicos. Por meio deles, esperava obter apoio à sua empreitada independentista. Em março de 1815, partiu à Jamaica como um exilado. Entretanto, seu propósito era retornar brevemente à Nova Granada ou à Venezuela com o apoio militar suficiente a fim de retomar as batalhas pela Independência e expulsar as tropas de Morillo.

    Porém, Bolívar encontrou dificuldades em convencer cidadãos e membros da coroa britânica a apoiarem seus propósitos. Contudo, esforçou-se para obtê-lo. Em 6 de setembro de 1815, escreveu uma carta à Henry Cullen, um comerciante de origem britânica, com quem mantinha correspondência. Este escrito se tornaria posteriormente conhecido como a Carta da Jamaica e nela Bolívar analisou a situação política das colônias espanholas na América. Para o Libertador, o rompimento com a Metrópole era irreversível, pois o mar que separava geograficamente a Espanha de suas colônias era menor do que o ódio existente nos americanos em relação a Metrópole. No caso específico da Venezuela, Bolívar a chamou de desgraçada, pois estava reduzida a mais completa indigência, com a população praticamente dizimada e vulnerável às atrocidades do exército de Boves³⁶.

    A intenção de Bolívar com a carta seria convencer autoridades inglesas a ajudá-lo neste processo de libertação das colônias americanas. Todavia, rapidamente concluiu que, mesmo com a carta e o exílio em domínios ingleses, sua tentativa de obter o apoio de Londres seria infrutífera. Hostilidades vindas de partidários da Coroa Espanhola e uma pouca esclarecida tentativa de assassinato por meio de uma facada, desferida de madrugada na rede de Bolívar (ele não se encontrava dormindo no local, portanto, escapou do ataque), apressaram sua saída da ilha.

    Conforme destaca Pierre Vayssière, Bolívar tinha um plano caso malograsse a empreitada na Jamaica: embarcaria ao Haiti. O Libertador possuía um contato que permitiria sua inserção na República de ex-escravos: o comerciante de armas Luis Brión, um mestiço nascido em Curaçao. Em dezembro de 1815, Bolívar embarcou à Porto Príncipe e, na companhia de Brión, foi recebido pelo presidente Alexandre Pétion. O Haiti havia sido a primeira colônia americana a se livrar do domínio metropolitano por meio da Revolução Haitiana, liderada por Toussaint L’ouverture, que durou de 1791 a 1804. Tratou-se de uma colônia de escravos que se revoltou contra o domínio metropolitano e derrotou as tropas de Napoleão que tentaram retomar o território à França. Diferente de líderes de outros países, Pétion se mostrou simpático as intenções de Bolívar que se traduziu em ajuda material à causa revolucionária: buques, canhões, fuzis, pólvora, dinheiro e uma imprensa móvel³⁷. Em troca, Pétion exigiu que Bolívar extinguisse a escravidão assim que retomasse o comando do processo.

    O suporte de Pétion e a ajuda financeira de Luiz Brión foram suficientes para Bolívar restabelecer a confiança em reiniciar a luta em favor da Independência. Sendo assim, partiu rumo à ilha de Margarita onde desembarcaria em maio de 1816. A chegada do Libertador em solo venezuelano, com o suporte militar adquirido no Haiti, provocou uma redefinição no cenário político e militar em favor da Independência. A historiografia venezuelana considera este fato, talvez em razão dos desdobramentos posteriores, como o início da terceira República.

    Na visão de Salcedo-Bastardo (1982, p. 248), Bolívar havia aprendido com as derrotas anteriores e sabia que consolidaria seu comando se tomasse medidas que provocassem impactos na estrutura social da época. Conforme prometeu a Pétion, decretou a libertação dos escravos. Em seguida, emitiu leis sobre a distribuição de terras, destinando-as aos combatentes da Revolução, e elaborou grande parte de sua ‘teoria política’. Todavia, as medidas tomadas pelo Libertador naquele momento ocorreram em virtude da necessidade em obter o máximo de apoio possível à Independência. Não estava movido por um sentimento de ‘sensibilidade’ em razão da desigualdade existente naquela sociedade. Conforme pontua Bushnell (2009),

    Bolívar tomou medidas para aumentar sua base de apoio de outras maneiras, incorporando a emancipação dos escravos a seus objetivos declarados [...] e se certificando de que os soldados pardos fossem incluídos nas promoções. Seu empenho na abolição da escravidão teve resultado imediato apenas para os escravos incorporados ao serviço militar, mas ajustava-se muito bem ao tipo de populismo militar que Bolívar esposava no momento³⁸.

    Ao retornar à Venezuela, o Libertador recebeu a notícia de que as tropas de Boves haviam sido vencidas pela ação de outro comandante llanero: José Antonio Páez. Diferente de Boves, Páez era partidário da Independência. Isso foi determinante para que as batalhas pendessem a favor de Bolívar na Venezuela. Além disso, houve uma importante redefinição política na Europa. Com o término das guerras napoleónicas e a formação da Santa Aliança, as pretensões de Londres em relação à América foram alteradas. Se em anos anteriores permaneciam em compasso de espera para não desagradar a ‘aliada’ Espanha, "ahora interesa más la perspectiva americana para la expansión del comercio, que las buenas relaciones con la disminuida España"³⁹.

    Com a reorganização de seu exército para lutar contra as tropas de Pablo Morillo, Bolívar partiu rumo ao sul do rio Orinoco onde, junto com seu exército, obteve uma vitória determinante ao processo de Independência: a tomada da cidade de Angostura em julho de 1817. O controle da rota da bacia do Orinoco era estratégico, pois serviria de ligação com o mundo exterior, por onde chegaria alimentos, soldados e armamentos, por isso aquela havia sido uma derrota considerável ao exército monarquista. A rota do Orinoco permitiu às tropas de Bolívar alcançar às tropas do llanero Páez, que havia derrotado Boves. A aliança entre Páez e Bolívar foi selada em janeiro de 1818 quando ambos se encontraram. Tratou-se de um fato essencial ao êxito da empreitada independentista na Venezuela⁴⁰. Em seu livro de memórias, publicado em 1867 em Nova Iorque, Páez descreveu Bolívar como alguém obstinado em tomar a capital Caracas, por entender o controle da cidade como essencial à retomada da Independência⁴¹.

    O papel de José Antonio Páez neste processo nem sempre é reconhecido em virtude da supremacia ocupada pelo culto a Bolívar na historiografia venezuelana. Entretanto, o apoio de Páez permitiu ao Libertador obter o reconhecimento dos llaneros. Isso não era algo desprezível. Naquele momento, havia um aflorado sentimento de rechaço à elite criolla entre pardos e negros, praticamente todos eles analfabetos ou semianalfabetos, que combatiam sob o comando de Páez. Simón Bolívar pertencia a uma posição social diferente de todos aqueles homens, havia recebido uma formação militar e intelectual típica de um membro da aristocracia criolla. Portanto, o controle exercido por Páez sobre aqueles homens rústicos foi importante à vitória das tropas independentistas na Venezuela.

    Entretanto, Morillo ainda não estava derrotado. Havia um equilíbrio maior nas batalhas, pois, assim como as tropas pró-Independência encontravam dificuldades em tomar a parte andina do território venezuelano, Morillo e seus veteranos não conseguiram retomar as planícies, sobretudo a faixa do rio Orinoco. O propósito do Libertador seria, por meio do domínio do Orinoco, conseguir voluntários europeus com experiência em batalhas, muitos deles desempregados desde o fim das guerras contra Napoleão. Eles começaram a chegar lentamente e mais uma vez demonstrou-se o quão estratégico havia sido o domínio do porto de Angostura⁴².

    Se do ponto de vista militar havia prognósticos otimistas, o mesmo não poderia ser dito em relação ao arcabouço jurídico da República. Não havia um ordenamento e Bolívar precisava fazê-lo rapidamente. A República não poderia prescindir de um sustentáculo ‘racional-legal’, ainda que a guerra parecesse estar longe de terminar. Na mesma Angostura, convocou-se um Congresso, por meio do qual instituiria a República da Colômbia, que seria formada da união do que havia sido o território do antigo vice-reinado de Nova Granada, que abarca Venezuela, Colômbia, Equador e Panamá sob um único comando político, militar e administrativo. Por meio de um arcabouço jurídico, o Libertador esperava pôr fim à guerra civil que tanto dano causava à República. O Congresso também consagrou Bolívar como presidente da Colômbia e o permitiu utilizar o título de Libertador antes de presidente.

    Em 15 de fevereiro de 1819, pronunciou o Discurso de Angostura, um dos documentos mais importantes ao pensamento bolivariano. Nele, sintetizou suas ideias e propôs formas de estruturar o Estado em uma República. Tratava-se de um desafio, pois visava-se introduzir uma forma ‘estranha’ de governo em um ambiente marcado por mais de 300 anos de domínio monárquico-colonial. Por isso, o conteúdo do Discurso era uma proposta ousada e visionária e seu impacto em reforçar a aura revolucionária e de Libertador que rondava Bolívar aumentou. Por outro lado, o prócer demonstrava ter consciência da difícil situação vivida pela República, tendo em vista que apostava em instituições sólidas como a única forma de manter a unidade e a estabilidade da pátria⁴³, algo que Caracas, Bogotá e Quito estavam longe de possuir.

    Entretanto, a instabilidade não era uma realidade exclusiva dos domínios americanos. Da Espanha veio um revés que atingiu o exército monarquista. Em janeiro de 1820, uma revolta, comandada por recrutas que seriam enviados à América, provocou uma onda de violência no Reino. Os revoltosos exigiam que Fernando VII se submetesse à Constituição de 1812 que limitava seus poderes e havia sido abolida pelo monarca. Como parte do acordo, ao invés de enviar mais soldados à Morillo, o Rei instruiu o general a negociar com os rebeldes para pôr fim à guerra. Como reação, Bolívar instou seus contatos em Londres e Washington a pressionar (por meio da imprensa) a opinião pública europeia e norte-americana de que a única saída para a paz seria o reconhecimento da Independência dos territórios que a Espanha não mais controlava na América⁴⁴.

    Alguns meses depois, a ordem surtiu resultado. Além do armistício, "the Spanish government initiated peace negotiations with the patriots, and Morillo was made president of a commissions which went to talk this matter over with the heads of the Colombian revolution in July, 1820"⁴⁵.

    Em novembro de 1820, Simón Bolívar se encontrou com Pablo Morillo aos arredores de Santa Ana. O encontro foi cordial e respeito. Beberam vinho, cada um elogiou as façanhas militares do outro e, por fim, Morillo propôs construir um monumento no local. No dia seguinte, o espanhol partiu e algumas semanas mais tarde embarcou para a Espanha. Foi substituído pelo general Miguel de La Torre⁴⁶. Não há fontes capazes de afirmar se houve algum entendimento entre os comandantes. Porém, como resultado do encontro, Bolívar enviou dois representantes à Madri e uma carta à sua majestade católica Fernando VII. O tom da carta era relativamente cordial e o Libertador instou o monarca a reconhecer a Independência da Colômbia/Venezuela, oferecendo aos espanhóis uma segunda pátria⁴⁷.

    Contudo, Fernando VII não se sensibilizou com a carta de Bolívar, a quem havia conhecido em 1800 quando

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