Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Lux astral
Lux astral
Lux astral
E-book615 páginas13 horas

Lux astral

Nota: 5 de 5 estrelas

5/5

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Lux Astral conta a história de Mellany Mondini. Uma adolescente que se vê perdida e desconectada do mundo real. Sem saber por que sua vida é tão confusa e complicada, Mellany recebe uma herança nada comum de sua mãe. Obrigando-a a enfrentar seus piores medos e demônios ao ser caçada pelo homem mais poderoso e cruel de seu mundo.

Mas tudo isso, parece pequeno quando se apaixona pelo enigmático e sedutor Miguel Muller. Um homem carregado de segredos obscuros, fazendo com que seu desejo ardente e proibido corra desesperadamente por sua corrente sanguínea.
IdiomaPortuguês
EditoraViseu
Data de lançamento1 de jul. de 2019
ISBN9788530007812
Lux astral

Relacionado a Lux astral

Ebooks relacionados

Romance para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Lux astral

Nota: 5 de 5 estrelas
5/5

1 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Lux astral - Tamiris Barreto Farkas

    1

    A vista do telhado

    O vento suave e quente do verão roçava meu rosto, trazendo consigo o perfume cítrico das flores. O céu estava limpo e estrelado do jeito que só se vê no interior. O silêncio desse lugar é inexplicável. Praticamente impossível se estressar num lugar desses. Deve ser por isso que viemos para cá. Ou a outra opção, mas prefiro acreditar que a outra opção é coisa da minha cabeça.

    Oito meses. E já não aguento de saudade de casa, por mais tranquilo que esse lugar seja, a bagunça e o barulho da minha cidade me dão nostalgia. Que ser humano que sente falta daquilo? Eu. Talvez eu não seja normal, talvez eu não pertença a esse mundo, afinal nunca me senti parte dele. Tenho a sensação de que estou sempre esperando por algo. Mas o quê? Puxo a respiração com força e solto, dando-me aquela leve tontura. Como é possível sentir que é aquilo e não é ao mesmo tempo?

    Sinto que alguém embaralhou as peças do quebra-cabeça da minha vida e jogou ao ar, fazendo com que cada peça fosse para um lugar diferente, e que minha missão é sair em resgate de cada uma.

    Algo me chama a atenção, fazendo-me desviar o olhar para o meu lado esquerdo. Cacei a lanterna ao meu lado e a desviei em direção a um barulho estranho. A luz fraca da lanterna não alcançou absolutamente nada entre as árvores. Torci para que aquilo tenha sido uma ave ou algo do tipo. Apertei os olhos tentando enxergar em meio à escuridão, apontando a lanterna e procurando seja lá o que for. Nada. Abaixo a lanterna e respiro fundo. Tenho a sensação de que estou sendo observada o tempo todo. Mas talvez seja o meu subconsciente me pregando uma peça. Isso pode acontecer, não é? O subconsciente não sabe distinguir o que aconteceu de fato e o que é apenas produto da imaginação. Ou estou apenas com sono. E não é pra menos, há quanto tempo estou aqui? Três horas talvez... O ronco vindo da minha barriga confirmou. Puxei a lanterna e enfiei no bolso de trás da calça jeans e me arrastei para perto da escada, desci com cuidado cada degrau e pulei o último. A luz do quarto estava acesa, isso significa que Jane não pregou os olhos ainda.

    — Demorou desta vez, estava quase levando seu travesseiro lá pra cima – ela fala fechando o livro surrado que sempre lê antes de dormir.

    Sento na cama tirando o tênis e o jogo no canto do quarto.

    — A noite estava convidativa. Aliás, você deveria tentar.

    Ela tira os óculos de grau e os põe na mesa de cabeceira.

    — Dá pra ver a noite e senti-la aqui de baixo também. – Ela levanta a sobrancelha e me fita.

    — Não é a mesma coisa, é uma sensação única. Mas, enfim, estou morrendo de fome – falo seguindo pra cozinha.

    — O que quer comer? – ela grita do quarto.

    Abro a geladeira.

    — Sei lá, esperava por um bolo ou algo doce. – Tiro a garrafa de suco e fecho a porta.

    — Tem bolo no forno. E é de cenoura – responde.

    Ergo a sobrancelha.

    — Sério?

    Desvio o olhar para o forno.

    — Que bruxaria é essa? – pergunto cortando um pedaço e colocando no prato.

    — Logo vai saber, é um dos feitiços mais fáceis que tem – responde.

    Solto uma gargalhada.

    — Muito engraçado. Mas fique sabendo que preferia de chocolate – murmuro, enfiando um pedaço na boca em meio a um sorriso.

    Apago a luz da cozinha e sigo para o quarto. Ela está sentada na cama, olhando para a janela. Seu corpo estava ali, mas tenho certeza que sua mente estava longe.

    Ela está fazendo muito isso ultimamente.

    — Aposto que tem algo lá fora – falo, quebrando o silêncio.

    — Sim. Ursos gigantes com fome. Aposto que sentiram o cheiro do bolo de cenoura maravilhoso que eu fiz e estão a caminho para reivindicar seus pedaços – responde sem desviar os olhos da janela.

    A cena dos ursos famintos invadiu a minha mente criativa.

    — Você não existe – sussurro e puxo a coberta pra cima de mim. Ajeito o travesseiro e deito a cabeça, relaxando o corpo na cama macia.

    — Se fosse assim, pouco provável que você também. – Ela pisca e se ajeita na cama.

    Reviro os olhos.

    — Boa noite, mãe.

    — O que viu lá fora? – ela pergunta chamando minha atenção.

    Franzo a testa e me viro para encará-la.

    — Como assim? – pergunto.

    — Você disse que tem algo lá fora. Viu alguma coisa? – questiona estreitando os olhos.

    Não sei bem o que pensar sobre essa repentina pergunta e, menos ainda, sobre a sua expressão.

    — Ah... Eu não sei. Quando estava lá em cima, ouvi um barulho em meio às árvores. Mas quando apontei a lanterna não tinha nada. Vai ver foi o vento, ou um pássaro, ou cachorro, ou seus ursos famintos – respondo dando de ombros.

    A sua expressão continua a mesma. O seu olhar viaja para outra dimensão. Jane costuma se preocupar com coisas banais, nunca sei quando devo levar a sério.

    — Mãe? – chamo, tirando-a de seu devaneio.

    Ela pisca e força um sorriso.

    — É, talvez seja isso. – Ela puxa a coberta para si e apaga o abajur.

    Já deveria estar acostumada com tal comportamento. Mas é impossível. A minha mãe é o tipo de pessoa capaz de confundir qualquer um. Tem o dom de manter segredos. O motivo de estarmos aqui é um. Troquei o ano letivo por essa viagem, não faz sentido algum quando são os pais que insistem por isso. Poderia estar pensando na formatura a essa altura. Mas, na verdade, assombra-me só de pensar que terei que fazer o último ano de novo. Oito meses se passaram, longe do meu pai, longe do meu irmão, de amigos, de tudo. Vim para esse fim de mundo sem saber o real motivo. Não sei exatamente pelo que ela estava passando, afinal ela estava sempre tão serena, pelo menos era o que ela tentava aparentar, mas, no fundo, eu sabia que havia algo errado. As incansáveis madrugadas que a encontrei cochilando no sofá da sala com esse livro em mãos. Nunca lhe perguntei do que se tratava o livro, nunca tive curiosidade. Ainda assim, quando a acordava para subir e ir para cama, ela resmungava em línguas, e, quando se dava conta, desconversava. Nunca entendi e nunca perguntei. Para mim, ela estava sonhando, então descartava a ideia de rondar e saber do que aquilo se tratava, até que tudo foi ficando mais... frequente. Várias vezes, peguei-a falando sozinha. Sussurros que eu não entendia uma só palavra. Ela olhava fixamente para algo ou para alguém, aquilo me assustava mais do que tudo, então dava meia-volta e saía, deixando-a, sabe Deus fazendo o quê. Outra adolescente no meu lugar a encurralaria ou daria uma de Sherlock Holmes. Mas, tratando-se de mim, fiz exatamente o contrário. Quanto mais penso nela e nas coisas que presenciei, menos ela faz sentido e mais perguntas são criadas e sem respostas, deve ser por isso que evito. Apago meu abajur e me aninho na cama. Fecho os olhos, deixando a minha mente vagar.

    2

    O bom velhinho

    O cheiro de terra molhada deveria vir engarrafado. Devo ser o único ser humano no mundo que adoraria guardar esse tipo de cheiro. Esses dias tem chovido tanto que nem sei por que estou me dando o trabalho de regar as plantas.

    — Mellany! – Jane grita, acenando da janela.

    — Estou sem fome! – grito, já sabendo a pergunta.

    Ela faz uma careta e gesticula com as mãos de novo como quem diz: Você não tem escolha.

    Reviro os olhos e solto o regador na terra úmida. Retiro as luvas e as botas e as coloco do lado da porta antes de entrar em casa.

    — O homem não vive de brisa – ela fala, carregando uma travessa e a colocando em cima da mesa.

    — Tenho sorte então – respondo, indo em direção ao banheiro.

    — Eu ouvi isso!

    Abro a torneira da pia e lavo as mãos. O bom de morar na terra de ninguém é que literalmente não preciso me preocupar com meu visual. Fito o meu reflexo no espelho e balanço a cabeça em negativa. Eu já sabia que Jane queria se isolar, mas isso chegava a assustar.

    A mesa estava posta. O cheiro que invadiu minhas narinas fez o meu estômago discordar com o que eu havia dito há três minutos.

    — Falei com seu pai hoje – Jane fala, servindo-se de um pedaço de lasanha.

    Ergo o olhar para ela, esperando o restante. Aqui não tem telefone e, menos ainda, celular. Assim que viemos para cá, foi tudo confiscado. Diz ela que isso ajudaria no seu processo e que eu, vindo, tinha que concordar com suas regras. Aí é que estava o problema, eu não queria vir para cá. Fui obrigada. Foi aí que percebi que algo estava realmente acontecendo. Só não sei do que ela está fugindo ou de quem.

    — Falei no telefone de um vizinho. – Ela dá um meio sorriso, analisando a minha expressão.

    — Não temos vizinhos – respondo, erguendo o prato para ela colocar um pedaço da lasanha.

    — Temos. Mas não tão perto. Um pouco distante, eu diria – murmura.

    — Distante? – Levanto a sobrancelha. – Já fiz caminhada de pelo menos uma hora e não vi vizinho nenhum. Nossa casa é a única aqui. Estamos no meio do nada. Me sinto num filme de terror – digo ajeitando a comida no prato.

    — Mellany... – ela começa, mas eu a interrompo:

    — Você estava falando do papai – falo e, em seguida, levo o garfo à boca.

    Ela suspira e me fita.

    — Seu pai inaugurou a academia hoje – fala num tom animado. – E, pelo que me disse, as coisas começaram bem. Seu irmão iniciou com mais alunos do que o esperado.

    — E, mais uma vez, não estou lá para comemorar com eles. – As palavras saíram antes que eu pudesse evitá-las.

    Lembro de quando o projeto da academia estava apenas no papel. Math nem havia se formado ainda. Um pouco antes de virmos para cá, alguns contatos que meu pai havia feito na época retornaram com boas notícias. Eu estava perdendo tudo. Nem pude me despedir dos meus colegas da escola. Jane decidiu viajar de uma hora para outra. Eu estava tentando não odiar essa viagem, tentando ver o melhor dela, até porque estava fazendo tudo pela minha mãe. Mas a cada mês que passa fica pior. Já cheguei a me sentir a Branca de Neve, conversando com os pássaros. Achei que, pelo menos, essa viagem me aproximaria mais dela, mas ela fica mais distante do que quando estávamos rodeadas de gente em casa. O seu silêncio me mata.

    — Me desculpe, Mel, mas estou tentando...

    — Mãe, por que você não é sincera comigo? Afinal, por que estamos aqui? Por que se esconder do mundo agora? Eu não consigo te entender, em todo esse tempo que estamos aqui, você, em nenhum momento, sentou para conversar comigo. Você mal fala. Eu me sinto sozinha nesse maldito lugar! – grito e me levanto da mesa. – Qual é a sua, mãe?! – pergunto, analisando sua expressão. – Está fugindo de quem?

    Sinto a raiva subir.

    — Chega, Mellany. – Ela se levanta e fica de frente para mim. A mesa entre nós.

    — Talvez alguém que papai não saiba – falo sem pensar.

    E, como em uma fração de segundo, sinto a pele arder com seu tapa em meu rosto. Demorou alguns segundos até que eu pudesse entender o que acabara de acontecer. Jane nunca encostou uma mão sequer em mim, nem quando era criança, jamais tomei um tapa. Levei a mão ao rosto e as lágrimas brotaram nos meus olhos. O horror em seu rosto me mostrou o quanto havia se arrependido. Ela levou a mão à boca como se não acreditasse que tinha feito aquilo. Saí correndo para fora da casa antes que ela pudesse dizer qualquer coisa. Eu só queria sair dali. E correr até onde os meus pulmões aguentassem.

    O vento quente que batia no meu rosto não ajudava no meu fôlego. Minhas pernas não estavam preparadas para aquilo. Assim que elas começaram a vacilar, joguei-me no chão, puxando o ar com força, soltando um grito de ódio e desespero.

    Aquilo tudo estava mexendo com meu psicológico. Eu não aguentava mais, eu não sou assim, não devia tê-la desrespeitado de tal forma, mas cheguei ao meu limite. Uma onda de sensações inundou o meu ser. Eu já não sabia o que estava sentindo. As lágrimas desciam insistentemente. O meu coração estava tão apertado que parecia que alguém o esmagava. Apoiei a minha cabeça no tronco da árvore e me permiti desabar.

    — Dizem que chocolate é o melhor remédio quando estamos tristes. – Uma voz rouca e macia surge atrás de mim. Uma mão enrugada me entrega uma barra de chocolate.

    Viro-me e analiso o velhinho dos olhos cansados.

    — Quem é você? – pergunto olhando em volta.

    Tanto tempo longe das pessoas que parece que preciso aprender a conviver com seres humanos de novo.

    — Apenas um bom velhinho – responde, dando de ombros.

    Por que isso me lembra a bruxa de a Branca de Neve e a maçã envenenada?

    — Obrigada. – Pego o chocolate das suas mãos e me levanto. – Eu tenho que ir. Devem estar preocupados comigo – minto, batendo as folhas presas em minha calça.

    Ele me olha de cima a baixo, deixando-me desconfortável. Será que esse é o tal vizinho que Jane mencionou?

    — Coma o chocolate, isso vai ajudá-la a se acalmar. – Ele aponta para o chocolate e busca o meu olhar confuso.

    — Sim. Comerei mais tarde. Como sobremesa, afinal nem almocei ainda – tagarelo, lembrando que mal comi a lasanha com meu ataque de rebeldia.

    Afasto-me do bom velhinho e analiso as suas vestes.

    Calça de jardinagem na cor laranja, um pouco folgada para seu tamanho, suja com terra. Botas pretas com lama nas laterais e uma regata branca por dentro da calça, suja num tom vermelho.

    Isso me fez lembrar um gari. O seu olhar é um pouco astuto para a idade que aparenta ter. Cabelos brancos e ralos, barba por fazer e pele bem enrugada.

    — Está com medo? – ele pergunta, fazendo-me engolir seco.

    Eu não estava com medo. Poderia derrubá-lo com um empurrão. Afinal, ele não teria disposição para uma luta, não que eu soubesse lutar, mas, com certeza, tenho vantagem. E correr... é meio óbvio que chegaria em casa antes que ele pudesse dar um terceiro passo. Mas não vou mentir que estou sentindo uma pontada de receio pela situação. Será que está sozinho? Ou estou subestimando demais o bom velhinho?

    — Não. Por que estaria? – respondo e em seguida faço outra pergunta.

    Preciso me manter firme. Jamais demonstrar medo diante dessas situações. Jamais demonstrar fraqueza. Como diz Math, Foca na zona proibida e chuta.

    — Está sozinha? – pergunta dando um passo à minha frente.

    Já chega.

    — Se der mais um passo... – rosno.

    Ele levanta as duas mãos em missão de paz.

    — Calma. Não farei nada. Se quiser, vou embora, só queria fazer uma gentileza. Não fique sozinha por aqui, é um pouco perigoso – fala dando um passo para trás.

    — Eu sei me defender – minto, mas mantendo firmeza no tom de voz.

    Ele dá um meio sorriso.

    — Creio que sabe – fala. – Tenha uma boa tarde, senhorita.

    Ele se vira e caminha para longe de mim.

    Analiso o chocolate e o enfio no bolso. Observo o bom velhinho se distanciar e acelero os passos de volta para casa.

    Jane estava encostada na pia terminando de lavar a louça. Por um momento, o arrependimento tomou conta de mim. Aproximei-me devagar e encostei no batente da porta.

    — Me desculpe – sussurro, entrelaçando os dedos.

    Ela se vira lentamente e me fita. Os seus olhos estavam vermelhos, andou chorando.

    — Eu não quis...

    — Perdemos o controle. As duas erraram. – Ela coloca o pano de prato em cima da pia e caminha até mim.

    O seu olhar calmo busca o meu. Ela segura o meu queixo e vira a parte da minha bochecha em que a sua mão esteve, e o seu olhar entristece.

    — Já passou. – Seguro sua mão e sorrio.

    — Onde esteve? – ela pergunta, seguindo para a sala.

    Caminho até o sofá e me jogo.

    — Só precisava de um ar – respondo, tirando o chocolate do bolso e o jogando em cima da mesinha de centro. – Não queria magoá-la, mas é que esse lugar...

    — Onde conseguiu isso? – ela me interrompe e aponta para o chocolate.

    — Ah... um bom velhinho. Ele disse que chocolates acalmam. Algo assim... Mas, enfim, o que eu estava dizendo...

    — Que bom velhinho, Mellany? – ela me interrompe novamente num tom alterado.

    Viro-me para vê-la e os seus olhos estão arregalados.

    — Não sei, talvez um vizinho. Qual é o drama? – pergunto.

    Ela se levanta e corre para fechar a porta, passando a tranca.

    — Não temos vizinhos – responde e fecha as cortinas também.

    3

    Primeiro dia

    Acordo assustada apertando os olhos. Fito o teto do meu quarto coberto de estrelas e luas que brilham no escuro. Acendo a luminária do canto esquerdo da minha cama, olho para o relógio que marca 3h13min da manhã. Mais uma noite maldormida. Dou uma olhada rápida pelo quarto e me levanto, calçando os chinelos. Estico o braço para pegar meu roupão que fica atrás da porta e saio do quarto. Sigo para a cozinha, passando pelo quarto dos meus pais e depois pelo quarto de Math.

    Descendo as escadas, passo os dedos pelos quadros e fotos da família que estão pendurados na parede. Perdi as contas de quantas vezes o meu irmão derrubou esses quadros no chão enquanto subia, bêbado, essas escadas.

    Avisto Math debruçado na porta da geladeira.

    — Não sobrou nada do pudim se é isso que está procurando – falo descendo o último degrau.

    Morar embaixo do mesmo teto que Math significa muita coisa, uma delas é: ou você come rápido ou não come. O meu irmão é um verdadeiro saco sem fundo. Se não fosse bitolado em academia, agora estaria pesando uns cento e oitenta quilos. Eu achava que todos educadores físicos eram do tipo só saladinha e carne branca. Math é aquela terrível exceção.

    — O que está fazendo acordada? Não tem aula amanhã cedo? – pergunta.

    Reviro os olhos.

    Nem preciso responder, ele já entendeu.

    É o meu primeiro dia na escola Felton, não estou muito animada, mas é a escola mais próxima, então tenho que fazer esse esforço. E começar tudo de novo.

    — Math...

    — Sim. – Ele se vira para me olhar.

    — Não me sinto bem – desabafo.

    Math sempre foi como um diário para mim. Tenho dificuldade de me abrir, de falar sobre os meus sentimentos ou até mesmo de falar sobre como foi o meu dia. Sempre fui muito reservada. Lembro-me de quando Jane implorava por uma conversa de mais de cinco minutos, não que não confie na minha própria mãe, mas é diferente com ele.

    Ele franze a testa e os seus olhos claros se prenderam nos meus.

    — O que você tem, tampinha? – pergunta, passando o braço em torno do meu pescoço.

    Descanso a cabeça no seu ombro. Eu estava cansada, esgotada. Não sei bem o motivo. Mas sinto que o mundo está para desmoronar na minha cabeça.

    — Esse é o problema, eu não sei. – Suspiro.

    — Tente não carregar o mundo nas costas. Às vezes, nos preocupamos demais com coisas que não temos controle, não vale a pena – murmura.

    Balanço a cabeça positivamente.

    — É como se tudo isso fosse uma peça de teatro. Sinto que estou atuando, e essa peça está longe de ter um fim. Não sei quem eu sou nem por que estou aqui. Estou no meio de uma crise existencial.

    — Você precisa ter paciência. Sei que esse não é seu forte. – Ele sorri. – Logo vai descobrir o sentido de tudo isso.

    — Promete de soquinho? – pergunto mostrando a palma da mão.

    Ele ri.

    — Prometo – responde dando um pequeno soco no meio da minha mão.

    — E se não cumprir? – pergunto e espero a resposta de praxe.

    — Te devo um sorvete de caju.

    Lembro quando Chico, meu cachorro de estimação, destruiu a minha Barbie que ganhei de Natal. Não fazia nem dois dias que ela estava entre a minha família de bonecas. Quando vi partes dela pela casa, chorei durante uma semana. Então Math me levou até o telhado e me pediu para contar as estrelas. A inocência de uma criança é algo surreal, porque lembro que fiquei horas apontando e falando os números em voz alta.

    O que me fez esquecer de chorar. Quando cansei de contar, Math me levou até o meu quarto e me colocou na cama para dormir. E, antes de desabar num sono profundo, eu virei e perguntei: Eu vou contar estrelas amanhã?. E ele respondeu: Do céu inteiro. E eu perguntei novamente: Promete?. Então ele pegou minha mão e me fez virar a palma para ele, ele deu um leve soquinho e respondeu: Prometo, e, se eu não cumprir, te devo um sorvete de caju. Eu ri e disse para ele que era melhor cumprir. Eu odeio caju.

    — Agora vamos, tampinha. Preciso trabalhar já, já – ele fala levantando-se.

    Levanto e me arrasto de volta para o quarto.

    Tiro o roupão e penduro atrás da porta, apago a luz, balanço os pés para tirar os chinelos e me jogo na cama.

    Sinto como se metade de uma vida fosse arrancada de mim. É estranho, mas tenho a sensação de ter passado o maior tempo com ressaca, daquele tipo que você bebe todas e, na manhã seguinte, são apenas borrões. Tenho dezessete anos, deveria lembrar muita coisa, não de quando comia terra com dois anos de idade ou algo assim, mas de como terminou a noite passada ou como acabei dormindo, sendo que não me lembro de ter ido deitar. Minha vida é uma bela bagunça. Será que todo esse problema está comigo?

    Acordo com a claridade invadindo o meu quarto. Espreguiço-me e pisco umas quinze vezes por causa da luz forte, faço uma careta e ponho o travesseiro sobre o rosto. Já me havia esquecido do quão dolorido é acordar às 6h da manhã. Jane abriu as cortinas. Tenho que começar a pensar na troca desse despertador.

    O seu cabelo castanho estava preso num perfeito rabo de cavalo. Shorts de lycra e tênis. Posso imaginar para onde vai antes de trabalhar. Não sei de onde vem tanta disposição.

    — Hora de acordar, Abelhinha – sussurra com uma voz suave.

    Raramente a minha mãe me chama pelo nome, exceto quando está brava, aí ela diz meu nome inteiro. Meu pai diz que me chama assim desde que nasci, mas nunca perguntei o porquê.

    — Já vou – resmungo, sonolenta.

    — Vinte minutos, e desça para tomar café antes de ir.

    Depois de tomar uma ducha, saio do box enrolada na toalha. Olho para o espelho, e não me contento muito com o reflexo. Os meus cabelos pingando no piso, faço um coque e o prendo. Analiso minhas olheiras gigantescas e faço uma maquiagem rápida no rosto pálido, terminando com um lápis cor de mel nos olhos. Tiro o elástico do meu cabelo, que cai sobre minhas costas indo até a cintura, e o seco rapidamente com o secador. Abro a gaveta, pego uma calça jeans, uma camiseta básica branca com listras pretas e um casaco por cima. Coloco o meu tênis e jogo a minha mochila nas costas. Dou uma visualizada rápida no espelho e saio do quarto batendo a porta.

    Quando desço as escadas, vejo a minha família reunida tomando café da manhã, a minha mãe sentada do lado do meu pai e Math na ponta da mesa.

    Sento de frente para o meu pai e puxo o pote de geleia e a torrada ao lado.

    — Quando chegar da escola, preciso ter uma conversa com você – Jane fala, olhando diretamente nos meus olhos e depois, de canto de olho, para meu pai.

    Esse é o tipo de frase que me faz repensar em todas as merdas que já fiz na vida.

    — Só espero não ter que arrumar as malas de novo – falo e enfio um pedaço de torrada na boca.

    Ela suspira e limpa a boca com o guardanapo.

    — Boa sorte – Math fala para minha mãe e dá um beijo em sua testa. – Até mais tarde – ele fala indo em direção à porta.

    — Vou com você – o meu pai fala, levantando-se da mesa. Dá um beijo em mim, depois na minha mãe e segue em direção à porta.

    — Vou esperar vocês para o almoço! – Jane grita.

    — Por que eles vêm almoçar hoje? – pergunto, bebericando o suco.

    — Eu sei que não tenho te dado muita atenção e ando ausente, mas não precisa ser tão fria – balbucia enquanto leva os pratos para a pia.

    — Não estou sendo fria, mãe. Eu só estou perdida. Você é um livro fechado. Uma caixa de segredos. E piorou mais depois dessa viagem. Eu não sei o que está acontecendo, mas está me afetando – falo, levantando-me da mesa.

    — Mellany...

    — Até mais tarde – falo batendo a porta da cozinha ao sair.

    Chego à escola e olho em volta, parada no meio do corredor, procuro o meu armário, nº 12, bem lá no fundo, todos na cor verde. O meu armário é um dos últimos, então tenho que passar por esse corredor enorme e assustador o tempo todo. Eu não sei qual o meu problema com corredores e túneis, eles me dão falta de ar e uma pitada de desespero.

    Procuro a chave dentro da mochila com certa dificuldade de encontrar, é uma verdadeira zona.

    Acho o molho de chaves e a do meu armário é a menor na cor verde com prata. Estou começando a gostar menos dessa cor.

    Abro o armário e coloco as coisas dentro. Livros, cadernos e mais um monte de coisas que estavam deixando minha mochila como se eu estivesse carregando concreto de tão pesada.

    Fecho o armário e vou direto para o pátio. No primeiro dia de aula, eles reúnem todos os alunos para dar as boas-vindas. Aquela famosa ladainha. Ponho a minha mochila nas costas e sigo para o pátio.

    Depois de muito blá-blá-blá do diretor e de alguns professores, sigo para a minha nova sala. A sala não é muito grande, são três fileiras, com dez carteiras cada uma, organizadas em duplas. Dois ventiladores de teto e janelas com cortinas na cor branca. Olho em volta da sala, uma mistura completa de estilo, tem de tudo. Começo a pensar na minha antiga escola e nos meus amigos, não que eu sinta tanta falta, mas lidar com algo que você já conhece e está acostumada é mais fácil. O professor faz um barulho com a pasta na mesa, tirando-me do meu pensamento nostálgico.

    — Bom dia, turma – grita. Ele é alto e careca, vestindo uma bermuda branca com preto, uma blusa de frio azul e o jaleco branco por cima.

    A turma lhe responde, e, em seguida, ele começa a anotar o seu nome na lousa e a sua matéria. Professor Dalton, e, para minha alegria, de Educação Física. Como se não bastassem dois em casa. Sou o sedentarismo em pessoa. Fora que essa aula exige dinâmica, e é tudo o que menos quero nesse momento.

    — Conheçam a pessoa sentada ao seu lado. Na aula de hoje, a atividade será em dupla – ele fala olhando para a turma, fazendo-me perceber que estou sentada sozinha.

    Então um alvoroço começa, e o som das cadeiras arrastando no piso invade os meus ouvidos.

    Essa é a pior parte. Nunca fui muito sociável, sempre detestei os primeiros dias de aula, está aí o motivo.

    Uma mão encosta no meu ombro e me viro para olhar.

    — Olá. Meu nome é Lisa, posso me sentar aqui? – pergunta a garota loira de cabelos longos, olhos verdes e bochechas rosadas.

    — Claro. – Sorrio para ela.

    — Qual o seu nome? – pergunta, sentando-se e ajeitando-se na cadeira.

    — Mellany – respondo.

    Lisa me bombardeia de perguntas, e eu faço o mesmo. Ela já estuda aqui há um bom tempo, mora com os pais e é filha única. Ela me conta sobre a escola e os professores. Começo a me sentir um pouco melhor por ter feito uma amizade e, por uma incrível coincidência, seu armário é do lado do meu.

    No fim das aulas, Lisa e eu seguimos para os armários.

    — O que achou da escola? – ela pergunta abrindo seu armário.

    — Sinto falta da minha antiga escola – confesso.

    Ela ri.

    — É bom mudar de ares. – Ela pisca. – Caras novas, gatinhos... – Ela sorri animada.

    — É. Vou ter que concordar. – Sorrio.

    O caminho da escola até minha casa dá uns vinte minutos no máximo. Então vou andando. Caminhar me deixa mais calma, e consigo colocar meus pensamentos confusos em ordem. Puxo os fones de ouvido de dentro do bolso da calça e plugo no celular. Coloco-os na orelha e dou play na minha playlist. E a voz de Britney Spears cantando Circus invade meus tímpanos. Essa música antiga dela me faz sentir mais saudade ainda da minha infância. Caminhando a passos lentos, observo as pessoas indo e vindo, os seus rostos com a mesma feição. Às vezes, sinto como se estivesse presa nesse mundo mundano, obrigada a manter as aparências e a agir como todos. Sinto como se todos fossem fantoches. Mas, então, quem os manipula? É sempre a mesma coisa. Escola, trabalho, faculdade, filhos e, enfim, a morte. Isso faz algum sentido? Deveria fazer? Talvez seja eu o problema. Gostaria de ser normal e conseguir me encaixar em algo nessa vida para variar um pouco.

    O sinal fica vermelho para pedestre e aguardo pacientemente na calçada para atravessar. Algo me chama a atenção do outro lado da rua. Um garoto de moletom preto, com uma touca cobrindo boa parte de seu rosto, aguarda do outro lado da rua o sinal esverdear. Mas o que me atraiu a atenção foi a marca em seu rosto. Ele se virou e foi como se aquilo gritasse por minha atenção. Era uma enorme cicatriz do lado direito de seu rosto, mas não uma cicatriz normal, eu nunca havia visto algo parecido. O desenho descia desde o início da testa até pegar o canto da boca. Antes que eu pudesse analisar o desenho, fui puxada para trás com violência, direto para o asfalto quente. A buzina do carro e a freada brusca dos pneus alarmaram a rua inteira. Os fones foram arrancados do meu ouvido.

    — Está tentando se matar? – A garota me encara confusa e ofegante.

    Os seus olhos queriam saltar de seu rosto. Com aquele famoso V na testa, a garota que não me era estranha me encarava.

    Olhei ao redor, tentando entender a situação. O garoto da cicatriz já não estava mais lá. E todos me encaravam. Pelo que parece, quase fui atropelada, mas não lembro de ter andado um só passo para a rua. Até então eu esperava o sinal abrir.

    — Não – respondo, tentando entender o que acabou de acontecer.

    Ela me analisa de cima a baixo.

    — Talvez a música estivesse alta demais – fala, balançando a cabeça em negativa. Ela me estende a mão, e eu aceito, levantando-me, atordoada.

    — Eu não percebi – falo, franzindo a testa.

    — Foi tudo muito rápido. Você estava distraída.

    — E, pelo visto, você não – respondo, analisando sua expressão. – Obrigada – digo, colocando os fones na orelha de novo.

    — Disponha – finaliza.

    4

    A herança

    Jane me espera na sala. Tanto mistério. Espero que valha a pena. O meu dia não foi dos melhores hoje. Ponho a minha mochila no canto da sala e sigo para o sofá. Ela está sentada na poltrona e me olha quando me aproximo.

    — Vamos lá – falo, jogando-me no sofá.

    Ela entrelaça os dedos e respira fundo.

    Analiso seu nervosismo.

    — Eu preciso que você entenda detalhe por detalhe do que estou prestes a te falar, eu não podia te contar até você completar dezoito anos, mas, como o seu aniversário é amanhã, eu preciso que seja hoje que você saiba.

    Juro que me havia esquecido do meu aniversário. Não faço questão de lembrá-lo. Não faço questão de festas nem nada dessas coisas. Para mim, é um lembrete de que estou ficando velha. Isso não é algo muito animador.

    Eu imaginava que seria uma conversa importante, mas não tanto. Enquanto ela toma coragem para me contar, o meu pai e Math se aproximam e se sentam no sofá de frente para nós. Ele deu uma piscada para mim, sempre faz isso quando quer dizer que está tudo bem. Já Math estava tenso. Nunca o vejo com essa expressão, então eu realmente estava começando a ficar nervosa.

    — Ok, mãe, me conta logo o que está acontecendo – falo, nervosa.

    Ela põe uma mecha de seu cabelo atrás da orelha e se ajeita no sofá.

    — Há alguns séculos, começaram a surgir histórias e lendas sobre bruxas. Em cada história, elas são retratadas de maneiras diferentes. Em algumas, elas são seres terríveis das trevas que praticam magia e usam para fazer o mal, o que é verdade com a maioria delas. Em outras, a bruxa é uma velha que voa em uma vassoura e come crianças, isso é mito. Em todo caso, todas elas que eram apontadas como feiticeiras eram queimadas vivas em árvores. Lendas dizem que nem todas foram mortas e extintas naquela época e que elas ainda existem. Mas, de todas as histórias que existem, apenas um tipo de bruxa nunca foi descoberto, o que leva o nome de Bruxa Astral. Só quem sabia da sua existência eram as famílias, cujo gene passa somente para as mulheres da família, ou seja, de mãe para filha. O tipo Bruxa Astral permaneceu em segredo absoluto durante séculos e continua até hoje. Mesmo no nosso mundo, não é comum. É por esse motivo que a verdadeira Bruxa Astral só saiba realmente de sua verdadeira identidade quando se torna responsável o suficiente para saber guardar um segredo de extrema importância.

    Segurei a risada apertando os lábios. Levei a mão ao queixo e franzi a testa.

    — Ok – respondo ainda sem entender aonde ela quer chegar.

    Ela faz uma pausa e depois continua:

    — Querida, sua avó era uma Bruxa Astral, eu sou uma Bruxa Astral, e você é uma Bruxa Astral – ela fala num tom calmo.

    Gargalhei.

    — Vocês só podem estar de brincadeira – falo rindo.

    Math continua sério e lança um olhar para a minha mãe. O meu pai continua com a mesma expressão.

    Em compensação, Jane...

    — Eu já imaginava – ela fala gesticulando com as mãos.

    — Tudo isso para me contar que sou bruxa? Tem como não achar graça disso? Eu não sei que tipo de brincadeira vocês prepararam esse ano para mim, mas juro que foi uma das melhores – falo, encostando-me no sofá.

    Todo ano, quando o meu aniversário está para chegar, eles têm a incrível ideia de fazer surpresas. Isso porque nunca pedi por festas. Deve ser por isso que fazem. Em um ano, eles colocaram pistas pela casa toda, vários papeizinhos espalhados por aí, cada um com uma dica de como chegar até o meu presente. Confesso que curti aquilo, mas isso já era demais. O que eles pretendiam?

    — Isso não é brincadeira. – Jane me olha sério.

    O meu pai encosta no sofá e Math resmunga algo que não entendi.

    A minha mãe se levanta e faz um movimento com as mãos, todos os móveis da casa flutuam. Demorou até que eu entendesse o que estava acontecendo. Apertei os olhos e dei uma boa olhada em volta. Tudo estava literalmente nos ares. Aquilo estava realmente acontecendo.

    — Isso não é brincadeira – ela repete me fuzilando com o olhar. Ela abaixa as mãos lentamente, e tudo volta como estava.

    — Como... como... – gaguejo.

    Como toda criança, quando assistia a esses filmes de magia, sonhava em ter poderes e imaginava como seria. Eu literalmente me sinto em um filme. Math e papai pareciam estar superconfortáveis com aquilo, enquanto o ponto de interrogação estampou no meu rosto. Jamais imaginei passar por isso, por mais que o meu eu interior infantil esteja pulando de alegria.

    — Mel, eu sei que isso é difícil de acreditar, quase impossível eu diria, mas nós todos estamos aqui pra te apoiar e te ajudar no que for preciso – o meu pai balbucia ao meu lado.

    Até ontem vampiros e bruxas existiam apenas em seriados de TV. Eu sempre achei uma grande estupidez. Mas ainda assim assistia a todos porque, de alguma forma, me fascinava. É possível achar algo estúpido e ainda assim gostar? Lembro-me de quando era criança e ganhei uma varinha de condão, porque pedi de Natal. Ela acendia na ponta quando eu tocava algum objeto, mas apenas isso. Senti-me a fada-madrinha. A mais poderosa. Mas qual criança não ficaria feliz? Era algo totalmente inocente. No fundo, eu sabia que a única coisa que ela iria fazer era acender a ponta e mais nada. Porque, mesmo tendo sete anos de idade, eu sabia que a magia só existia em filmes e desenhos.

    Eu estaria pulando de alegria se fosse há dez anos, uma criança que descobre ser bruxa. Certamente me divertiria muito dando vida aos meus bichos de pelúcia.

    — Eu sei o quanto isso pode ser difícil de acreditar, eu passei por isso, todas nós passamos. É complicado, mas eu estou aqui pra te ajudar a seguir com essa nova vida que você vai ter. Está no seu sangue, você precisa ser ensinada e aprender a controlar antes que você acabe machucando alguém. – Ela enfatiza as últimas palavras.

    Sabe quando você está tentando acordar, e não consegue? É como se o seu corpo estivesse anestesiado e você não consegue mexer nenhum músculo, mas você está lá sentindo tudo. É a pior sensação. É exatamente o que estou sentindo.

    Machucando alguém – repito suas palavras.

    Balanço a cabeça de um lado para o outro, tentando entender e achar um meio de acreditar que tudo aquilo estava realmente acontecendo. Olho para Math e ele está sério, olhando para mim com olhos arregalados e tensos. O meu pai me olha tentando desvendar os meus pensamentos, e a minha mãe, com o rosto sereno e calmo, olhando nos meus olhos. Se isso fosse uma brincadeira, Math já teria se entregado, dando o seu sorriso torto e o seu olhar como quem diz: Peguei você. Mas não é o caso. Sinto como se tivesse vivido uma mentira. E agora, seguindo por essa linha de raciocínio, me sinto enganada.

    — Seus desejos suas vontades e sua forma de agir vão mudar, você vai estar no controle o tempo inteiro. Se você pensar com firmeza, ela acontece; se pensar com raiva, acontece da mesma forma. Tudo em você se amplificará, as coisas vão simplesmente acontecer, mas, se não estiver pensando com clareza e não limpar sua mente, você vai acabar fazendo alguma besteira. A magia pode ser perigosa, mas ao mesmo tempo pode ser inocente. Quem decide isso é você.

    Hoje eu acordei e era uma pessoa normal, e agora sou uma bruxa, que tem uma mãe bruxa. Convivi, a minha vida toda, com uma pessoa que tem poderes e só agora descubro. Isso é loucura. A maioria das pessoas normais ganha um carro com dezoito anos e eu ganhei... poderes!?

    — Estou tentando acreditar. Mas é demais – confesso.

    Nunca me senti normal, é como se a vida que vivi não fosse o bastante, estava sempre esperando por algo, sempre me senti diferente. Na roda de amigos, era a maluca do telhado, sempre gostei das vistas que eles me proporcionavam. Parecia que nunca conseguia me incluir em nada. Sempre tive a sensação de que era algo mais. Talvez isso não seja total maluquice. Mas, mesmo se tratando de mim, isso ainda era demais. Não faz nenhum sentido. Mas, pensando melhor, as coisas que acontecem ultimamente, e o que tenho sentido, é como se as peças começassem a se encaixar.

    — Eu sei que agora sua cabeça está uma verdadeira confusão. Mas é normal – responde.

    Ergo o olhar para Jane.

    — Normal? Acabei de descobrir que você é uma bruxa e que automaticamente eu também sou, acha mesmo que isso é normal? – falo num tom um pouco alto demais.

    Ela respira fundo e olha de soslaio para o meu pai. Depois de longos segundos, ela me fita e os seus olhos transmitem a calma outra vez.

    — Eu entendo, Mel. Passei por isso também. E, mesmo sendo demais, só quero que você tenha paciência e fique calma. A confusão vai passar. E, por mais que seja difícil acreditar, você vai se acostumar. Como sua avó se acostumou e como eu me acostumei.

    O meu cérebro não consegue aceitar essa afirmação.

    — Mas, então, como vai ser? – Olho para ela, tentando entender.

    — Amanhã, no horário em que você nasceu, você vai começar a sentir algumas mudanças,

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1