O Regresso de Matias
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O Regresso de Matias - Gabrielle Biondi
Copyright © 2023 – Gabrielle Biondi
1ª edição eletrônica: fevereiro de 2023
Capa: André Stenico
Projeto eletrônico: Gabriela Dias
Revisão: Sônia Cervantes
Coordenação editorial: Murilo Viana
ISBN 978-65-991364-0-5
O Regresso de Matias | Gabrielle Biondi pelo Espírito Lúcio
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PARTE I
CAPÍTULO 1
INFÂNCIA
Pedi aos meus mentores a oportunidade de narrar estas memórias a fim de mostrar como pude me encontrar e me perdoar. Perdoar-se é tão essencial quanto perdoar o próximo e, somente assim, consegue-se encerrar uma história.
A encarnação que menciono se deu no final século XIX, na cidade de Bolonha, Itália. Meus pais eram comerciantes e tínhamos um açougue, sendo considerados uma família abastada para os padrões da época.
Desde o meu nascimento meus pais, mas especialmente minha mãe, perceberam que eu tinha uma certa dificuldade em brincar com meus irmãos e demais crianças de nosso convívio. Eu era muito agressivo, com temperamento bastante tempestuoso e facilmente me exasperava. Pelo instinto de preservação, eles se afastavam de mim.
Lembro-me de uma vez em que agredi Ana, minha irmã um ano mais nova. Ela havia pegado um brinquedo meu e eu bati nela até mesmo após ela já estar desmaiada, cessando apenas com a chegada de meu pai. Ele me puxou pelo braço e, desesperado, gritou para que minha mãe socorresse Ana. Levou-me para o quarto e me bateu com o cinto até que eu sangrasse. Acredito que se eu pedisse para ele parar, ou se ao menos chorasse e demonstrasse sofrimento, ele teria parado, mas eu permaneci calado, como se aquilo não estivesse acontecendo comigo. Nessa ocasião, eu tinha oito anos.
Depois desse incidente as coisas mudaram na minha casa. Eu sentia que até meus pais tinham medo de mim e das minhas reações. Minha mãe, sempre tão carinhosa, passou a ter receio da minha presença. Ana não olhava mais para mim e corria quando eu chegava. Mas isso não me deixava triste. Eu me sentia forte e invencível.
Meu isolamento foi se tornando cada vez mais evidente, e até passei a fazer as refeições no meu quarto. Naquele ano, minha mãe engravidou novamente. Além de mim, Ana e Adelaide, teríamos Alfredo, mas isso não me causou comoção alguma.
Um dia Alfredo, que ainda não completara cinco anos, entrou no meu quarto, o que me causou um desequilíbrio imenso já que eu não permitia que ninguém ali entrasse sem a minha presença. Eu tinha quatorze anos e vivia assim: limpavam o quarto quando eu saía para me banhar e, quando eu voltava, não deveria haver mais rastro de qualquer pessoa. Nesse dia, ele entrou cambaleando, tentando empurrar a porta para passar e emitindo sons sem sentido. Eu tentei controlar minha ira, gritei para que saísse dali, mas ele achava que estávamos brincando. Tentei com todas as minhas forças me manter sentado e calmo, mas, quando me dei conta, eu já o havia empurrado escada abaixo.
Depois daquele dia, as coisas tornaram-se diferentes. Em vez de me sentir invencível, me sentia um estorvo. Certa noite ouvi uma conversa de meus pais com o padre, na qual eles lhe pediam que os socorressem, pois era perigoso manter-me em casa já que logo eu cresceria e me tornaria mais forte. Não tardou e os três saíram. Senti certo receio a respeito do meu destino, mas não tive a menor curiosidade em saber como estava Alfredo. Passados alguns dias, meu pai trouxe uma cadeira especial para meu irmão, e aquilo despertou minha curiosidade. Fui até seu quarto para espiar e vi quando o pegavam no colo para colocar naquela cadeira. Suas perninhas estavam flácidas e, por isso, conclui que ele havia perdido alguns movimentos, mas essa constatação não me causou nenhum remorso.
Passado um mês, meu pai veio ao meu quarto, me entregou um embrulho de papel e disse: – Vista-se. Eu o aguardo aqui fora.
Vesti a roupa sem fazer perguntas. Saí do quarto e seguimos a cavalo até a igreja. O padre já nos aguardava na porta e eu fique esperando ao lado do cavalo enquanto eles conversavam. Enquanto isso, observei aquele local que, embora fosse uma igreja, era sombrio e escuro, com a aparência de guardar muitos segredos. Reparei que a túnica que meu pai me dera era semelhante à dos acólitos que auxiliavam o padre.
– Venha filho, vou lhe mostrar suas instalações.
Segui o padre por corredores úmidos, escuros e malcheirosos, reparando que não havia crianças ali. De fato, eu era o mais moço. Andamos por todo o local, e fui apresentado aos lugares onde faria minhas refeições, tomaria banho e dormiria. Havia horário para acordar, para orar e para exercer as tarefas que seriam minha responsabilidade dali em diante.
Eu não sentia medo e, muito menos, falta da minha família. Ao terminar de ver tudo, o padre me conduziu até o pequeno quarto de dormir. Era bastante pequeno, com uma janela de no máximo dois palmos, espaço suficiente apenas para entrar luz. Era ainda bem alta, impossibilitando que se olhasse para fora. Na parede havia uma cruz e a cama era bem simples, coberta com uns trapos sobre os quais eu dormiria. E assim, não tardei a dormir tranquilamente, como o fiz em todas as outras noites da minha vida.
Às cinco da manhã o sino tocou informando que era hora de iniciarmos as atividades. Deveríamos estar limpos e presentes às cinco e meia no salão de refeições. Já no local, recebi um copo com café e um pão. Dez minutos após termos recebido a comida, o sino tocou novamente, e seguimos em silêncio para a cúpula de orações, lugar muito escuro e úmido. Ali, ficaríamos várias horas em oração até que o sino tocasse novamente. Fui, então, incumbido de cuidar dos animais, devendo dar-lhes água e ração quatro vezes ao dia. A tarefa, aparentemente fácil, se tornava penosa, pois as distâncias eram grandes e os galões de água e os sacos de ração eram bastante pesados. Ao fim do dia, terminadas nossas tarefas, comíamos, orávamos e íamos dormir. E essa foi a minha rotina por dois meses.
Eu era o mais novo de todos os rapazes que estavam ali. Ninguém se falava e o silêncio absoluto era constante. Tive a impressão de que todos que estavam ali haviam causado algum incômodo às suas famílias. Eu não era uma exceção, porém, apenas eu não recebia cartas, pães, frutas e outros presentes.
Às vezes íamos ao confessionário, onde deveríamos falar dos nossos pecados e do nosso arrependimento. Entretanto, eu era desprovido de qualquer remorso e, em uma de minhas confissões, me sentei e disse friamente ao irmão que estava do outro lado:
– Não tenho nada a dizer.
– Não está arrependido, irmão Matias?
– Não.
Assim, me levantei e sentei novamente nos bancos frios onde deveríamos ficar aguardando que todos terminassem as suas confissões. Naquela noite, após o término, todos foram dispensados para que retornassem às suas alcovas, exceto eu. O padre pediu que eu o acompanhasse e caminhamos até o celeiro. Era uma noite bonita, com o céu iluminado pelo brilho dos astros.
– Matias, me conte sobre sua experiência aqui nos últimos dias.
– Eu segui os horários e alimentei os animais.
– Não, meu filho, é sobre o seu íntimo. Esses dias de silêncio não o fizeram pensar?
– Não, padre.
– Matias, olhe para o