O software como mercadoria e sua distinção da propriedade intelectual: uma revisão dos conceitos de circulação e de mercadoria
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O software como mercadoria e sua distinção da propriedade intelectual - Salvador Cândido Brandão Junior
1. CONTEXTUALIZAÇÃO DA DISCUSSÃO SOBRE A TRIBUTAÇÃO DO SOFTWARE E A CONFUSÃO COM A LICENÇA DE USO
Inicialmente, é necessário apresentar a discussão sobre a incidência do ICMS, discorrendo sobre a concepção de circulação e de mercadoria, a fim de contextualizar a motivação do objeto deste estudo.
Toda obra intelectual busca uma forma de expressão, o que significa que a partir de uma propriedade intelectual se desenvolvem bens, que podem materializar-se em suportes físicos ou em arquivos digitais.⁴⁴
Isso pode ocorrer tanto com produtos industrializados, quanto com livros, músicas, filmes, como com softwares, aqui tratado como software-produto na definição de Denis Borges Barbosa,⁴⁵ assim entendidos como aqueles colocados em circulação no mercado para atender a consumidores indefinidos.
Tal produto é uma unidade, uma cópia, extraída da propriedade intelectual para distribuição no mercado. Todos os produtos colocados no mercado – as mercadorias –, são destacados da propriedade intelectual que lhe dão origem, seja uma patente, desenho industrial, marca ou um direito de autor. Em outras palavras, o consumidor tem interesse na mercadoria, e não na propriedade intelectual.
Ao adquirir um smartphone ou um automóvel, por exemplo, o consumidor pretende o produto, a utilidade que ele fornece já como resultado de uma atividade produtiva ou intelectual, não sendo de seu interesse nessa transação a propriedade intelectual envolvida na produção do aparelho, que, como dito, podem ser desde marcas, patentes e desenho industrial, bem como direitos de autor.
Mantendo ainda o exemplo do smartphone: nesse produto estão envolvidas diversas propriedades intelectuais, como patentes de invenção ou de modelo de utilidade de algum chip, câmera ou algum elemento físico do produto, assim como desenho industrial e a marca. Também há direitos de autor em relação ao software embarcado, como o firmware já instalado na memória ROM,⁴⁶ bem como o sistema operacional do aparelho.
Toda essa variedade de propriedades intelectuais recebe proteção específica da legislação. O mesmo pode ser dito em relação ao automóvel, que além da marca e da patente, também pode possuir software no aparelho de som, no sistema de monitoramento do motor ou no computador de bordo do veículo.
Para o consumidor, esses aspectos são irrelevantes, pois seu interesse é o produto; o que o atrai é a utilidade que a mercadoria lhe traz. No entanto, em qualquer caso, o usuário sempre deve respeitar a Lei de Direitos Autorais e Lei de Propriedade Industrial para não cometer infrações aos respectivos direitos de propriedade intelectual, sob pena de sanções civis e penais.⁴⁷
Em relação a todos esses direitos de propriedade intelectual envolvidos em uma mercadoria, pode-se afirmar que, ao comprar um produto, haverá contratos de licença de uso, mesmo que tácitos, estipulados em lei e aos quais o consumidor adere, na medida em que, conforme Newton Silveira,⁴⁸ os direitos de propriedade intelectual são direitos reais oponíveis contra todos – erga omnes.
Fixadas essas premissas, acredita-se ser irrelevante a transmissão da propriedade intelectual do software-produto para fins de incidência do ICMS, justificando a análise do ordenamento jurídico a fim de encontrar respaldo para demonstrar essa desnecessidade. Este ponto é preciso reforçar, porque a doutrina de direito tributário⁴⁹ costuma afirmar não ser possível a incidência do ICMS sobre operações envolvendo software-produto, na medida em que há apenas uma licença de uso do programa, sem transferência da propriedade do software (leia-se, dos direitos autorais), requisito necessário para haver uma operação relativa à circulação de mercadorias e consequente incidência do imposto.
Nesta linha, as discussões doutrinárias acerca da impossibilidade da tributação do ICMS sobre licença de uso de software-produto, ou de qualquer outro bem digital, fundam-se no argumento de que as operações que resultam em circulação de mercadoria devem representar transferência de sua titularidade. Isso porque, tradicionalmente, o ICMS é um imposto associado aos negócios jurídicos de compra e venda de mercadorias, operação que tem como característica a transferência de domínio sobre o bem.
Geraldo Ataliba, em que pese afirmar que a incidência do ICM compreende uma gama de operações muito mais ampla do que apenas negócios jurídicos de compra e venda, ensina que a mudança de titularidade da mercadoria, assim entendida como a mudança do poder de dispor sobre o bem, é o significado jurídico do termo circulação
, sendo esta gerada por um negócio jurídico envolvendo mercadorias.⁵⁰
Outrossim, há argumentos pela impossibilidade de incidência do ICMS sob a premissa de que o software não pode ser considerado mercadoria por se tratar de bem incorpóreo.
Nesta trilha de pensamento, mercadoria, para fins desse tributo, é bem móvel corpóreo objeto de operações mercantis. Esta conclusão decorre de um raciocínio no sentido de que o constituinte, quando das demarcações constitucionais das competências para instituição dos impostos, adotou uma concepção pré-jurídica de mercadoria ao utilizar esse termo, conforme tratamento conferido pelo direito comercial, setor do direito responsável pela regulação das operações mercantis.⁵¹
A conclusão de que o termo mercadoria
contém o significado conferido pelo direito comercial decorre do raciocínio segundo o qual os termos utilizados pelo constituinte têm um uso jurídico conhecido e já consolidado quando os escolhe para demarcar as competências tributárias.
Sobre a utilização de conceitos jurídicos preexistentes nas demarcações de competências tributárias, Paulo Ayres Barreto⁵² ensina que o intérprete deve iniciar a investigação de conceitos percorrendo o ordenamento jurídico para encontrar a concepção jurídica preexistente e, com isso, concluir se foi esse o sentido adotado pela Constituição ou se foi alterado, necessitando de uma carga argumentativa para tanto.
Toda essa discussão doutrinária específica para o ICMS deve ser demonstrada no início deste trabalho. A fim de possibilitar a proposição de uma outra perspectiva para a matéria, a análise inicial será descritiva, para ilustrar relevante entendimento doutrinário acerca do núcleo de incidência do ICMS, demarcado na Constituição como operações relativas à circulação de mercadorias e prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e comunicação. No entanto, é preciso ressaltar que não haverá uma descrição dos serviços sujeitos à incidência do ICMS.
Com isso, sempre que se utilizar a sigla ICMS
, a referência serão as operações relativas à circulação de mercadorias. Quando e se houver o uso da sigla para alguma menção às prestações de serviço de transporte intermunicipais e interestaduais e de comunicação, a referência será expressa.
Neste primeiro momento, portanto, será realizada uma análise sobre o que parcela relevante da doutrina entende por operação
, circulação
e mercadoria
, para que essas concepções sejam objeto de conclusões e críticas no decorrer do trabalho. Como ensina Misabel Derzi,⁵³ é preciso identificar esses conceitos, pois são interligados e se complementam na identificação da hipótese de incidência do imposto.
Mais adiante, no capítulo , esta análise será contraposta com uma investigação histórica desse imposto e sua natureza quando da introdução do ICM no sistema tributário pela Emenda Constitucional n. 18/1965. Também serão investigadas as concepções do direito comercial acerca da mercadoria e de quais operações estão relacionadas com sua circulação, para fins de se concluir o que representa circulação e o que esse imposto significava para o constituinte quando demarcou essa competência tributária.
Por fim, a pesquisa da concepção de circulação
para o direito privado permitirá identificar se sofreu alguma alteração para fins tributários, além de confrontar se o conceito de mercadoria defendido por essa parcela da doutrina de direito tributário corresponde ao conceito preexistente de mercadoria conforme estabelecido pelo direito privado.
1.1.
NÚCLEO DE INCIDÊNCIA DO ICMS – OPERAÇÃO, CIRCULAÇÃO E MERCADORIAS
A materialidade tributária conferida aos estados para instituir imposto sobre operação relativa à circulação de mercadorias está prevista no artigo 155, II,⁵⁴ da Constituição da República, do qual se pode afirmar que o ICMS é um imposto que compreende três materialidades⁵⁵ básicas: i) operações relativas à circulação de mercadorias, ainda que a operação se inicie no exterior; ii) prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal, ainda que iniciada no exterior; iii) prestação de serviços de comunicação, ainda que iniciada no exterior.
Da leitura desse dispositivo é possível identificar que as operações relativas à circulação de mercadorias, bem como as prestações de serviços, podem se referir às operações ou prestações verificadas tanto no mercado nacional, quanto no mercado internacional, donde seria possível a tributação da importação de mercadorias e de serviços pelo ICMS,⁵⁶ o que resta ratificado pelo artigo 155, § 2º, IX, a
, da Constituição.
O problema identificado por esta pesquisa está no conflito de competência derivado da concepção doutrinária corrente sobre a hipótese de incidência do ICMS, compreendida em operações relativas à circulação de mercadorias. Veremos que, para a doutrina, realizar uma operação é celebrar um negócio jurídico que resulta na circulação, cujo significado só pode ser aquele em que há transferência de propriedade da mercadoria, objeto desse negócio jurídico, assim entendida como bem móvel corpóreo objeto de mercancia.
Neste diapasão, são maciças as lições da doutrina no sentido de que as transações envolvendo software-produto não preenchem o critério material da hipótese de incidência do ICMS justamente por faltar a circulação, já que não há transferência de propriedade,⁵⁷ na medida em que a licença de uso apenas permite o uso, com a propriedade do direito autoral do software mantida na esfera de direitos do licenciante.
Iniciemos, então, pela concepção de operação
. Geraldo Ataliba⁵⁸ afirma que o imposto incide sobre a realização de operações, assim entendidas como atos ou negócios jurídicos qualificados pelos termos circulação
e mercadoria
. Circulação e mercadoria, para o autor, são termos que qualificam o substantivo operação
e restringem o universo de negócios jurídicos passíveis de tributação. Portanto, operações são atos regulados pelo direito e produtores de efeitos jurídicos, devendo ser entendidas como sinônimo de negócio jurídico, o qual, necessariamente, resulta numa circulação de um bem específico, a