Capitalismo e Migração – O Acesso dos Imigrantes Venezuelanos às Políticas Sociais no Brasil
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Capitalismo e Migração – O Acesso dos Imigrantes Venezuelanos às Políticas Sociais no Brasil - Fabrícia da Hora Pereira
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS
À querida Mariana Puridade, pelo companheirismo e pela amizade
para dar vida ao que outrora eram apenas inquietações.
Imigra-ação
Imigrar, muitas vezes,
Não é uma opção!
Passa longe de um querer,
Dilacera o coração!
Refugiados de guerra,
Rompem da sua nação.
Sobreviver é seu destino
A cada dia, a cada pão...
Onde chegam: uma bagagem!
Dignidade uma missão!
Garantir direitos mínimos,
Solidariedade em construção!
Um país, que se preze,
Faz política inovação!
Acolhe com sensibilidade,
cuidado vira revolução!
Interesses financeiros,
Prepondera na relação
Internacional desses países.
Mas, quem IMIGRA, quer AÇÃO!
(Luciana Santos Arruda)
PREFÁCIO
A migração venezuelana para o Brasil vem se intensificando sobretudo a partir de 2016. Quase a totalidade desses imigrantes entra no país pela via terrestre, no estado de Roraima. A precariedade da economia, da infraestrutura e, principalmente, da vontade política dos atores locais fez com que fosse necessária a implementação de uma federalização da ajuda humanitária instrumentalizada na Operação Acolhida em 2018.
Apesar de atender, ainda que de forma parcial, os anseios mais imediatos e necessários dos imigrantes em situação de vulnerabilidade, como: acesso ao território brasileiro, regularização migratória, abrigamento e interiorização, a Operação Acolhida tem limitada atuação no acesso das pessoas atendidas às políticas sociais tão necessárias para a sua integração na sociedade brasileira.
Apesar de garantida em norma constitucional, a equivalência de nacionais e imigrantes no acesso aos serviços públicos ainda é realidade distante em nosso país. Em todos os lugares, há relatos de xenofobia, despreparo de agentes públicos, desconhecimento das normas a serem aplicadas aos imigrantes e barreiras burocráticas que dificultam a prestação pelo governo de serviços básicos, como saúde, educação e assistência social.
No Brasil, os venezuelanos ainda tiveram como dificuldades adicionais a entrada em um estado que não estava preparado para esse fluxo migratório. Roraima é, apesar de ser fronteiriço, um estado novo no que diz respeito à imigração. Até o início do fluxo migratório venezuelano para o estado, eram os roraimenses que cruzavam os limites fronteiriços em busca de melhores condições de vida, emprego, produtos de melhor qualidade e com melhores preços, e até mesmo fazer turismo em
terras venezuelanas.
A crise tridimensional (social, econômica e política) na Venezuela mudou tudo. O regime de Nicolás Maduro endureceu medidas restritivas e reprimiu manifestações, além de as condições econômicas e sociais colocarem o país como um dos piores em índices como inflação, desvalorização da moeda, poder de compra dos seus nacionais, subnutrição e fome. Aliás, foram essas últimas duas dificuldades que fizeram boa parte dos venezuelanos migrarem para os países da região, incluindo o Brasil.
É justamente desses temas tão importantes nas Ciências Sociais e Humanas que trata o livro Capitalismo e migração: o acesso dos imigrantes venezuelanos às políticas sociais no Brasil, que você, caro leitor, tem agora em suas mãos. A presente obra trata de aspectos importantes da crise Venezuelana, dissecando suas causas e apontando o modelo capitalista rentista do petróleo praticado pelo país caribenho como um dos principais motivos da crise que veio a se desenrolar nos últimos anos.
Além disso, a obra apresenta uma discussão madura e aprofundada, fugindo dos lugares-comuns, tão existentes atualmente, ao apontar elementos internos e externos como causas da crise na Venezuela. Esses debates e essa contribuição da obra já bastariam por si só à recomendação de leitura. No entanto, Fabricia da Hora Pereira adensa ainda mais a discussão ao explicar não só as causas da crise venezuelana, como também a principal consequência dela: a imigração em massa de cidadãos da Venezuela para outros países e seu acesso às políticas sociais aqui no Brasil.
Fabricia disseca teoricamente sobre políticas sociais e imigração para, em seguida, analisar como se deu o discurso da imigração no Brasil, a partir de entrevistas realizadas in loco com atores relevantes do processo migratório, como representantes da sociedade civil acolhedora, assim como membros do governo em suas mais distintas instâncias. Foi justamente nesse trabalho de campo que eu conheci a autora e seu trabalho.
Nosso primeiro contato foi em 2018. Fabricia era ainda uma estudante de doutorado e planejava escrever sua tese sobre a migração venezuelana em Roraima e, para isso, precisaria fazer uma pesquisa de campo. Naquele momento, eu era o coordenador da Cátedra Sérgio Vieira de Mello da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e havia acabado de publicar o estudo intitulado Perfil sociodemográfico e laboral da imigração venezuelana no Brasil
. Ao conversar com Fabricia, pude perceber seu entusiasmo e dedicação ao realizar aquele estudo que hoje dá base a este livro.
Tive a honra de participar de sua qualificação da tese de doutoramento em 2018, assim como da defesa final dois anos depois. Posso atestar com total segurança que a pesquisa realizada pela autora e que dá base ao Capitalismo e migração: o acesso dos imigrantes venezuelanos às políticas sociais no Brasil foi realizada de forma honesta, ética e, sobretudo, com rigor metodológico e dedicação dessa autora. O resultado está aí: um livro denso teoricamente, com dados empíricos e entrevistas, mas não necessariamente complexo e pesado. A obra deve ser apreciada, lida, relida, anotada e consultada por todos aqueles que procuram entender mais sobre a crise venezuelana, a imigração de venezuelanos para o Brasil, e principalmente por professores, estudantes e estudiosos do tema das migrações no país e das dificuldades dos imigrantes no acesso às políticas sociais.
Professor Dr. Gustavo da Frota Simões
Professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras (PPGSOF) da UFRR. Pesquisador do Observatório das Migrações (ObMigra) da Universidade de Brasília (UnB)
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Acnur Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados
AD Acción Democrática
Alba Aliança Bolivariana para os Povos da América
BPC Benefício de Prestação Continuada
BID Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento
BM Banco Mundial
Celac Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos
CMDH Centro de Migrações e Direitos Humanos da Diocese de Roraima
Cifo Centro de Investigación y Formación Obrera
Copei Comité de Organización Política Electoral Independiente
Cras Centro de Referência em Assistência Social
Creas Centro de Referência Especializado em Assistência Social
Cnig Conselho Nacional de Migração
CSVM Cátedra Sérgio Vieira de Mello
Conare Comitê Nacional para os Refugiados
Dieese Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
CTV Confederación de Trabajadores de Venezuela
Fanb Fuerza Armada Nacional Bolivariana
FMI Fundo Monetário Internacional
Funai Fundação Nacional do Índio
IDH Índice de Desenvolvimento Humano
IDHM Índice de Desenvolvimento Humano Municipal
Loas Lei Orgânica da Assistência Social
MDB Movimento Democrático Brasileiro
MSS Migrações Sul-Sul
MP Medida Provisória
MRB 200 Movimiento Bolivariano Revolucionario 200
MPT Ministério Público do Trabalho
MUD Mesa de la Unidad Democrática
MVR Movimento Quinta República
OBMigra Observatório das Migrações Internacionais
OEA Organização dos Estados Americanos
Opep Organização dos Países Exportadores de Petróleo
Otan Organização do Tratado do Atlântico Norte
PDVSA Petróleos de Venezuela
Petrig Posto de Triagem
PNAS Política Nacional de Assistência Social
PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PSUV Partido Socialista Unido de Venezuela
Suas Sistema Único de Assistência Social
Sucre Sistema Único de Compensação Regional de Pagamentos
SUS Sistema Único de Saúde
Setrabes Secretaria do Trabalho e Bem-Estar Social
Semges Secretaria Municipal de Gestão Social
UCV Universidad Central de Venezuela
UFRR Universidade Federal de Roraima
Unasul União de Nações Sul-Americanas
URD União Republicana Democrática
Sumário
INTRODUÇÃO
1
CAPITALISMO: DA GÊNESE AO IMPERIALISMO
1.1 Acumulação originária e as condições necessárias à organização social
capitalista
1.2 A expansão do capital, o desenvolvimento das forças produtivas e a
subsunção social do trabalho
1.3 Imperialismo: caracterização teórica, contradições, tensões das forças
produtivas, crises e balanços
1.4 Classes sociais no capitalismo
2
VENEZUELA: A CONSTRUÇÃO DE UMA OUTRA VIA?
2.1 Chávez para Venezuela, Chávez para América Latina
2.2 Os (des)caminhos até Maduro
2.3 A Comunidade Internacional e a crise venezuelana
3
POLÍTICA SOCIAL E IMIGRAÇÃO
4
O DISCURSO INSTITUCIONAL SOBRE A MIGRAÇÃO
5
OS VENEZUELANOS NO BRASIL E O ACESSO ÀS POLÍTICAS
SOCIAIS
5.1 Vida na Venezuela: circunstâncias e planejamento da migração
5.2 Situação migratória e conhecimento sobre os direitos dos imigrantes no Brasil
5.3 Acesso às políticas sociais no Brasil
5.4 Os resultados obtidos a partir da aplicação do questionário Políticas sociales para inmigrantes en Brasil: de lo inconcreto a lo concreto (la situación de venezolanos después de la aprobación de la nueva ley de migración de 2017)
5.5 A Fronteira: visita a Pacaraima
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
Índice Remissivo
INTRODUÇÃO
É recorrente o debate sobre os fluxos migratórios em todo o mundo. Especialmente no Brasil, nos últimos anos, o foco do debate esteve centrado no fluxo migratório venezuelano, com mais expressividade na Região Norte do país. Em geral, as migrações internacionais são tratadas como processos particulares – referentes a uma determinada região ou população específica. Contudo, a abordagem que proponho nesta obra perpassa pela compreensão desse fenômeno na contemporaneidade como movimento intrínseco do modo de produção capitalista. Nesse sentido, considero que é necessário analisar alguns determinantes estruturais de como se organiza esse modo de produção, num contexto de mundialização do capital e sua crise estrutural (MESZÁROS, 2008), e em particular a migração venezuelana, a qual constituiu o núcleo central deste livro.
As condições necessárias à origem e ao desenvolvimento do capitalismo têm como base a separação entre aquele que faz a transformação da matéria-prima em mercadoria da propriedade dos meios de produção dessa mercadoria. Essa separação é imprescindível porque é necessário ao desenvolvimento do capitalismo que exista um ser livre
, que não é servo e tampouco detém os meios de produção, mas que disponha apenas da sua força de trabalho para ser comercializada, como uma mercadoria especial, capaz de produzir outras mercadorias.
Antes do modo de produção capitalista o camponês estava vinculado à gleba a partir das relações de produção que eram constituídas, ao mesmo tempo que detinha os meios de subsistência pela relação servil e, em certa medida, contava com proteções específicas das antigas instituições feudais. Com o advento do trabalho livre ocorre a sinalização de uma possível forma transitória para o rompimento das relações de servidão, mas o que se formou foi um crescente contingente de trabalhadores livres
destituídos dos meios de produção:
[...] tornaram-se vendedores de si mesmos depois que todos os seus meios de produção e todas as garantias de sua existência, oferecidas pelas velhas instituições feudais foram roubadas. E a história dessa sua exploração está inscrita nos anais da humanidade com traços de sangue e fogo. (MARX, 1996, p. 341).
Tem-se, portanto, trabalhadores livres
que foram expulsos da terra comunal por meio de legislações e ações violentas e acabaram migrando para as cidades, o que consequentemente também acarretou num crescimento e inchaço desses espaços. Nesse sentido, a migração do campo para a cidade aparece como possibilidade de sobrevivência, ou seja, o deslocamento humano do campo para a cidade, na gênese do capitalismo, é inerente às transformações desse modo de produção, em especial pela expropriação das condições de vida dos trabalhadores no campo.
Esses fluxos migratórios já apontavam que com o esgotamento das condições de vida nos territórios de origem a migração seria constante e inerente a essa nova ordem social e econômica. Há aí uma mudança central, diferente de outros modos de produção em que havia a escassez das forças produtivas – tecnológicas e científicas –, bem como a restrita capacidade de produção e armazenamento de alimentos, além da dificuldade para controlar pragas e intempéries naturais. No capitalismo essa realidade se transforma porque houve um avanço das forças produtivas, mas contraditoriamente a socialização desses ganhos continua sendo privada e restrita a determinadas classes sociais.
O objetivo do capitalismo é o lucro, portanto ao longo dos períodos históricos se criou a condição necessária para desenvolver a centralização e concentração de capitais (MONTORO, 2016), que se dá de forma combinada e desigual, seja em contexto regional ou internacional. Em qualquer desses âmbitos – regional e/ou internacional – o capitalismo sempre cria as condições necessárias para sua reprodução, tendo como eixo central a existência do exército industrial de reserva, que é um contingente populacional não absorvido no processo produtivo.
Assim, com a entrada da maquinaria no processo de geração de valor, o trabalhador passa a não dispor dos meios de produção e como alternativa para a sobrevivência resta a venda da sua força de trabalho: o exército industrial de reserva proporciona o material humano a serviço das necessidades variáveis de expansão do capital e sempre pronto para ser explorado
(MARX, ١٩٩٦, p. ٧٣٣). Dessa forma, essa população poderá num dado momento ocupar o circuito produtivo por meio da venda de sua força de trabalho e em outro momento voltar a compor o exército industrial de reserva. Nessa condição, representa a força de tensão que impulsiona o rebaixamento dos salários em relação a aqueles que estão no circuito produtivo.
Na América Latina, resguardadas as particularidades sócio-históricas, culturais e as contradições de cada país, os aspectos estruturais do capitalismo incidem em todos as nações, mesmo que em proporções diferentes. De acordo com Cueva (1979), o desenvolvimento do capitalismo nos países dependentes não apresenta leis ou determinações diferentes das que imperam nos países hegemônicos, O desenvolvimento desse modo de produção é regido em qualquer lugar por leis objetivas de acumulação, concentração e centralização do capital
(CUEVA, 1979, p. 1).
O autor salienta que é inimaginável pensar que o capitalismo na América Latina pudesse contribuir para a formação de economias nacionais autônomas e eliminar as particularidades de cada formação nacional; ao contrário, o capitalismo na América Latina se desenvolve da mesma forma – seu núcleo essencial – que nos países centrais por meio da exploração dos trabalhadores.
O capitalismo impõe aos trabalhadores o constante e insaciável aprimoramento da força de trabalho, modificando os processos de trabalho para atender aos interesses do capital – lucro numa margem satisfatória. Com isso, o trabalhador é moldado às necessidades do capital e a incorporação dos mecanismos tecnocientíficos se tornam estratégias para estimular a produtividade. Além disso, os trabalhadores são movidos e movimentam-se para diferentes localidades – no próprio país ou em outros – como estratégia de sobrevivência.
Dessa maneira, o deslocamento se torna uma via possível para garantir a existência: não pretendo aqui apresentar uma análise economicista, mas as formas como os sujeitos são expropriados das possibilidades de viver em liberdade exercem influência na escolha por migrar. Para a teoria social crítica a categoria migração é um fenômeno que tem sua gênese na expropriação dos meios de subsistência e na exploração do trabalho (VENDRAMINI, ٢٠١٨). Complemento ainda, concordando com a discussão proposta por Vendramini (2018), que o capitalismo constantemente impulsiona os trabalhadores a migrarem em busca de venda da sua força de trabalho, num contexto de mundialização do capital e sua crise estrutural. O modo de produção capitalista em sua atual face, neoliberal, intrinsecamente produzirá o fenômeno das migrações – internacionais ou num mesmo país – tendo em vista o crescente esgotamento das condições de vida nos territórios. Ou seja, nesta obra, os fluxos migratórios no capitalismo são entendidos como movimentos inerentes à reprodução e ao desenvolvimento desse modo de produção.
Por isso, considero que é imprescindível compreender os grandes fluxos migratórios na atualidade e suas conexões no capitalismo, pois as respostas a essa realidade perpassam pela análise dos limites e possibilidades de expansão dos direitos nessa sociabilidade. Acredito, portanto, que as políticas sociais são estratégias essenciais para a mudança da correlação de forças em defesa dos interesses coletivos e, por isso, é importante analisarmos suas configurações e o papel do Estado, o que determinará o seu resultado. A proposta que apresento não tem a pretensão de analisar situações específicas quanto à migração – uma ou outra pessoa que migrou –, mas compreender o fenômeno em sua totalidade, estudando as particularidades de determinado fluxo migratório – no caso desta obra, a migração venezuelana.
Não se trata de restringir o fenômeno das migrações ao terreno econômico ou simplesmente subjetivo – ausência ou não de renda e escolha individual dos sujeitos –, mas de apreender a base do movimento que impulsiona a necessidade e/ou vontade de migrar neste modo de produção capitalista.
Ou seja, é necessário entender como operam as forças que movem o capital na direção da sua crescente valorização por meio da extração de mais valor e que produzem imensos contingentes de trabalhadores completamente disponíveis para o capital
(VENDRAMINI, 2018, p. 243).
Nesse sentido, entendo também que o imigrante é um sujeito político que dispõe de vontades e crenças, condicionadas pela realidade concreta, bem como dispõe de capacidade de agência individual e/ou em grupo para tomar decisões, valorando-as a partir da consciência – subjetividade – que é construída no modo de produção capitalista.
Afinal, Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.
(MARX, 1974, p. 136). Dessa forma, os fatores subjetivos que incidem sobre as motivações, ações e formas de tomada de decisão também são elementos imprescindíveis para compreender as nuances que envolvem a própria migração no atual contexto histórico de hegemonia do império do capital, que na opinião de Wood (2014) consiste no domínio das relações econômicas, sem necessariamente partir para um processo de colonização.
De acordo com Wood (2014) a maior potência representante do império do capital é os Estados Unidos.
Alguns comentadores diriam que, com a ocupação do Iraque, o governo Bush retomava um imperialismo colonial mais antigo, este sim de fato uma grande mudança. Mas vejo essa opinião, tanto hoje, quanto naquela época, como um erro de compreensão da natureza especifica do imperialismo norte-americano e, na prática, da especificidade do império capitalista, cuja principal característica é operar o máximo possível por meio dos imperativos econômicos, e não pelo domínio colonial direto. Assim como o capital exerce sua dominação sobre o trabalho sem o poder coercivo direto, porque os trabalhadores dependem do mercado e são obrigados a entrar nele para vender a sua força de trabalho, coisa análoga aconteceu no plano global, onde mais e mais partes do mundo foram submetidas a esses imperativos de mercado que as tornam dependentes. (WOOD, 2014, p. 11).
Wood (2014) explica que os Estados Unidos são o primeiro império verdadeiramente capitalista
, ainda que tenha existido potências capitalistas que possuíam impérios. Segundo a autora, o centro da questão consiste no fato de que os Estados Unidos controlam o mundo por uma via diferente das potências que o antecederam, não pela colonização direta, mas em sua maior parte pelo controle dos mecanismos econômicos do capitalismo.
No presente, a Venezuela é sem dúvidas o território de maior confronto e disputa dos Estados Unidos e seus aliados na América do Sul, pois uma das questões centrais com relação a essa disputa não é a recolonização da Venezuela, mas a necessidade de controle e domínio das atividades econômicas que são imprescindíveis para garantir o poder e a hegemonia por meio do petróleo. Esse é um dos elementos centrais para compreendermos a disputa entre a maior potência hegemônica do mundo e as tentativas de controle e protecionismo do governo de Caracas.
Todavia, isso não é suficiente para explicar as tensões entre os Estados Unidos e a Venezuela. É preciso analisar o papel contra-hegemônico, mesmo com inúmeras contradições, que a Venezuela desempenhou no contexto regional e internacional desde a ascensão de Hugo Chávez.
De acordo com Harnecker (2018), Chávez assume como tarefa prioritária a pretensão de romper com o imperialismo e construir o socialismo do século XXI. O que estava em questão era a necessidade de construir bases políticas, ideológicas e sociais para que uma coalizão revolucionária
protagonizasse a mudança radical
esperada para a América Latina.
O sucessor de Chávez, Nicolás Maduro, assume o comando da Venezuela em meio a um cenário de crise econômica e descontentamento popular. Ademais, no âmbito internacional, havia uma crescente desvalorização do preço do barril do petróleo e a figura não tão carismática de Maduro, em comparação a Chávez, passou a enfrentar muitos desafios com notícias de corrupção no governo e uma relação complexa com os militares.
Ao longo da última década o contexto geopolítico latino-americano vem passando por transformações profundas, especialmente com a ascensão de governos de direta e centro-direita que não mais apresentam-se favoráveis às ideias do chavismo. Nesse cenário de mudanças, abriram-se novas possibilidades para o aprofundamento das estratégias neoliberais em busca de reafirmação do lugar de dependência dos países da América Latina, num contexto de reordenamento dos direitos sociais como o que ocorreu no Brasil, em especial, nos últimos anos. O conjunto de medidas tomadas pelo Governo Federal, como a contrarreforma trabalhista aprovada em julho de 2017, com vigência a partir de novembro do mesmo ano, elucidou uma verdadeira mudança da legislação que garantia o mínimo de segurança e estabilidade ao trabalhador.
Outra medida adotada pelo Governo Federal foi a aprovação em 2016 da Emenda Constitucional n.º 95, que congelou o teto dos investimentos primários, como as políticas sociais, que só poderão ser reajustadas pelo índice da inflação do ano anterior. Contudo, para os investimentos financeiros, em especial para o pagamento de juros e amortização da dívida, não houve mudança.
A realidade demonstra que as medidas adotadas não surtiram o efeito tão veiculado pelo governo brasileiro, a saber, a retomada dos níveis de crescimento econômico. Conforme o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a economia brasileira se manteve por três anos consecutivos – 2017, 2018 e 2019 – com o Produto Interno Bruto (PIB) na média de 1%, depois de dois anos de profunda recessão, sem perspectiva de recuperação à vista (2019, p. 1). O que se assiste é a continuidade da deterioração das condições de emprego e renda dos trabalhadores. Cálculos de assessorias empresariais estão projetando que, mesmo que o Produto Interno Bruto retorne, em 2021, ao patamar de antes da crise, o PIB per capita só voltará ao nível desse mesmo período em 2023
(DIEESE, 2019, p. 1). Dessa forma, o fluxo migratório venezuelano cresceu no Brasil num cenário de crise do capital, completamente adverso aos direitos sociais.
Com relação ao perfil dos imigrantes venezuelanos no país, em 2017 foi realizada a pesquisa "Perfil Sociodemográfico e Laboral da Imigração Venezuelana¹" nos municípios de Boa Vista e Pacaraima – Brasil –, que teve por objetivo analisar o perfil sociodemográfico e laboral dessa população para subsidiar a formulação e a implementação de políticas migratórias. A pesquisa constitui-se de duas fases: uma qualitativa, para os indígenas, e outra quantitativa, para os não indígenas, maiores de 18 anos de idade.
Em resumo, conforme a pesquisa supracitada, os dados quantitativos com relação aos imigrantes não indígenas indicam que 72% – homens e mulheres – são jovens de ٢٠ a ٣٩ anos de idade; ٥٣,٨٪ do total dos imigrantes são solteiros; 28,4% dos imigrantes possuem ensino superior completo, e destes 3,5% possuem pós-graduação; 30,5% do total possuem pelo menos ensino médio completo, ou seja, 78% do total dos imigrantes venezuelanos em Boa Vista possuem, minimamente, o ensino médio completo.
Essa pesquisa é um marco importante na construção de políticas sociais para essa população, porque além de oferecer um retrato aproximado da realidade também auxilia na desconstrução de estigmas e preconceitos quanto ao perfil dos imigrantes venezuelanos no Brasil.
É oportuno lembrar que o arcabouço legal que normatiza a situação migratória dos imigrantes no Brasil é a Lei n.º ١٣.٤٤٥ de ٢٤ de maio de ٢٠١٧, chamada Lei de Migração, e o Decreto n.º ٩.١٩٩ de ٢٠ de novembro de ٢٠١٧, que a regulamenta. A Lei de Migração trouxe avanços significativos porque concede aos imigrantes, em igualdade de condições com os nacionais, os direitos garantidos pela Constituição Brasileira.
Dessa forma, houve um importante avanço na legislação nacional que, anteriormente, era respaldada pelos princípios da segurança nacional presentes na Lei n.º ٦.٨١٥ de ١٩ de agosto de ١٩٨٠, conhecida como Estatuto do Estrangeiro
, a qual percebia o imigrante como uma ameaça. Dessa forma, a Lei de Migração representa um novo paradigma acerca da compreensão do fenômeno migratório e as respostas do Estado a esse fenômeno.
Dentre as ações adotadas pelo Governo Federal com relação à migração venezuelana, tem destaque a Medida Provisória n.º ٨٢٠ de ١٥ de fevereiro de ٢٠١٨, que dispõe sobre medidas de assistência emergencial para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária
. Na mesma data também foi promulgado o Decreto n.º ٩.٢٨٥, que reconheceu a crise humanitária na Venezuela, ou seja, com essa constatação o Estado brasileiro assume publicamente a necessidade de intervenção nessa realidade, o que deve ocorrer por meio do acesso às políticas sociais, conforme previsto na Lei de Migração.
Porém, a formulação e execução de políticas sociais é resultado da luta de classes, pois ao mesmo tempo que atende aos interesses do capital também atenderá aos interesses dos trabalhadores. Além disso, é permeada por interesses econômicos, políticos e culturais vinculados às classes socialmente determinantes na sociedade.
Por isso, a proposta desta obra é analisar como se dá o acesso dos imigrantes venezuelanos às políticas sociais no Brasil. Por análise, tomo como referência a perspectiva apresentada por Behring:
[...] trata-se de analisar as políticas sociais como processo e resultado de relações complexas e contraditórias que se estabelecem entre Estado e sociedade civil, no âmbito dos conflitos e luta de classes que envolvem o processo de produção e reprodução do capitalismo. (BEHRING, 2009, p. 304).
Afinal, como bem salientado por Behring e Boschetti (2008), os anos 1990 no Brasil apresentaram contratendências à possibilidade de efetivação das políticas sociais encampadas na década anterior pelos movimentos sociais. Para as autoras, o que ocorreu e persiste nos dias atuais é uma contrarreforma do Estado e ainda uma obscurantização e/ou redimensionamento
dos avanços de 1988. Trata-se de uma contrarreforma² porque existe a tendência de reafirmar os preceitos neoliberais por meio de uma série de medidas que se refletem nas condições de vida da maioria dos trabalhadores.
[...] as políticas neoliberais comportam algumas orientações/condições que se combinam, tendo em vista a inserção de um país na dinâmica do capitalismo contemporâneo, marcada pela busca de rentabilidade do capital por meio da reestruturação produtiva e da mundializacão: atratividade, adaptação, flexibilização e competitividade. (BEHRING, 2009, p. 72).
Concordo com Behring (2009) acerca do fato de que para a perspectiva hegemônica – neoliberal – as políticas sociais passam a ser caracterizadas como geradoras de desequilíbrio e muito dispendiosas para o Estado, e por isso devem ser acessadas de forma privada, a partir do ideal de cidadão consumidor.
Ou seja, os benefícios, programas e serviços sociais deixam de ser direitos e se tornam direitos do consumidor, e há ainda uma tendência de os serviços públicos serem cada vez mais desmantelados. A esse contexto está associado o corte dos gastos sociais, o que leva à privatização, daí as tendências de desresponsabilização e desfinanciamento da proteção social pelo Estado
(BEHRING, 2009, p. 9).
Dito isso, a partir da conjugação – capitalismo, migração venezuelana e política social – foi possível construir o percurso de análise deste livro, que teve como núcleo a investigação do acesso dos imigrantes venezuelanos às políticas sociais no Brasil. Para tanto, busquei compreender a configuração do capitalismo mundializado e sua relação com o fenômeno da migração internacional; a relação geopolítica internacional e os desdobramentos para o aprofundamento da crise venezuelana; a organização da política migratória brasileira e o acesso dos imigrantes às políticas sociais.
Percursos da Pesquisa
De acordo com Konder (1981), a atividade humana, em geral, é um processo de totalização, o que quer dizer que nunca chega a um ponto final. Seja qual for o objeto ou a ação criada e apreendida pelo ser humano, é uma totalidade inserida em uma totalidade mais complexa. Em qualquer ação assimilada, o ser humano acaba se defrontando, inexoravelmente, com dilemas relacionados ao conhecimento do próprio real. Sendo assim, para dar respostas aos dilemas, o ser humano necessita ter um olhar do conjunto deles, ou seja, totalidade.
O olhar para o conjunto revela-se em si mesmo como uma ação que invariavelmente será transitória e jamais será possível presumir que todas as possibilidades de compreensão foram findadas, pois a realidade é e sempre será mais dinâmica do que é possível apreender sobre ela. Inegavelmente, algum elemento foge à síntese, o que não quer dizer que a síntese seja dispensada.
A síntese é a visão de conjunto que permite ao homem descobrir a estrutura significativa da realidade com que se defronta, numa situação dada. E é essa estrutura significativa – que a visão de conjunto proporciona – que é chamada de totalidade. (KONDER, 1981, p. 36).
A respeito da totalidade pode-se dizer que existem totalidades mais abrangentes e totalidades menos abrangentes. Assim,
Se eu estou empenhado em analisar as questões políticas que estão sendo vividas pelo meu país, o nível de totalização que me é necessário é o da visão de conjunto da sociedade brasileira, da sua economia, da sua história, das suas contradições atuais. Se, porém, eu quiser aprofundar a minha análise e quiser entender a situação do Brasil no quadro mundial, vou precisar de um nível de totalização mais abrangente: vou precisar de uma visão de conjunto do capitalismo, da sua gênese, da sua evolução, dos seus impasses no mundo de hoje. E, se eu quiser elevar a minha análise a um plano filosófico, precisarei ter, então, uma visão de conjunto da história da humanidade, quer dizer, da dinâmica da realidade humana como um todo (nível máximo de abrangência da totalização dialética). (KONDER, 1981, p. 37).
Dito isso, a partir da proposta investigativa desta obra, considero que é fundamental mergulhar em um processo de totalidades mais abrangentes para atingir o nível de totalização necessário para chegar-se à essência do objeto, o que significa:
Do ponto de vista macroestrutural (econômico, político e estrutural): é importante compreender a constituição do padrão hegemônico internacional e a configuração do capitalismo, bem como o papel do Estado na era dos monopólios e das classes sociais.
Do ponto de vista