O Livro dos Elogios
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O Livro dos Elogios - Leonardo Boff
Sumário
Capa
Folha de rosto
Esclarecimento
Primeira Parte - Elogio das virtudes cotidianas
1. Elogio do cuidado: ele é a essência do humano
2. Elogio da hospitalidade: quem acolhe o outro hospeda a Deus
3. Elogio de Héstia, a cuidadora do fogo e do lar
4. Elogio da comensalidade: o comer como rito
5. Elogio da gentileza: gentileza gera gentileza
6. Elogio da modéstia que inibe a arrogância
7. Elogio do coração leve: a simplicidade e a humildade
8. Elogio da luta em favor da vida, contra a morte
9. Elogio de quem doou o coração: a irrestrita solidariedade
10. Elogio da imperfeição e da liberdade de criar
Segunda Parte - Elogio da vida do espírito
1. Elogio da criança que está em nós
2. Elogio do Natal de outrora: o lado mágico do mundo
3. Elogio do boi e do jumento: um milagre de Natal
4. Elogio de um misterioso cartão de Natal vindo de Belém
5. Elogio do Filho do Homem: humano assim só Deus mesmo
6. Elogio do pranto de Deus: chorou pelos que se afogaram
7. Elogio do pranto de Cristo sobre os palácios do Vaticano
8. Elogio do Cristo cósmico: ele está na pedra, na lenha
9. Elogio do Cristo do Corcovado: vê, consola e abençoa
10. Elogio da Mãe de Deus: sofrer com os condenados do inferno
11. Elogio do amor entre Francisco e Clara
12. Elogio a São Francisco: Ribeirinho, fala-me de Deus
13.Elogio de quem esperava o advento de Deus
Terceira Parte - Elogio das narrativas exemplares
1. Elogio da águia: chamados a voar alto e não a rastejar
2. Elogio da mãe que virou beija-flor
3. Elogio do cuidado dos grandes pelos pequenos
4. Elogio do trem da vida: Deus carrega todos, bons e maus
5. Elogio aos afrodescendentes: atualizam a Paixão de Jesus
6. Elogio de uma santa que não conseguia crer na existência de Deus
Quarta Parte - Elogio dos parentes, de próximos e distantes
1. Elogio da mãe: geradora, amorosa e camponesa
2. Elogio do pai: Quem não vive para servir não serve para viver
3. Elogio da companheira: terna, cuidadosa e guerreira
4. Elogio do amigo que tinha ciúmes de Deus
5. Elogio da amiga distante e próxima
Quinta Parte - Elogio das coisas cotidianas
1. Elogio da caneca: sacramento que muda o gosto da água
2. Elogio do toco de cigarro: um último sinal de vida
3. Elogio do pé: com ele andamos, sem ele não haveria futebol
4. Elogio da velha meia de lã: o cuidado maternal
5. Elogio à sesta: no mesmo dia, acordamos duas vezes
6. Elogio do boteco: onde se come sem escrúpulos
7. Elogio da gente boa: estes salvam o mundo
8. Elogio da vela natalina: fez superar a saudade e a solidão
Conclusão - Elogio da Mãe Terra: um hino de celebração
Ficha catalográfica
Esclarecimento
Oelogio se realiza no mundo das excelências: de pessoas diante das quais reverentemente nos curvamos, de histórias que tocam nosso coração, de situações que nos convocam para uma celebração.
Este Livro dos elogios trata de realidades que, por mais cotidianas que sejam, ganharam especial significação existencial. Daí o louvor e o elogio. A vida, no fundo, é feita destas pequenas coisas que não têm preço, mas possuem especial valor.
Uma das vantagens da idade já avançada é possuir a distância necessária para poder olhar para trás e identificar aquelas coisas, aqueles fatos e aquelas estórias que exercem uma função sacramental. Quer dizer, deixaram de ser meras coisas ou fatos objetivos do passado para se transformarem em símbolos, dignos de elogios para o presente.
Na verdade, o sentido da vida está inscrito em tais realidades sacramentais. Elas começam a constituir parte da saga pessoal ou pequenos marcos de nossa caminhada por esta terra.
Nunca são acontecimentos extraordinários; diria até: são insignificantes e sem qualquer relevância maior. Esta é dada pelo coração e pelo afeto. Trata-se de um pequeno toco de cigarro de palha, uma velha meia de lã, uma vela natalina, uma sesta repousante ou um boteco, onde podemos comer sem má consciência.
Ou estórias que se tornaram ilustrações de certos valores que defendemos ou intuições que nos desvelam dimensões ocultas no dia a dia. Especialmente recebem os devidos elogios os parentes e amigos, as virtudes cotidianas do cuidado e da gentileza.
Contam-se estórias cheias de sabedoria, como aquela da Mãe de Deus que se prontificou a ir ao inferno para estar com seus filhos e filhas sofredores, ou a do choro de Deus ao ver os egípcios com seus cavalos se afogando no mar Vermelho e, por fim, o elogio e o louvor à Mãe Terra, nossa única Casa Comum.
A reação é de louvor e de elogio à vida, feita de cacos-mosaicos dessas realidades. Tanto o elogio como o louvor são dimensões do valor que encontramos nas pessoas e da admiração diante de histórias que deixaram marcas profundas em nossa vida. Isso vale principalmente para Deus, aquele Mistério que inunda o profundo de nossa vida. A ele o louvor eterno e o derradeiro elogio.
Nesse espírito escrevi, já há muito tempo, este pequeno poema que me permito publicar.
O derradeiro louvor
Ao chegar, ouvirei a sentença.
Temo e tremo porque é o fim.
Estarei diante da Presença
Que esquadrinha tudo de mim.
Pela última vez, e uma vez ainda,
Ergo a Ti a mão suplicante:
Senhor, o meu louvor nunca finda,
Porque é infinito e constante.
Com o rosto em terra repito:
Só a Ti, só a Ti, o louvor.
Desta vez não falo, mas grito:
Te louvarei para sempre, Senhor.
Julga, Senhor, que teu servo escuta!
Se me mandares para o inferno,
Irei cabisbaixo, mas como quem reluta,
Pois continuarei com o louvor eterno.
Se me mandares para o purgatório,
Irei cantando como os redimidos,
Pois lá é a clínica, o salvatório
Para todos os erros cometidos.
Mas se na tua infinita bondade
Me abrires o céu que busquei,
Me juntarei aos eleitos da eternidade
E então, Pai amado, te louvarei e louvarei…
Sempre quis escrever um Livro dos elogios. De repente senti que havia chegado o momento de fazê-lo, não por mera vontade, ainda que antiga, mas por um secreto imperativo interior, cujo sentido escapa ao meu entendimento.
Este texto, ao lado dos livros teóricos que escrevi, representa o que os alemães chamariam de Kleinliteratur, quer dizer, uma literatura menor. Mas deixemo-nos surpreender: na parte pode estar o todo e no menor pode esconder-se o maior.
Geralmente, é num frasco pequenino, gracioso e genuíno que existe o melhor perfume.
Leonardo Boff
Petrópolis, festa de São Batista de 2016.
Primeira Parte
Elogio
das virtudes
cotidianas
1
Elogio do cuidado: ele é a essência do humano
Nos dias atuais, a humanidade despertou de seu sono profundo, que não lhe permitia ouvir os gritos da Terra junto com os gritos dos pobres. De repente, se deu conta de que a única Casa Comum que temos para habitar está sendo devastada pela forma como a tratamos em nosso afã de explorar todos os seus bens naturais em vista de um crescimento ilimitado.
Ela é um planeta pequeno e com bens e serviços limitados. Não suporta um projeto de crescimento ilimitado. Ela precisa de mais de um ano e meio para repor o que lhe retiramos durante um ano.
Em consequência de nossa voracidade incontrolada, os ecossistemas estão sendo dizimados, os rios poluídos, as florestas derrubadas e os solos envenenados por litros e mais litros de agrotóxicos. Cada ano desaparecem milhares de espécies de seres vivos, depois de milhões de anos de vida sobre a Terra.
No entanto, está crescendo a consciência de que, assim como temos organizado a forma de habitar a Casa Comum, não podemos continuar. Pesam ameaças de desastres ecológico-sociais de proporções apocalípticas. Alguns até aventam a ideia de que podemos nos destruir como espécie humana e, junto com ela, todas as civilizações que nos custaram tanto sacrifício para serem construídas.
A ideia-força da cultura moderna era e continua sendo o poder como dominação da natureza, dos outros povos e de todas as riquezas naturais, na perspectiva de um crescimento ilimitado. Esse propósito tem ocasionado as ameaças que pesam sobre o nosso destino. Essa ideia-força tem de ser superada. Bem dizia Albert Einstein: a ideia que criou a crise não pode ser a mesma que nos vai tirar da crise; temos de mudar
.
A mudança será esta: ao invés do poder-dominação em vista da acumulação, deve-se colocar o cuidado. Essa é a nova ideia-força. Ela implica uma relação amorosa para com a natureza, é amiga da vida, protege e confere paz a todas as pessoas e coisas.
Se o poder-dominação significava o punho fechado para submeter, agora oferecemos a mão estendida para cuidar e o abraço para a carícia essencial. Esse abraço carinhoso traduz um gesto não agressivo para com tudo o que existe e vive.
Portanto, é urgente criar a cultura do cuidado. Cuidar de todas as coisas, desde o lixo de nossas casas, das águas, das florestas, dos solos, dos animais e, principalmente, dos seres humanos, começando pelos mais vulneráveis.
Sabemos que de tudo o que amamos, cuidamos, e tudo de que cuidamos, também amamos. O cuidado sana as feridas passadas e impede as futuras.
É nesse contexto urgente que ganha sentido um dos mais belos mitos da cultura latina: o mito do cuidado. Eis o que ele diz:
"Certo dia, ao caminhar na margem de um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve uma ideia inspirada. Tomou um pouco dele e começou a dar-lhe forma, a forma de um ser humano. Enquanto contemplava, contente consigo mesmo, o que havia feito, apareceu Júpiter, o deus supremo dos romanos.
Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito na figura que acabara de moldar, ao que Júpiter acedeu de bom grado.
Quando, porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que havia projetado, Júpiter o proibiu. Disse que essa prerrogativa de impor um nome era missão dele. Mas Cuidado insistia que tinha esse direito, por ter por primeiro pensado e moldado a criatura em forma de um ser humano.
Enquanto Júpiter e Cuidado discutiam acaloradamente, de súbito irrompeu a deusa Terra. Quis também ela conferir seu nome à criatura, pois argumentava que ela fora feita de barro, material do corpo da Terra. Originou-se então uma discussão generalizada, sem qualquer consenso.
De comum acordo, pediram então ao antigo deus Saturno, também chamado de Cronos, fundador da Idade de ouro e da agricultura, que funcionasse como árbitro. Ele entrou em cena. Tomou a seguinte decisão, que pareceu a todos justa:
– Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta esse espírito quando essa criatura morrer.
– Você, Terra, deu-lhe o corpo de barro; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer.
– Mas como você, Cuidado, foi quem por primeiro moldou essa criatura, ela ficará sob o seu Cuidado enquanto ela viver.
– E uma vez que entre vocês não há consenso acerca do nome, decido eu: esta criatura será chamada homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil."
Vejamos a singularidade desse mito. O Cuidado é anterior a qualquer outra coisa. É anterior ao espírito e ao corpo. Em outras palavras, a concepção do ser humano como composto de espírito e corpo não é originária. O mito é claro ao afirmar que foi o Cuidado o primeiro a moldar o ser humano
. O Cuidado é anterior.
O Cuidado é o fundamento sem o qual não existiria o ser humano. O Cuidado constitui aquela força originária da qual jorra e se alimenta o ser humano. Sem o Cuidado, o ser humano continuaria a ser apenas um boneco de barro junto ao rio ou um espírito desencarnado e sem raiz em nossa realidade.
O Cuidado, ao moldar o ser humano, empenhou amor, dedicação, devoção, sentimento e coração. Tais qualidades passaram à figura que ele projetou. Essas dimensões entraram na constituição do ser humano, como um ser amoroso, sensível, dedicado, cordial e carregado de sentimento. Isso faz o ser humano emergir verdadeiramente como humano.
Cuidado recebeu de Saturno a missão de cuidar do ser humano ao longo de toda a sua vida. Caso contrário, sem o Cuidado, o