O trote da lista
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O trote da lista - Maxwell Santos
Dedico esta obra a todos os profissionais da linha de frente no combate da pandemia da Covid-19.
Dedico também esta obra à memória de Lula Rocha, um incansável lutador dos direitos humanos.
A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto.
Darcy Ribeiro, antropólogo (1922-1997)
1 | O SiSU abre
Leiliane, 17 anos, deitada no sofá da sala da casa onde morava, no distrito de Patriarca Abraão, em Pietro Tabachi, estava ansiosa quanto à abertura das inscrições do SiSU no curso de Medicina da UFES. No entanto, ela não tinha computador para fazer as inscrições.
O celular daquela menina era da Red Butterfly, marca chinesa de qualidade duvidosa, comprado nas Casas Krauss, com pouca memória, e que travava ao abrir o Google Chrome. Mesmo que o aparelho funcionasse a contento, ela não tinha bônus para pacote de dados, e a cobertura 3G naquele distrito era precária.
Leiliane conversou com Simone, sua tia e madrinha, com quem morava, a respeito de seu sonho e sua dificuldade.
- Madrinha, as inscrições do SiSU abriram hoje, mas não tenho computador pra me inscrever, o meu celular fica travando, não sei o que fazer.
- Leiliane, minha flor, se a madrinha pudesse, comprava até um notebook pra te ajudar, mas a coisa tá feia. Não tá pintando unha pra fazer, e pra variar, algumas clientes choram miséria em relação ao preço que cobro, querem pôr preço no meu trabalho, dizem que tá puxado, que tá fora da realidade.
- Algumas falam que é por causa da pandemia.
- Muita gente perdeu o emprego ou teve o salário reduzido. Outros usam a pandemia como desculpa pra levar vantagem em cima da gente. Certa feita, quando disse pra cliente que meu valor era aquele e não negociava, a bonita disse: Querida, a Rayanne, filha da Rita, faz por esse valor. É a lei da oferta e da demanda
. Respondi: Se acha que meu serviço tá caro, então faz com ela, caramba!
. A dondoca desligou na minha cara.
- Decline o nome da santa, madrinha!
- No caso, era Bianca Dell’Antonio, neta de Jalmir Barreira, ex-prefeito da cidade. Moça montada na grana e quer chorar miséria pra cima de mim. Ah, me poupe!
- Essas ricas… quanto mais têm, mais querem pechinchar.
- Tô precisando trocar meu celular, que tá com a bateria viciada.
- Deus te ajude a comprar outro aparelho, mas queria mesmo é um computador pra fazer inscrição do SiSU. Parece que meu sonho de ser médica ficará muito distante.
- Não fique assim, Leiliane. Vai dar tudo certo. Você vai conseguir fazer sua inscrição.
O celular de Simone tocou. Era Hellen. Ela atendeu:
- Alô, quem tá falando?
- Sou eu, Hellen.
- Oi, Hellen. Boa tarde.
- Simone, tô precisando que você venha aqui em casa fazer minhas unhas. Hoje vai rolar um jantar só pra família e amigos íntimos, comemorando os 25 anos de casamento dos meus pais. Não fosse a pandemia do coronavírus, a gente faria num buffet.
- Que lindo! Não é todo dia que a gente vê casamentos chegarem a bodas de prata.
- Obrigada, querida. Você tá disponível pra hoje?
- Sim, Hellen.
- Tá ok. Vou mandar um Uber te buscar.
- Maravilha. Vou pro lado de fora esperar.
- Fico no seu aguardo. Um beijo, flor.
- Outro, Hellen.
Simone foi para o lado de fora. Em poucos minutos, o Uber chegou, e a manicure entrou nele.
Leiliane pegou o telefone fixo sem fio e ligou para Leonardo, seu amigo:
- Leonardo, aqui é a Leiliane.
- Oi, Leiliane. Tudo bom?
- Tudo maravilhoso, amigo. Tirei 880 pontos de média no ENEM.
- Que maravilha, Leiliane!
- Preciso de sua ajuda pra fazer minha inscrição no SiSU, porque não tenho computador. Além disso, meu celular tá horrível, trava quando abre o Google Chrome, tô sem crédito pra internet, e o sinal 3G é horrível.
- Por ora, Leiliane, não vou conseguir te ajudar, porque tô digitando o TCC da pós-graduação em Direito Civil na UniBraga. Me desculpe por te deixar na mão.
- Não precisa se desculpar, meu bem.
- Há poucos dias, peguei minha carteirinha da OAB na subseção de Linhares.
- Olha, que coisa boa!
- Tô estudando pra concursos do Ministério Público e da magistratura.
- Já te vejo como promotor de justiça de Pietro Tabachi.
- Voltando ao seu pedido de usar a internet, acho uma sacanagem que a Dayane Freitas, prefeita de Pietro Tabachi, fez, em desativar os telecentros e desligar os pontos de wi-fi na cidade, sob a desculpa de evitar aglomerações por conta da pandemia. Suponho que essa mulher tá em conluio com os donos de provedores de internet.
- Leonardo, obrigada por sua atenção e me desculpe por tomar seu tempo. Um beijo.
- Outro, amiga.
A moça ligou para Tomás, a quem julgava ser seu melhor amigo:
- Oi, Tomás. É a Leiliane.
- Oi, Leiliane. Fala o que você quer, criatura!
- Preciso que faça a minha inscrição pra Medicina no SiSU. Tirei 880 pontos.
- Legal, Leiliane. Passa aqui em casa, que eu faço.
- Obrigada, Tomás.
- Vem logo, antes que me arrependa.
Visando realizar seu sonho, Leiliane saiu de casa e foi para o sítio de Tomás. Ela gritou o nome dele, que apareceu e disse:
- Leiliane, você trouxe o boletim com o número do ENEM?
- Tá aqui no meu bolso – respondeu Lelilane, tirando o boletim e entregando o mesmo para Tomás.
- Pode deixar, que eu vou fazer. Assim que sair o resultado, te aviso – disse Tomás – Só não convido pra entrar, porque tenho muita coisa pra fazer. Tchau, Leiliane.
- Tchau, Tomás.
Em casa, Tomás contou à Débora, sua mãe, sobre o desejo de Leiliane:
- Mamãe, a Leiliane, aquela amiga mulatinha, baixinha, magrinha, com cabelo cacheado, passou no meu portão, pedindo que eu fizesse a inscrição dela no SiSU pro curso de Medicina.
- Ah, Tomás, essa menina tá sonhando alto demais pra condição que ela vive. Ela deveria fazer um curso técnico de enfermagem pra se inserir no mercado. Há uma excessiva valorização do diploma superior, em detrimento dos cursos técnicos, que dão inserção rápida no mercado de trabalho, principalmente os da área industrial.
- Diz Leiliane