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A Era dos Mitos: antologia
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A Era dos Mitos: antologia
E-book432 páginas6 horas

A Era dos Mitos: antologia

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Sobre este e-book

Até onde a fé e a imaginação do homem é capaz de transcender? O roubo do fogo e as crenças em divindades e mitos revelam esta face. O tempo, o trovão, as forças da natureza é a sua garantia de colheita, a vida, a morte e a constante busca pela imortalidade.

Seu nome e sua magia ecoam nas bocas temerosas, cujos amuletos são proteções ou oferendas, àquele que no passado sobreviveu ao seu tempo, escalou a montanha impossível e hoje vive nas menções e nas histórias. Será falado com respeito, será temido junto aos deuses e deusas poderosas. O teu lugar será como um mito.

O termo mito refere-se aos relatos das civilizações antigas, advindas de todas as partes e culturas do mundo. Esta coletânea irá apresentar histórias baseadas na mitologia grega, romana, nórdica, oriental, folclórica entre tantas outras que almejam compreender o metafísico, além do imaginário de cada escritor.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de dez. de 2021
ISBN9786586626995
A Era dos Mitos: antologia

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    A Era dos Mitos - Rômulo Baron

    DOIS HOMENS

    Rômulo Baron

    Acoroa rolou pela escada e o som agudo do ouro e das joias zuniu pela sala do trono em Jerusalém, antiga Jebus dos jebuseus. O impacto balançou a estrutura forjada e ela rodopiou pelos degraus até chegar ao chão onde tantas pessoas se prostraram diante do rei que julgava as suas causas. Hoje, caía sobre esse mesmo chão o próprio monarca, Davi, o rei ungido por Deus para unir todas as tribos de Israel e aquele destinado a derrotar os inimigos dos israelitas. Davi rasgava as próprias vestes e chorava copiosamente diante do homem com as vestes sacerdotais. Suas mãos fortes de guerreiro o ergueram do chão onde havia se lançado, para que pudesse enxergar mais uma vez o rosto austero de Natã, o profeta.

    A sandália de couro trançado raspou o chão de terra e a poeira se ergueu sobre o vale de Elá. As canelas finas avançaram sem qualquer noção militar ou treinamento de combate diante do arauto inimigo. Os cabelos longos e ruivos balançavam e os olhos encaravam a muralha aterrorizante à sua frente. Seguindo o ritmo do vento contrário, os fios vermelhos revelaram o rosto do jovem hebreu, despreparado, avançava. Era Davi. Do outro lado, a barba negra daquele guerreiro escapava por um elmo que, ao permitir o mero vislumbre dos seus olhos, fez as tropas de Saul estremecerem. Este era o herói filisteu de Gate, Golias, que corria para o combate. A funda de Davi girou e Golias gingou com a lança em riste. Aqueles dois homens avançavam um sobre o outro e escreviam a história dos filisteus de Aquis e dos hebreus de Saul.

    Dias antes

    — Por que vocês estão em posição de batalha? Não sou eu um filisteu e vocês, servos de Saul? Vamos resolver esta questão. Eu representarei os filisteus e vocês escolherão um representante do exército de Saul para lutar comigo! Se este homem for capaz de lutar comigo e matar-me, então nós seremos seus escravos. Porém, se eu o matar, então vocês serão nossos escravos e nos servirão — desafiou Golias durante o confronto entre filisteus e hebreus posicionados no Vale de Elá. Não houve homem corajoso o suficiente para responder ao desafio feito e à convocação do rei. Não era por menos. Golias matava desde a juventude, e além dos seus mais de dois metros de altura, havia a força tecnológica ao seu lado, como o ferro fundido que conheciam. Sua espada feita desse ferro era algo que os hebreus jamais conseguiriam alcançar. Havia o boicote dos filisteus para que nenhum ferreiro fornecesse equipamento ou ensinasse suas artes aos israelitas. Sua armadura era uma couraça pesada de malha que pesava 70 quilos, a lança enorme tinha uma haste semelhante a um eixo de tear e somente a ponta de ferro dela pesava um pouco mais de sete quilos. Os hebreus ainda perseguiam, como outros povos cananeus, o bronze, e só tinham uma boa arma se conseguida como um espólio de guerra. Golias era o futuro da guerra, era uma máquina imparável e agora aguardava ao lado de mais quatro gigantes, seus irmãos, a decisão do rei Saul sobre o seu desafio.

    — Não se preocupe com este filisteu. O seu servo irá lutar contra ele! — disse Davi ao rei Saul, de forma austera. O rei conhecia aquele garoto, pois o jovem pastor tocava harpa para ele e, segundo os servos, acalmava o monarca do tormento causado por um espírito maligno. O general Abner e o príncipe Jônatas ficaram estarrecidos. Outros soldados, como Joabe e os irmãos de Davi, incluindo o mais velho, Eliabe, condenaram sua atitude.

    — Você não poderá lutar contra ele. Ainda é muito jovem e ele é um guerreiro desde a mocidade! — disse o rei.

    — O seu servo já fez isto com leões e com ursos, tirei minhas ovelhas da boca deles, e farei a mesma coisa com esse filisteu incircunciso, pois ele desafiou os exércitos do Deus vivo! O Senhor, que me salvou das garras do leão e do urso, me salvará das mãos desse filisteu!

    Naquele momento, aqueles dois homens, um rei e um jovem pastor de ovelhas, discutiam o destino que poderia mudar tudo sobre o domínio de Canãa, a Terra Prometida.

    Saul ponderou, sob os olhares do seu general, Abner, que também se sentia encurralado.

    — Está bem! Então vá, e que o Senhor esteja com você!

    Passaram a couraça de malha pelo pescoço do jovem, depois a armadura e então o capacete de bronze do próprio rei. Davi colocou a espada sobre a armadura e ficou paralisado.

    — Eu mal consigo me mover!

    Retirou então a armadura, a couraça, e retornou às vestes anteriores. Passou a mão em seu cajado, amarrou a funda à cintura e caminhou na direção da parte baixa do vale. Parou em um riacho, tomou cinco pedras lisas dele e colocou-as em sua bolsa de pastor. Saul, seu filho Jônatas, Abner e os outros observaram a cena estarrecidos.

    Davi estava diante de Golias. O semblante furioso do filisteu desceu pelos olhos, nariz, e saiu pela boca como trovão.

    — Por acaso sou eu um cão, para que você venha até mim com um pedaço de pau!? Por Dagon, eu o amaldiçoo!

    Davi então respondeu e da sua boca jovem demais eclodiu uma voz imperativa inesperada:

    — Você vem até mim com uma espada, lança e escudo, mas eu venho contra você em nome do Senhor dos Exércitos, o Deus de Israel que você insultou!

    — Juro por Dagon que eu o matarei e servirei sua carne de comida às aves do céu e aos animais selvagens! — disse Golias, tomando o escudo do servo ao seu lado.

    — Hoje mesmo o Senhor me dará a vitória sobre você! Eu o matarei e cortarei a sua cabeça! Todos os soldados filisteus mortos eu darei de comida às aves do céu e animais selvagens e todos aqui saberão que não dependem de lanças nem espadas para obter a vitória. A guerra é do Senhor e ele entregará vocês em nossas mãos!

    Golias bramiu furioso e avançou em passadas rápidas pelo campo de batalha. Atrás dele, o rei dos filisteus, Aquis, tinha os olhos bem abertos. Era um líder inteligente a ponto de não subestimar aquele povo. A arrogância era compreensível quando se tinha os cinco gigantes filhos de Rapha, da cidade de Gate, em suas fileiras: Golias, o mais notório, Isbi-Benobe, Safe, Lami e aquele cujo nome se perdeu. Eram o povo que dominava a cerâmica e a metalurgia, suas muralhas eram fortes e o governo, organizado e sólido. Comemoravam as vitórias com a mais deliciosa cerveja e honrando seus deuses poderosos. Há mais de 60 anos, no entanto, surgiu dentre os hebreus o tal Sansão, que matou mil dentre seu povo usando apenas uma queixada de jumento, depois morreu ao demolir sobre si mesmo, usando apenas as mãos nuas, um templo de Dagon durante uma festividade, matando milhares de filisteus. Mesmo quando avançaram sobre os israelitas e mataram mais de 30 mil hebreus na batalha de Eben-Ezer e roubaram a Arca da Aliança, que guardava as tábuas que o próprio deus hebreu tinha escrito com as leis deles, o tal artefato causou uma pandemia aos seus e desmoralizou as estátuas de Dagon, lançando-as ao chão. Era aquele o povo de Sansão e da Arca da Aliança. Aquis ouvia bem as histórias do sábio e precisava se manter atento. Por cima de Golias, sua visão encontrou a de Saul do outro lado do campo de batalha. Os dois reis se olharam por uma fração de segundos. Dois homens e suas nações.

    Davi sacou da cintura a haste de madeira e a tira de couro pendeu solta, levou a mão à bolsa e dela retirou uma das pedras, encaixando-a. Os dois correram na direção um do outro, Golias ergueu a lança, Davi girou a funda. Naqueles segundos, todas as respirações foram prendidas no Vale de Elá. A poeira do lugar subiu atrás do gigante e do pastor de ovelhas em suas investidas, até que Golias parou, subitamente. A funda estava vazia, a tira de couro ainda caía lentamente e Davi estava na posição do arremesso. A pedra havia descrito uma trajetória angular e, passando pelo escudo e o elmo de bronze, acertou a cabeça e, com os olhos esbugalhados, os mais de dois metros de altura desmoronaram pelo campo de batalha. Davi correu o mais rápido que pôde e, com os dois pés sobre o inimigo, sacou da bainha dele a espada e com um grunhido de força assustador, ergueu a lâmina acima da sua cabeça e a desceu sobre Golias, decapitando-o.

    O silêncio daquelas milhares de testemunhas era ensurdecedor. Sem prestar atenção em nada, Davi pegou com as mãos a cabeça de Golias e mostrou-a no alto, a Deus, a Saul, aos hebreus. E todos gritaram com as almas, erguendo o que tivessem e usando como armas. Davi então se virou para os filisteus. Aquis encarava o seu campeão morto e o escudeiro que recuava em disparada, depois mirou Davi e nos seus olhos agora era como se encarasse um leão e, às suas costas, Judá. O brado dos israelitas preencheu e ecoou além do Vale de Elá e o exército hebreu arremeteu na direção dos filisteus. Aquis estava desperto e pôs todo o exército em fuga. Os homens de Israel e de Judá perseguiram os filisteus até os portões da cidade de Gate e de Ecrom, deixando os cadáveres dos inimigos mortos pelo caminho à mercê das aves do céu e dos animais selvagens.

    — O rei deseja vê-lo — disse Abner, acompanhando Davi ainda com a cabeça do gigante nas mãos, pelo caminho.

    — Conte-me de quem você é filho, meu rapaz — perguntou Saul.

    Em um dia aparentemente ordinário para a família de Jessé e sua esposa, Nitzevet, na cidade de Belém de Judá, o grande profeta Samuel, juiz sobre os hebreus e profeta do Senhor, chegou à casa deles trazendo um novilho para sacrifício e ali observou cada um dos filhos de Jessé e Nitzevet. Samuel confidenciou estar em uma missão divina e, após as constantes falhas de Saul, foi então decidido que um novo rei deveria sucedê-lo. Assim como Samuel havia ungido Saul em nome de Deus para ser o primeiro rei sobre os israelitas, agora deveria ungir o novo rei. O profeta teve a certeza de se tratar de Eliabe, sendo ele o mais velho e forte dos filhos de Jessé, até ouvir a revelação:

    — Não julgue um homem pela sua aparência ou sua altura, pois não é este o escolhido. O Senhor não julga como julgam os homens; o homem vê a aparência exterior, mas o Senhor examina os pensamentos e as intenções do coração — revelou o Senhor a Samuel.

    Esbaforido, pois havia sido chamado no pastoreio, o jovem Davi, ainda atônito, teve óleo de azeite derramado sobre a testa e foi ungido por Samuel para um destino grandioso demais, audacioso demais: suceder a Saul, que havia se perdido da sua missão original.

    — Conte-me de quem você é filho, meu rapaz — perguntou Saul.

    — Sou filho de seu servo Jessé, que mora em Belém.

    Desde aquele dia, o rei insistiu para que Davi ficasse sempre ao seu lado. Seu filho, Jônatas, criou com Davi uma poderosa aliança e amizade, tornaram-se amigos nas batalhas e na vida. O filho de Saul treinou Davi por dez anos e, assim, ele serviu militarmente ao rei. Porém, o destino de Davi era outro e ali, Davi e Saul, os dois homens disputariam a coroa de Israel.

    Hiká Shaúl baalapáv

    (Saul matou milhares)

    VeDavi beriv’votáv

    (Mas Davi suas dezenas de milhares)

    — Saul matou milhares, mas Davi suas dezenas de milhares. Era o que o povo entoava na chegada da batalha contra Golias. As mulheres saíam das casas e à beira do caminho entoavam a triunfante canção celebrando e dando vivas aos soldados que voltavam para casa.

    — Elas atribuíram a Davi dezenas de milhares e a mim somente milhares? Daqui a pouco vão declará-lo rei! — disse Saul, iniciando a sua jornada de ciúme.

    Em sua casa, o rei foi tomado pelo espírito maligno que o atormentava e Davi e Jônatas tentaram acalmá-lo. Como de costume, Davi tentou as melodias de sua harpa, mas o rei colérico tomou nas mãos uma lança e atirou contra ele, que esquivou-se por pouco. Saul afastou Davi de sua companhia e o tornou comandante das tropas. Enviou-o para as batalhas mais difíceis contra os filisteus, prometeu sua filha Merabe em desafio e mentiu, depois prometeu Mical e dessa vez teve de casá-la com Davi. Cada vez que o rei o enviava para a morte, ele voltava vitorioso e mais amado por toda Israel e Judá. Saul então conspirou com seus comandantes e foi a amizade de Jônatas que o levou a alertar e salvar o amigo. Aceitou a unção de Davi e ficar como segundo abaixo dele. Longos anos se seguiram com essa caçada. Entre perdões e reconciliações, Saul sempre tramava para tirar a vida de Davi. Os sacerdotes levitas foram massacrados por acolher ingenuamente Davi, depois Saul foi atrás dele a cada cidade onde percebia sua passagem.

    — Algum dia Saul vai me matar. A melhor coisa que posso fazer é fugir para a terra dos filisteus. Aí Saul deixará de me procurar em toda a terra de Israel e assim eu ficarei livre de perigo.

    Por um ano e quatro meses, Davi lutou ao lado dos filisteus, servindo o rei Aquis como mercenário e, sob a sua espada, gesuritas, gersitas e amalequitas eram atacados e derrotados, tanto homens quanto mulheres, ninguém era deixado vivo. Os espólios das batalhas eram levados a Gate, onde a admiração de Aquis por Davi crescia mais e mais.

    Chegou o dia então de enfrentar os hebreus de Saul. Este rei, que fora ungido por Deus para governar, agora enlouquecia sem respostas sobre a vitória ou derrota na batalha do dia seguinte. Desesperado, buscou uma feiticeira e trouxe do Além o profeta Samuel.

    Pensando em de fato lutar ao lado de seu povo e contra os filisteus quando a hora chegasse, Davi foi contrariado ao perceber que ele e seus homens tinham sido dispensados do combate e deveriam retornar à cidade dada de presente a Davi, Ziclague.

    — Eu não tenho nenhuma reclamação de ti, Davi. Mas meus conselheiros acreditam que você possa nos trair na presença do teu povo — disse o rei Aquis.

    Reflexivo, Davi retornava para sua casa com seus homens quando chegou o aviso de que Ziclague tinha sido atacada pelos amalequitas. Suas esposas e muitos da cidade tinham sido sequestrados. Ele se virou para o caminho até onde lutariam Saul, Jônatas e tantos outros do seu povo. Depois, voltou-se para a estrada que o levaria a Ziclague.

    Panos sobrevoaram para as costas, os braços se ergueram para alcançar os cabos. A luz do sol projetava as sombras das espadas cruzadas que o inimigo tanto temia. Davi urrou e desembainhou suas lâminas. Era rápido e letal. O primeiro inimigo já estava rasgado e agonizante. Com um movimento circular, perfurou o pescoço do segundo e, erguendo o olhar, tinha Saul também erguendo a cabeça naquela direção. Seus olhares teriam se encontrado por breves segundos, e Davi poderia ter matado dezenas de milhares de filisteus naquele momento, mas não matou. Saul estocou o aço mas não havia nada lá. Sua lâmina encontrou outra e então seus homens mais próximos cansaram e verteram sangue. Ele se virou e poderia seu olhar ter mirado Davi, mas olhava Jônatas, que, tentando alcançar o pai em perigo, foi atravessado por uma lança e caiu sobre os joelhos.

    — Jônatas! Não! — gritou Saul, vendo agora que os filisteus enchiam as fileiras dos israelistas. Virou-se então para o campo de batalha, e teria visto Davi. Mas seus olhos nunca se encontraram. Para onde Davi olhava, estava a tenda com as suas esposas sequestradas, no chão os inimigos vencidos. Eram amalequitas. Os olhos de Saul, que pareciam se erguer na direção dele, subiam aos céus, em agonia. Há alguns passos estava o inimigo desejando o seu sangue. Outros de seus filhos foram atropelados pelo anseio filisteu em ter a cabeça do rei ungido por Deus. Aquis desejava vencer Saul, vencer as histórias da Arca da Aliança, de Sansão. As pisadas fortes estavam mudas, pois Saul agora abria os braços para os céus.

    Amanhã, neste horário, tu e os teus estarão ao meu lado. Os israelitas serão entregues nas mãos dos filisteus — disse o espírito de Samuel, naquela caverna, conjurado pela feiticeira pagã.

    — O senhor quer o meu reino?! Pois, tome! Ele é seu! — e aos poucos passos do êxito, os filisteus fracassaram em alcançar o rei. Com a espada que não matou Golias em riste, Saul ultrapassou o próprio peito e matou o rei que também não unificou as doze tribos de Israel.

    Morre Saul… quem reinará sobre Israel?

    General Abner se movimenta agilmente para coroar o último filho de Saul vivo, Is-bosete, ao perceber o apelo popular por Davi. Derrotado, se retirou sem guerrear mais uma vez contra aquela família. Alguns anciões, no entanto, o seguiram e escolheram como rei sobre a tribo de Judá. Mais um período de guerras civis chegou, com os olhos das tribos crescendo em admiração pela gestão e vitórias de Davi e desprezo com distância pela imaturidade de Is-bosete. Quando Abner, então, procurou Davi e indicou que a coroa seria passada para ele, tudo parecia culminar numa grande comunhão até o sangue de Abner ser derramado na viagem de volta, em uma emboscada armada pelo maior comandante de Davi, Joabe, incapaz de desfazer o desejo de vingança e ódio do seu coração. Sem a proteção de Abner, Is-bosete foi assassinado enquanto dormia e sua cabeça foi levada a Davi com sorrisos nos rostos. A paga foi a decapitação dos tais aspirantes a súditos do novo rei, pois o novo ungido tinha respeito ao clã de Saul e, mesmo durante a perseguição contra ele, jamais atentou contra a vida daquele rei e nunca permitiu que o fizessem. Todas as doze tribos de Israel e Judá aclamaram Davi como rei legítimo. Audacioso, reuniu seus comandantes e partiu com suas tropas para enfrentar os jebuseus em suas muralhas temíveis. Mesmo sob descrença dos oficiais, sabia que aquele poderia ser o melhor ponto estratégico para governar sobre as tribos.

    — Você nunca entrará aqui. Até os cegos e aleijados são capazes de expulsar vocês daqui! — disseram os jebuseus.

    — Invadam pelos canais de água e matem todos esses tais cegos e aleijados! — ordenou Davi.

    Assim, a batalha ferrenha cessou com a vitória de Davi e o domínio da Fortaleza de Sião, doravante chamada de Yir David (cidade de Davi) ou Jerusalém. A Arca da Aliança entrou na cidade sobre o carro em um grande cortejo em que Davi dançava e festejava com o povo. Esbaforido, chegou ao novo palácio e encontrou Mical, filha de Saul e sua primeira esposa, aguardando com desprezo.

    — Dançando e se descobrindo diante das servas como se fosse um homem vulgar do povo! — disse Mical, no início da sua amargura, pois a filha de Saul nunca conseguiria dar filhos a Davi.

    — Continuarei dançando em louvor ao Senhor! Sei que serei respeitado por essas servas de quem falou.

    Dias depois, Natã, o profeta, foi convocado à presença do rei:

    — Veja, Natã! Eu moro num lindo palácio construído com cedro, enquanto a Arca de Deus está numa simples tenda, do lado de fora!

    Embora concordasse de imediato com a forma de pensar do rei, Natã o procurou na manhã seguinte:

    — Assim diz o Senhor dos Exércitos: Eu não tenho morado em uma casa desde o dia em que tirei os israelitas do Egito até o dia de hoje. Nunca pedi que me construíssem um templo de cedro! Eu escolhi você para ser o guia do meu povo quando ainda era um simples pastor de ovelhas. Estive contigo por onde tem andado e destruído todos os inimigos. Você não construirá uma casa em meu nome, pois você é homem de guerra e derramou muito sangue. O seu filho é que vai construir uma casa em meu nome, e o seu reino permanecerá para sempre!.

    Vitorioso aonde quer que fosse, caiu forte sobre os moabitas, os arameus, os sírios e os amalequitas e enfrentava agora os amonitas. Durante esta campanha, deixou o comando das tropas com seu comandante Joabe para que ele os destruísse e realizasse o cerco final na cidade de Rabá. O rei permaneceu em Jerusalém. Numa noite longa em que nada o fazia dormir, Davi caminhou pelos muros da fortaleza para refletir. Do alto das muralhas, viu uma mulher belíssima a se banhar e, no esplendor daquela cena, enlouqueceu de paixão. Chamou um dos auxiliares e soube se tratar de Bate-Seba, neta do seu conselheiro oficial, Aitofel, filha do soldado Eliã, casada e esposa de um leal soldado de suas tropas chamado Urias, o heteu. Mandou que a chamassem ao palácio e, naquela noite, Davi e Bate-Seba, os dois amantes, se entregaram um ao outro.

    — Mande-me imediatamente Urias, o heteu. Preciso falar com ele — dizia a mensagem de Davi a Joabe na frente de batalha. Ao chegar, Urias conversou longamente com o rei sobre a guerra, Joabe e os soldados.

    — Agora vá para casa e descanse um pouco — ordenou o rei, enviando para a casa dele um presente. Urias, no entanto, dormiu ao lado dos soldados nos portões do palácio.

    — Que há com você? Por que não foi passar a noite com a sua esposa, após passar tanto tempo longe dela? — o rei Davi questionou Urias.

    — Como poderia eu entrar em minha casa para comer, beber, descansar e deitar-me com minha mulher, enquanto sei que a Arca do Senhor e os soldados de Israel dormem ao relento? Tão certo quanto o Senhor vive, eu não faria tal coisa!

    — Bem, Urias, fique hoje e passe esta noite aqui. Amanhã o mandarei de volta.

    Com um banquete, Davi embriagou Urias e o desgastou ao máximo, enviando-o na direção da sua casa. Porém, Urias voltou a dormir aos portões do palácio ao lado dos guardas. O heteu não foi dormir com Bate-Seba e Davi sabia o que isso significava. Pensou na notícia que ela mandou entregar-lhe antes de enviar a carta a Joabe. Estou grávida, era o que se lia. Com toda a cidade sabendo que marido e mulher não se deitaram, era questão de tempo até que fosse revelado o segredo do amor dos dois e ela certamente pagaria o preço conforme a Lei de Moisés: seria apedrejada publicamente. Davi estava encurralado.

    No dia seguinte, entregou uma carta através de Urias para Joabe no cerco de Rabá:

    Coloque Urias na linha de frente do combate e abandone-o onde o combate estiver mais acirrado, para que ele seja morto.

    Davi e Joabe, os dois homens, ali conspiraram.

    Urias morreu em combate contra os amonitas por ter sido colocado próximo demais do alcance dos arqueiros nas muralhas. O relatório do combate chegou e Bate-Seba chorou verdadeiramente pelo marido morto. No primeiro dia após o período de luto, Davi ordenou que trouxessem Bate-Seba ao palácio e a tomou como uma de suas esposas. Os dois viveram felizes, enquanto o filho crescia dentro dela. Natã chegou certo dia para falar com o rei.

    — Trago uma questão para ser julgada pelo rei de Israel — disse Natã, chegando à sala do trono.

    — Pois diga, profeta Natã.

    — Dois homens moravam em uma certa cidade. Um era rico e o outro, pobre. O rico era dono de ovelhas e gado e o pobre, no entanto, possuía apenas uma única ovelha estimada. Certo dia, o homem pobre se viu visitante do rico e, ao receber tal visita, o rico quis preparar-lhe um banquete. Não desejava, no entanto, matar nenhum animal do seu rebanho e, por isso, tomou a ovelha do homem pobre, matou-a, e serviu no banquete.

    — Juro pelo nome do Senhor que o homem que fez isso deve restituir quatro ovelhas ao homem por tê-lo roubado e ser morto por ato tão cruel!

    — Este homem é você, Davi.

    Quando as palavras chegaram ao coração, Davi dobrou os joelhos e lançou-se diante do profeta. A coroa rolou pela escada e o som agudo do ouro e das joias zuniu pela sala do trono em Jerusalém, antiga Jebus dos jebuzeus. Naquele salão onde tantas pessoas se prostraram diante do rei que julgava as suas causas, hoje caía sobre este mesmo chão o próprio monarca, Davi. Ergueu o rosto para encarar mais uma vez a face de Natã, e ali, os dois homens eram réu e juiz:

    — Assim diz o Senhor: Eu o ungi rei de Israel e o livrei das mãos de Saul. Também dei a você os reinos de Judá e Israel. Se isso não bastasse, eu lhe daria muito mais. Por que, então, você não respeitou a palavra do Senhor e praticou uma coisa tão horrível? Você matou Urias, o heteu, com a espada dos amonitas e ainda roubou sua mulher! Por isso, daqui em diante, a espada estará sempre sobre a sua casa, pois você me desprezou.

    — Eu pequei contra Deus. Eu mereço a morte!

    — Sim, realmente você pecou, mas o Senhor perdoou o seu pecado. Você não morrerá…

    Natã se vira e sua veste sacerdotal tampa a visão do rei. Surge Bate-Seba, desesperada com seu filho doente no colo. Davi se lança em jejum e oração para salvar o bebê, em vão. Um bebê pálido e rígido pende inerte nas mãos na mãe.

    Porém, pelos seus atos, o filho que você teve com Bate-Seba morrerá — surge a voz de Natã.

    Amnon, filho primogênito de Davi, cresce com uma grande rivalidade com o irmão, Absalão, e ambos crescem vivendo conflitos cada vez mais intensos. Certa noite, Amnon, apaixonado pela meia-irmã, Tamar, cuja beleza contagiava a todos em Yir David, finge estar doente e pede pelos cuidados de Tamar. Em seus aposentos, Amnon violenta Tamar e, após o ato, sente grande repulsa e a expulsa. Absalão acolhe a irmã e, sem que ninguém perceba, planeja um jantar sem a presença do pai, ordenando o assassinato de Amnon.

    Por causa do seu mau procedimento, farei com que a sua própria família se revolte contra você e da sua casa se erguerá o inimigo…

    Absalão se rebela contra as decisões de Davi e os dois homens, pai e filho, são agora inimigos. Aitofel, conselheiro de Davi, avô de Bate-Seba, aproveita a oportunidade e se une a Absalão para arquitetar a deposição do rei. Na cidade de Hebrom, a voz de Aitofel, conselheiro mais valioso da corte e entendido pela população como se fosse a voz de Deus, angaria o apoio necessário para que Davi seja deposto e Absalão tome seu lugar. Dois servos leais que estavam na cidade se apressaram para Jerusalém no intuito de avisar ao rei antes que fosse tarde demais. Ao saber da rebelião, Davi se entristece pelo destino de sua família e se vira para Bate-Seba, agora segurando um lindo bebê saudável no colo, Salomão. O rei ordena então uma retirada pacífica da cidade e permite que Absalão ocupe o trono.

    Absalão, por sua vez, segue as sugestões ardilosas de um Aitofel tomado pela vingança e violenta as mulheres de Davi. A batalha é inevitável, porém Joabe convence que é melhor que Davi não participe do confronto.

    — Poupe meu filho, Joabe. Poupe Absalão.

    A batalha é ferrenha, porém estabelecidas pela noite de preparo, as tropas de Absalão são surpreendidas pelas emboscadas e, derrotado, ele dispara a cavalo pela floresta. A perseguição a cavalo termina com um dos galhos da árvore acertando Absalão e deixando-o suspenso e ferido. Os soldados cercam o usurpador.

    — Avisem a Joabe que o temos aqui.

    — Não precisa, já estou aqui — diz o comandante, desmontando e indo até ele.

    — Por que não o mataram?

    — O rei ordenou…

    — Eu mesmo recompensaria quem matasse esse traste — tomando uma lança de um dos soldados, Joabe transpassa o coração de Absalão e toma-lhe a vida.

    Adonias, filho de Davi, é incentivado por Joabe a ser o novo rei de Israel, tendo o apoio dos exércitos de Israel e outras tantas autoridades para legitimar essa escalada ao poder. Bate-Seba e Natã, ao perceberem que Adonias tomava o poder, vão a Davi. A porta se abre e as espadas trançadas não estão mais lá, nem mesmo o ímpeto destruidor de inimigos. Apenas um Davi agora idoso, fragilizado, repousa à cama.

    — Meu amado, não me prometeste que Salomão reinaria? — perguntou Bate-Seba.

    — É claro que sim. Deus me disse que ele governaria Israel e construiria para a Arca uma casa.

    — Pois então… por que Adonias acaba de ser nomeado rei?

    — Com que autoridade? Quem está com ele?

    — O exército e os sacerdotes. Só nos resta a guarda do palácio, eu e Natã.

    — Natã, você está aí?

    — Sim, meu rei.

    — Mande chamar Salomão. Coloque-o montado em minha mula, não um cavalo. Minha mula. E faça de Salomão o rei ungido pelo Senhor.

    — Sim, meu rei.

    Contra o exército, o jovem Salomão é posto em uma mula e acarreta uma multidão como a escolha feita pelo próprio rei Davi para sucessor. Do outro lado, todo o exército liderado por Joabe, ao lado de Adonias. Os dois grupos se observam, o irmão guerreiro, Adonias, e o irmão pacífico e reflexivo, Salomão. Enquanto os dois se observam, a população se enche de energia e decide sobre qual cerimônia participariam. Moveram seus pés e gritaram, legitimando sem saber o novo rei de Israel.

    Natã acaricia o bebê e o chama de Jedidias, que significa Amado do Senhor. Da boca de Bate-Seba sai o nome que deram ao rebento, Salomão, que significa pacífico. Numa passada do tempo, quando Davi já não vivia, surge o cume do monte Moriá, a leste de Jerusalém, e o rei diante da imponente construção não era Adonias, e sim Salomão. Uma gigantesca congregação de todas as tribos de Judá e Israel se reunia diante daquele templo único e magnânimo em festa. A Arca da Aliança passava por baixo das asas de mais de dois metros da dupla de querubins que alcançavam seus quatro metros de altura, brilhando em ouro. Ali era o Lugar Santíssimo, onde a Arca da Aliança agora habitava, a casa de Javé dentro do Templo de Salomão. Naquele momento e na construção sonhada por Davi e profetizada para o seu filho, os dois homens, pai e filho, mesmo separados, estavam juntos na imortalidade.

    A DAMA DE PEDRA

    Fran Briggs

    Sua mente estava tomada pela confusão de sons e palavras. Ele amaldiçoou a vodka barata que os amigos compraram para a sua despedida de solteiro naquela noite. Amaldiçoou ainda mais a si mesmo por misturar destilados de péssima qualidade com goladas de vinhos de procedência duvidosa.

    O sedan cortou a estrada alcançando bruscamente o meio-fio, arrancando tufos de grama pelo caminho. Por fim, os pneus pararam sobre uma poça de barro pastoso. Marco abriu num movimento rápido a porta do carro, aspirou profundamente o ar noturno e sentiu o cheiro de terra molhada que a chuva de

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