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As Aventuras de Huckleberry Finn
As Aventuras de Huckleberry Finn
As Aventuras de Huckleberry Finn
E-book362 páginas5 horas

As Aventuras de Huckleberry Finn

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Sobre este e-book

Lançado em 1885 no seguimento de "As aventuras de Tom Sawyer" (1876), a história de Huck Finn, no entanto, ganhou autonomia: é unanimemente considerada a obra-prima de Mark Twain e mudou para sempre o imaginário dos Estados Unidos.

Para se livrar do pai bêbado e violento, Huckleberry Finn procura refúgio numa pequena ilha do rio Mississippi, onde se alia a Jim, um escravo em fuga. Em busca de liberdade, a inusitada dupla inicia uma viagem pelo leito do rio, às margens da sociedade pré-Guerra Civil.
IdiomaPortuguês
EditoraMimética
Data de lançamento29 de abr. de 2024
ISBN9789895620326
As Aventuras de Huckleberry Finn
Autor

Mark Twain

Mark Twain, who was born Samuel L. Clemens in Missouri in 1835, wrote some of the most enduring works of literature in the English language, including The Adventures of Tom Sawyer and The Adventures of Huckleberry Finn. Personal Recollections of Joan of Arc was his last completed book—and, by his own estimate, his best. Its acquisition by Harper & Brothers allowed Twain to stave off bankruptcy. He died in 1910. 

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    Pré-visualização do livro

    As Aventuras de Huckleberry Finn - Mark Twain

    Capítulo 1

    Nada devem saber a meu respeito a não ser que tenham lido «As Aventuras de Tom Sawyer». Não faz mal. O livro foi escrito pelo senhor Mark Twain, e ele contava quase sempre a verdade. Às vezes alargava-se um bocado, mas em geral dizia a verdade. Isto, claro, não tem importância. Nunca conheci ninguém que não mentisse uma vez por outra, a não ser a tia Polly ou a Mary, ou talvez a viúva Douglas. A tia Polly, — tia do Tom — a viúva Douglas e a Mary vêm todas no livro — e, no que diz acerca delas, quase tudo é verdade, fora alguns exageros, como já disse.

    Ora aquele livro acaba assim: «Tom e eu encontrámos o dinheiro que os ladrões tinham escondido na caverna e ficámos ricos. Coube a cada um seis mil dólares — todos em ouro. Este dinheiro em monte metia respeito. Bom; o juiz Thatcher tomou conta do dinheiro e colocou-o. Rendia um dólar para cada um, em cada dia do ano, mais que o suficiente para não sabermos que fazer com ele. A viúva Douglas tomou-me como filho, para me civilizar, dizia, mas a vida em casa dela era tão maçadora, devido à regularidade e compostura que punha em tudo, que não pude mais, e safei-me. Vesti os meus trapos, meti-me dentro do velho tonel e sentia-me livre e feliz, quando o Tom Sawyer deu comigo e me disse que ia organizar uma quadrilha de ladrões de que eu podia fazer parte, se voltasse para a viúva e tivesse juízo. Por isso voltei.

    A viúva fartou-se de chorar, chamando-me pobre ovelha desgarrada e muitos outros nomes, mas não era por mal. Vestiu-me outra vez o fato novo. Eu suava, suava e sentia-me aperreado. Voltámos à velha história. A viúva tocava a sineta para o jantar e tínhamos que estar lá a horas; quando chegávamos à mesa não podíamos começar logo a comer; era preciso esperar que ela baixasse a cabeça e rabujasse umas coisas sobre a comida que, realmente, não tinha nada que se lhe dissesse. Quere dizer, nada, a não ser que cada coisa era cozinhada em separado. Quando se mete toda a espécie de restos numa panela é diferente: as coisas misturam-se, o molho parece que fervilha em volta e fica tudo melhor.

    Depois da ceia, a viúva foi buscar um livro e deu-me uma lição sobre Moisés e a história dos juncos, e vi-me parvo para deslindar aquilo. Mas como ela se descaiu em dizer que Moisés tinha morrido há muito tempo, desinteressei-me logo porque os mortos não me interessam.

    Pouco depois, apeteceu-me fumar e pedi licença à viúva. Não me deixou; disse que era um costume ordinário e sujo e que eu devia libertar-me dele. É a mania de muita gente: dão para baixo numa coisa sem saber do que se trata. Estava ela para ali a ralar-se com o Moisés, que não lhe era nada e não servia para coisa alguma, pois já tinha morrido, e, no entanto, implicava comigo por eu pretender uma coisa que sempre fazia algum bem. E ainda por cima tomava rapé. Pois claro, isto estava bem porque era ela que o fazia.

    Por sua vez, a menina Watson, a irmã, solteirona apresentável, magra e de óculos, que veio viver com ela, caiu-me em cima com um livro de leitura. Durante mais de uma hora apertou-me com um trabalho estúpido, até que a viúva a mandou parar. Eu não aguentava mais. Seguiu-se uma hora de paz podre, e eu em pulgas. A menina Watson dizia: — «Não ponha aí os pés, Huckleberry»; — ou: — «Não esteja todo encolhido, Huckleberry; sente-se direito». — E logo a seguir: — «Não se espreguice nem boceje dessa maneira, Huckleberry; porque não aprende a estar com termos?» — Depois falou-me do inferno e eu disse: — «Quem me dera lá estar!» — Ficou fula. Eu não disse aquilo por mal, mas porque queria ver-me noutro sítio, precisava de sair dali fosse para onde fosse. Respondeu-me que era pecado falar assim. Ela não diria aquilo por coisa alguma deste mundo e faria o possível para ir para o céu. Como não via vantagem em ir para onde ela ia, decidi não fazer esforços. Mas fiquei calado, porque não adiantava nada falar; só arranjava maçadas.

    Com este ponto de partida, desatou a falar sobre o Paraíso. Disse que a gente, lá, não tinha nada que fazer senão andar todo o dia com uma harpa a cantar, a cantar eternamente. Não fiquei entusiasmado, mas não o disse. Perguntei-lhe se achava que o Tom Sawyer iria para lá, e respondeu-me que nem por sombras. Fiquei contentíssimo, pois gostava que ele e eu fôssemos para o mesmo sítio.

    A menina Watson continuou a implicar comigo, e eu comecei a sentir-me só e aborrecido. Mais tarde, chamaram os pretos, fizeram as orações da noite e foram-se todos deitar. Eu fui para o meu quarto com a vela; pousei-a sobre a mesa, sentei-me numa cadeira em frente da janela e tentei lembrar-me de qualquer coisa que me alegrasse, mas não o consegui. Sentia-me tão abandonado que me apeteceu morrer. As estrelas brilhavam e a folhagem nos bosques rumorejava tristemente. Ouvi ao longe um mocho piar por alguém que morrera e um cão uivar por alguém que ia morrer. O vento tentava dizer-me qualquer coisa que eu não percebia e que me dava arrepios.

    Ouvi depois, lá para a floresta, aquela espécie de som que os espíritos fazem quando tentam dizer o que os atormenta e, não conseguindo fazer-se entender, não podem sossegar na campa e vêm de noite lamentar-se. Estava tão triste e assustado, desejava tanto uma companhia! Trepou-me uma aranha pelo ombro, dei-lhe um piparote que a atirou para cima da vela e, antes de poder valer-lhe, encarquilhou-se toda. Não era preciso explicarem-me ser aquilo de mau agoiro e que estava para me acontecer alguma desgraça. Tive muito medo e quase atirei com a roupa fora. Levantei-me e dei três voltas sobre o mesmo trilho, benzendo-me de cada vez. Atei uma madeixa de cabelo com linha para afastar as bruxas, mas sem fé nenhuma. É costume fazer-se isto quando, em vez de pregarmos sobre a porta uma ferradura que encontrámos, a perdemos; mas nunca ouvi dizer que era a maneira de afastar a desgraça no caso de matarmos uma aranha.

    Sentei-me todo a tremer e tirei o cachimbo para fumar, pois na casa reinava um silêncio de morte e a viúva não daria por isso. Muito tempo depois ouvi o relógio ao longe, na cidade, — bum, bum, bum — dar doze badaladas. Depois, tudo continuou silencioso, mais silencioso que nunca. Senti então partir-se um ramo lá em baixo entre o arvoredo. Alguma coisa se mexia. Fiquei muito quieto à espera. Logo a seguir ouvi um impercetível miau, miau. Ótimo! — «Miau! Miau!» — fiz eu, o mais baixinho que pude, e, apagando a luz, pulei da janela para o telheiro. Deixei-me escorregar até ao chão e gatinhei por entre as árvores. Lá estava realmente o Tom Sawyer à minha espera.

    Capítulo 2

    Pé ante pé, fomos seguindo até ao fim do jardim da viúva, pelo carreiro entre as árvores, curvados, para não sermos arranhados pelos ramos. Ao passarmos em frente da cozinha, tropecei numa raiz e fiz barulho. Agachámo-nos e ficámos muito quietos. Jim, o preto grande da menina Watson, estava sentado à porta da cozinha. Podíamos vê-lo muito bem porque havia luz por detrás dele. Levantou-se, estendeu o pescoço e escutou por uns minutos; depois disse:

    — Quem tá aí?

    Pôs-se outra vez à escuta e veio em bicos dos pés direitinho até onde estávamos. Quase podíamos tocar-lhe. É possível que tivessem passado muitos minutos. Não se ouvia qualquer ruído. E nós ali tão perto uns dos outros! Comecei a sentir comichão num tornozelo, mas não me atrevi a coçá-lo. Senti depois comichão no ouvido e logo a seguir nas costas, mesmo ao meio, entre as espáduas. Parecia que morria, se não me coçasse. Tenho notado isto muitas vezes; se estamos com gente de cerimónia ou num enterro ou tentando adormecer quando não temos sono, enfim, quando estamos em qualquer lugar onde não convém que nos cocemos, sentimos comichão por todos os lados. Jim disse pouco depois: — Quem é? Onde tá? Macacos mordam a mim se eu não ouvi gente. Mim já sabe que vai fazê. Vai ficar aqui até ouvir outra vez. — Sentou-se no chão entre mim e Tom, encostou-se a uma árvore, e estendeu as pernas de tal maneira que quase tocava nas minhas. Eu tinha comichões no nariz, tantas, que as lágrimas me chegaram aos olhos, mas não me atrevia a coçar-me. Agora era lá dentro, depois por baixo e eu não sabia o que havia de fazer para estar quieto. Este tormento durou uns seis ou sete minutos e pareceu-me uma eternidade. Sentia comichão em mais de onze partes do corpo. Não podia aguentar aquilo um minuto mais, mas cerrei os dentes, disposto a tentar. Nesta altura Jim começou a respirar pesadamente e depois ressonou. Fiquei logo bem.

    Tom fez-me sinal — um pequeno ruído com a boca — e começámos a arrastar-nos de gatas. Já um pouco distantes, segredou-me que ia amarrar Jim à árvore. Pedi-lhe que não o fizesse; ele podia acordar e dar alarme e descobriam que eu não estava em casa. Tom disse então que não tínhamos velas que chegassem e que ia à cozinha buscar mais. Eu não queria ir, com medo que Jim acordasse, mas ele quis experimentar. Entrámos então sorrateiramente e trouxemos três velas. Tom deixou cinco cêntimos em cima da mesa para as pagar. Depois saímos. Eu suava de aflição para me ver fora dali, mas Tom não se satisfez sem se arrastar para junto de Jim e pregar-lhe uma partida. Fiquei à espera, pareceu-me que por muito tempo, pois estava tudo silencioso e assustado.

    Assim que Tom voltou, cortámos pelo atalho à roda da sebe do jardim e subimos o monte do outro lado da casa. Tom disse que tinha tirado o chapéu a Jim e lho tinha pendurado num galho, por cima da cabeça, e que ele se mexera, mas não acordara. Mais tarde Jim contou que as bruxas lhe tinham deitado um feitiço, fazendo-o cavalgar através de todo o Estado, trazendo-o outra vez para debaixo das árvores, e pendurado o chapéu num ramo para ele saber quem fizera aquilo. Quando tornou a contar isto, disse que o tinham levado a Nova-Orleães. E cada vez que contava a história, alargava o caminho mais e mais, até chegar a dizer que o levaram à volta do mundo inteiro, o deixaram muito cansado, e que trazia o rabo cheio de bolhas, da sela. Jim fazia grande luxo nesta história e já mal olhava para os outros pretos. Havia pretos que vinham de milhas e milhas de distância só para ouvir o Jim, que passou a ser o preto mais considerado das redondezas. Apareciam pretos desconhecidos, que ficavam ali de boca aberta a olhar para ele como se fosse a sétima maravilha. Os pretos falam constantemente de bruxas, à noite, perto do fogo, mas se algum contava qualquer coisa destas quando Jim passava, ele dizia logo — Hum: que sabe você di bruxa? — e o outro embuchava e ia sentar-se a um canto. Trazia sempre a moeda de cinco cêntimos ao pescoço, pendurada num cordel, declarando ser um feitiço que o diabo lhe dera com as próprias mãos para que pudesse curar com ela toda a gente e chamar as bruxas só com pronunciar não sei que palavras, que ele nunca disse quais eram. Vinham pretos de todos os lados e presenteavam-no com toda a espécie de coisas, só para darem uma olhadela à moeda, mas não lhe tocavam, por o diabo lhe ter posto as mãos. Jim já não valia nada como criado; tornara-se muito importante desde que vira o diabo e cavalgara com as bruxas.

    Ora, quando Tom e eu chegámos ao cimo do monte, avistámos a vila com três ou quatro luzinhas acesas nas casas onde certamente havia alguém doente. As estrelas brilhavam, e, lá em baixo, o rio muito largo corria sereno e majestoso. Descemos o monte e encontrámos Jo Harper, Ben Rogers e mais dois ou três rapazes escondidos na alcaçaria velha. Desamarrámos o catraio e largámos pelo rio abaixo até à brecha grande, num dos lados da colina, a duas milhas e meia, e saltámos em terra.

    Dirigimo-nos para uns arbustos, e Tom obrigou-nos todos a jurar que guardaríamos segredo, ao mesmo tempo que nos mostrava uma caverna que havia na parte mais densa da ramagem. Acendemos então as velas e arrastámo-nos de joelhos para dentro. Andámos mais de duzentas jardas até onde a caverna se alargava. Tom seguiu, tateando ao longo de várias passagens, e pouco depois enfiou por baixo de um muro onde havia um buraco que mal se distinguia. Seguimos, por uma passagem estreita, até chegarmos a um quarto húmido, abafado e frio, onde parámos. Tom disse então:

    — Vamos organizar um bando de ladrões que há de chamar-se a «Quadrilha de Tom Sawyer». Todos os que quiserem fazer parte dela, terão que prestar juramento e assinar o nome com o seu sangue.

    Todos queriam. Tom desdobrou uma folha de papel em que tinha escrito o juramento e leu-o. Por ele se obrigavam todos a defender a quadrilha e a nunca desvendar os seus segredos. E se alguém fizesse mal a qualquer do bando e um deles fosse designado para o matar, a ele e à família dele, tinha de o fazer, e não podia comer nem dormir enquanto os não matasse e lhes deixasse marcada no peito uma cruz, que era o distintivo da quadrilha. E ninguém, a não ser os do bando, podia servir-se desse distintivo; se o fizesse, devia ser perseguido e, se tornasse a fazê-lo, era preciso matá-lo. E se algum dos do bando revelasse os seus segredos, devia cortar-se-lhe o pescoço, queimar-se-lhe o corpo e espalharem-se as suas cinzas aos quatro ventos. O seu nome escrito a sangue desapareceria da lista e nunca mais seria pronunciado pelos da quadrilha, mas amaldiçoado e esquecido para todo o sempre.

    Todos disseram que era um belo juramento e perguntaram a Tom se era da cabeça dele. Ele respondeu que o escrevera, em parte, mas que o resto fora tirado dos livros de piratas e ladrões e que todas as quadrilhas que se prezavam tinham um.

    Alguns acharam melhor matar também a família daquele que revelasse os segredos. Tom achou boa a ideia e, pegando num lápis, ajuntou esta cláusula ao juramento. Então Ben Rogers observou:

    — Mas aqui o amigo Huck Finn não tem família. Como vai resolver isso?

    — Então não tem pai? — perguntou Tom Sawyer.

    — Sim, tem um pai que nunca se sabe onde está! Dantes ficava para ali, bêbado, deitado ao lado dos porcos; mas há um ano ou mais que ninguém o vê.

    Discutiram o caso e iam tirar-me da lista, porque, diziam eles, todos deviam ter uma família ou qualquer pessoa que se pudesse matar, de contrário não havia justiça reta. Ninguém sabia o que se havia de fazer — estavam todos sentados, quietos e pensativos. Eu estava quase a chorar. De repente, lembrei-me da maneira de resolver o caso: oferecendo-lhes a menina Watson. Podiam matá-la a ela. Todos exclamaram:

    — Essa serve, essa serve! Está tudo arranjado. O Huck pode entrar.

    Espetaram, então, alfinetes nos dedos para fazer sangue e poderem assinar. Eu pus também a minha assinatura no papel.

    — Agora, — perguntou Ben Rogers — qual é o objetivo desta quadrilha?

    — Nada, a não ser o roubo e a morte — respondeu Tom.

    — Mas que vamos nós roubar? Casas, gado, ou...

    — Qual história! Roubar gado e outras coisas assim não é roubar, é furtar — disse Tom Sawyer. — Nós não somos gatunos, isso é insignificante; nós somos salteadores. Assaltaremos as diligências e as carruagens nas estradas, usando máscaras, e matamos as pessoas, tirando-lhes os relógios e o dinheiro.

    — É preciso matar sempre as pessoas?

    — Está claro, é melhor. Alguns são de opinião contrária, mas em geral é considerado preferível matar toda a gente, com exceção de um ou outro que se traz para a caverna e se guarda até ser resgatado.

    — Resgatado? Que é isso?

    — Não sei. Mas é o que eles fazem. Li isto nos livros. Por isso, naturalmente, temos de o fazer.

    — Mas como, se não sabemos o que é?

    — Ora bolas, tem de ser. Não te estou a dizer que vem nos livros? Queres fazer coisas de maneira diferente da que vem nos livros e atrapalhar tudo?

    — Isso é muito bonito, Tom Sawyer. Mas como diabo há de essa gente ser resgatada, se nós não sabemos como é? É aí que quero chegar. Que imaginas tu que possa ser?

    — Bem, eu não sei, mas talvez seja guardá-los até serem resgatados, quer dizer, que os guardamos até morrerem.

    — Isso assim já me parece melhor. Serve. Porque não o disseste há mais tempo? Havemos de guardá-los até que se resgatem pela morte — e hão de ser uns bons maçadores a comerem tudo e a fazerem o possível para fugir.

    — Não fales tanto, Ben Rogers. Como hão de fugir, se fica sempre um guarda ao pé deles, pronto a dar-lhes um tiro, se mexerem um dedo?

    — Um guarda? Bem, muito bem! Agora é preciso ficar alguém toda a noite sem dormir só para tomar conta deles. Isso parece-me asneira. Porque não havemos de pegar num cacete e resgatá-los logo que eles cá cheguem?

    — Porque não vem assim nos livros — aí está. Ou fazemos tudo como deve ser, ou não. A questão é essa. Não percebes que as pessoas que escrevem os livros sabem melhor como se hão de fazer as coisas? Pensas que os podes ensinar a eles, não? Deixa-te disso. Não senhor, havemos de resgatá-los como é costume.

    — Está bem, eu não me importo, mas é um processo idiota, já disse. E olha lá, também matamos as mulheres?

    — Olha, Ben Rogers, se eu fosse tão ignorante como tu nunca proferia palavra. Matar as mulheres? Nunca se viu semelhante coisa nos livros. Levam-se para a caverna e trazem-se nas palminhas. Mais tarde elas apaixonam-se e não querem voltar para casa.

    — Se é assim, passa, mas não me cai lá muito bem. Daqui a pouco temos a caverna tão apinhada de mulheres e de homens, à espera de serem resgatados, que não há lugar para os salteadores. Continua, eu não tenho nada que me meter.

    O pequeno Tommy Barnes dormia. Quando o acordaram, assustou-se e começou a chorar, dizendo que queria ir para casa, para a mãe, e já não queria ser ladrão.

    Fizeram todos muita troça, e chamaram lhe piegas. Ficou danado, e disse que ia contar os segredos a toda a gente. Tom deu-lhe cinco cêntimos para o calar, depois disse que podíamos ir para casa, que haveria outra reunião na semana seguinte e que nessa altura faríamos um roubo e mataríamos algumas pessoas.

    Ben Rogers disse que não podia sair senão aos domingos e queria que se retinissem no domingo seguinte, mas os outros acharam que era pecado, e o caso ficou arrumado. Combinaram encontrar-se o mais breve possível para marcar o dia; elegeram Tom Sawyer para primeiro capitão da quadrilha e Jo Harper para segundo, e depois foram todos para casa. Quando subi ao telheiro e me esgueirei pela janela, despontava o dia. O meu fato novo estava sebento e enlameado e mal podia ter-me nas pernas.

    Capítulo 3

    Na manhã seguinte, levei uma trepa da menina Watson por causa do fato, mas a viúva não ralhou comigo. Limpou a gordura e a lama com uma cara tão triste que jurei a mim mesmo ter juízo por algum tempo, se pudesse. A menina Watson levou-me ao seu gabinete e pôs-se a rezar, mas não adiantou coisa alguma. Disse-me que, se rezasse todos os dias, teria tudo o que pedisse. Não era verdade. Fiz a experiência: uma vez recebi uma linha de pesca sem anzóis. Como assim não me servia para nada, fiz três ou quatro tentativas para os obter. Não sei porquê, não deram resultado. Por fim, um dia, pedi à menina Watson que rezasse ela por mim, mas respondeu-me que eu era parvo. Nunca me explicou a razão e nunca cheguei a percebê-la.

    Um dia, sentei-me na floresta e pus-me a pensar bem na história. Disse de mim para mim: «Se a gente pode ter tudo o que quere, rezando, porque não recebe o Diácono Winn o dinheiro que perdeu com o porco? Porque não volta outra vez às mãos da viúva a caixinha de prata do rapé que lhe roubaram? Porque não engorda a menina Watson?»

    «Não — disse eu com os meus botões — isto não dá nada». E fui dizê-lo à viúva. Respondeu-me que o que se podia obter rezando eram «bens espirituais». Aquilo não me entrava cá dentro. Ela explicou melhor: eu tinha de ajudar os outros, fazer pelos outros tudo o que pudesse; olhar por todos e não pensar nunca em mim mesmo. Isto também dizia respeito à menina Watson, pelos vistos. Meti-me na floresta e matutei muito sobre o caso, mas não via qualquer vantagem — a não ser para os outros; por isso achei melhor não me ralar e deixar correr. Às vezes a viúva falava-me da Providência de uma maneira que até fazia água na boca; mas era mais que certo, no dia seguinte, a menina Watson deitar tudo a perder. Pelos modos havia duas Providências. A da viúva fazia um vistão com um pobre diabo como eu. Agora, se a menina Watson a tomava à sua conta, estava perdida. Pensei bem nisto e decidi que pertenceria à da viúva, se Ela me quisesse, embora não percebesse muito bem o que ganhava com isso, sendo eu tão ignorante, tão grosseiro e tão mesquinho.

    Havia mais de um ano que meu pai não aparecia. Não tinha vontade alguma de o ver. Quando não estava bêbado, deitava-me as mãos e enchia-me de pancada, apesar de eu me meter quase sempre na floresta quando ele aparecia. Mas, por esta altura, começou a correr que o tinham encontrado afogado no rio a umas doze milhas da vila. Parecia que era ele. Disseram que o morto era exatamente da mesma estatura, estava todo esfarrapado e tinha o cabelo muito comprido, — tal qual meu pai — mas não conseguiam reconhecê-lo pela cara, porque tinha estado tanto tempo na água que aquilo até já nem era cara. Disseram que o tinham encontrado a flutuar de costas. Tiraram-no e enterraram-no na margem do rio. Não fiquei nada sossegado, porque me lembrei de uma coisa: sabia muito bem que os homens, quando se afogam, não flutuam de costas, mas com a cara dentro da água. Por isso não devia ser meu pai, mas qualquer mulher vestida de homem. Voltei a estar inquieto. Sabia que o velho apareceria mais dia menos dia. Como eu desejava que isto não acontecesse!

    Brincámos aos ladrões, uma vez por outra, durante um mês, e depois desisti. Desistiram todos. Não tínhamos roubado nada nem matado ninguém; era tudo a fingir. Rompíamos da floresta aos saltos e aos gritos, calamos sobre os porqueiros e as mulheres que levavam legumes ao mercado, mas não chegávamos a prendê-los. Tom Sawyer chamava aos porcos «lingotes» e às cenouras e outras coisas assim «joias». Voltávamos todos para a caverna com grandes farroncas pelo que tínhamos feito, as pessoas que tínhamos morto e marcado a ferro. Eu realmente não via o proveito daquilo. Uma vez, Tom mandou dois rapazes atravessar a cidade com um ramo em chamas, a que ele chamou guião (era o sinal para a quadrilha se juntar), e disse-nos que, por informação secreta dos espiões, sabia que, no dia seguinte, um grande número de mercadores espanhóis e árabes riquíssimos ia acampar na Cova Funda com os seus duzentos elefantes, seiscentos camelos e mais de um milhar de mulas de carga, ajoujados de diamantes, e que estavam guardados apenas por quatrocentos soldados; por isso podíamos armar-lhes uma emboscada, — como ele lhe chamava — matá-los todos e roubar as coisas. Mandou-nos limpar as espadas e as espingardas para estarmos prontos. Nunca assaltávamos nada, uma carroça de nabos que fosse, que não nos fizesse polir as armas, embora estas não passassem de ripas ou de paus de vassoura. Bem podíamos nós esfregá-las até cair, porque continuavam a valer o mesmo que antes. Eu por mim não acreditava que déssemos conta de tanto espanhol e tanto árabe, mas morria por ver os camelos e os elefantes; por isso no dia seguinte, um sábado, tomei parte na emboscada. Assim que recebemos ordem, saímos da floresta e corremos pelo monte abaixo. Não vimos espanhóis, nem árabes, nem camelos nem elefantes. Não passava de uma escola, (e primária ainda por cima) que fazia um piquenique. Desbaratámos aquilo tudo e perseguimos as crianças até à Cova, mas não tirámos nada, além de alguns bolos e doces, embora Ben Rogers apanhasse uma’ boneca de trapos e Jo Harper um livro de salmos e um tratado. Entretanto, surgiu o professor, que nos fez largar tudo e nos pôs a andar. Não vi quaisquer diamantes e disse-o a Tom Sawyer. Respondeu-me que havia lá muitos, e árabes também, e elefantes e outras coisas. Perguntei por que razão a gente não vira nada. Ele respondeu que, se eu não fosse tão ignorante, e tivesse lido um livro chamado Dom Quixote, não precisava de perguntar. Disse que era tudo por encanto, que havia lá centenas de soldados, elefantes, tesouros e não sei que mais, mas que os inimigos, a quem ele chamava mágicos, tinham transformado tudo numa escola primária, por maldade. Então respondi: — Está bem, nesse caso devíamos ter caído sobre os mágicos. — Tom Sawyer retorquiu que eu era tapado como uma porta.

    — Olha que um mágico — dizia ele — pode chamar uma data de génios que te fazem em bocadinhos enquanto o diabo esfrega um olho. Os génios são altos como árvores e fortes como torres.

    — Olha lá, — lembrei eu — e se nós chamássemos os génios para nos ajudarem, não podíamos dar cabo da outra malta?

    — Vai lá chamá-los!

    — Eu cá, não sei. Como é que se chamam?

    — Ora, esfrega-se uma candeia velha ou uma argola de ferro e os génios vêm de escantilhão, acompanhados de trovões, relâmpagos e muito fumo por todos os lados, e fazem logo tudo o que se lhes manda. Para eles, não é nada arrancar uma torre e dar com ela na cabeça de um professor primário ou de outro homem qualquer.

    — Mas quem é que os faz andar nessa mexida?

    — Aquele que esfrega a candeia ou a argola, está bem de ver. E têm de fazer o que ele mandar. Se ele lhes disser para construírem um castelo com o comprimento de quarenta milhas, todo feito de diamantes, e enchê-lo de pastilhas elásticas ou outra coisa que lhe apeteça, e os mandar buscar a filha do imperador da China para se casar com ela, têm que obedecer-lhe, e isto antes do sol nascer na manhã seguinte. Há mais: são obrigados a andar com o castelo à roda do mundo e colocá-lo exatamente onde ele quiser. Percebes?

    — Então — disse eu — acho que são uns parvos em não guardarem o castelo para si em vez de o desperdiçar dessa maneira. E o que é mais — se fosse um deles, mandava tudo para o diabo e não largava o que estava a fazer, lá porque me esfregavam uma candeia velha.

    — Que maneira de falar, Huck Finn! Tinhas de obedecer, se ele a esfregasse, quer quisesses quer não.

    — O quê, eu, alto como uma árvore e forte como uma torre? Não há dúvida, vinha logo; mas garanto-te que o havia de fazer a ele subir à árvore mais alta do mundo.

    — Ora bolas, não vale a pena falar contigo, Huck Finn. Não sei o que é, mas nunca percebes nada, és um verdadeiro cabeça de burro.

    Eu cismei sobre aquilo durante dois ou três dias e decidi averiguar se era verdade. Arranjei uma candeia velha e uma argola de ferro e meti-me na floresta. Ali, esfreguei, esfreguei até suar como um índio, na esperança de arranjar um palácio para depois o vender. Mas qual! os génios não apareceram. Então cheguei à conclusão

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