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Mulheres Incorrigíveis: Histórias de valentia, desordem e capoeiragem na Bahia
Mulheres Incorrigíveis: Histórias de valentia, desordem e capoeiragem na Bahia
Mulheres Incorrigíveis: Histórias de valentia, desordem e capoeiragem na Bahia
E-book273 páginas3 horas

Mulheres Incorrigíveis: Histórias de valentia, desordem e capoeiragem na Bahia

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Sobre este e-book

Mulheres incorrigíveis: Histórias de Valentia, Desordem e Capoeiragem na Bahia é resultado de um importante trabalho de pesquisa que busca dar visibilidade para importante participação das mulheres na formação da capoeira na Bahia. Como afirma a prefaciadora do livro Adriana Dias "Pioneira no tema, Juliana derruba de uma vez por todas a falsa ideia de que a capoeira pertencia a uma cultura de domínio exclusivo dos homens, assim como a crença de que apenas nos anos 1960 as mulheres entraram para a capoeira".
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de dez. de 2021
ISBN9786588586099
Mulheres Incorrigíveis: Histórias de valentia, desordem e capoeiragem na Bahia

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    Pré-visualização do livro

    Mulheres Incorrigíveis - Paula Juliana Foltran

    Ficha Técnica

    Copyright | Editora Dandara, Paula Juliana Fortran, 2021

    Direção Editorial | Joselicio Junior

    Revisão | Eveline Silva

    Projeto gráfico, diagramação e capa | Estúdio Flicts

    Editora Dandara

    www.dandaraeditora.com.br

    Fialho, Paula Juliana Foltran

    Mulheres incorrigíveis : histórias de valentia, desordem e capoeiragem na Bahia / Paula Juliana Foltran Fialho. -- 1. ed. -- São Paulo: Editora Dandara, 2021.

    ISBN 978-65-88586-04-4

    1. Antropologia 2. Capoeira (Luta) - Aspectos sociais 3. Capoeira (Luta) - História 4. Cultura - Bahia (Estado) 5. Mulheres 6. Mulheres - Aspectos sociais 7. Mulheres na cultura popular - Brasil I. Título.

    Índices para catálogo sistemático:

    1. Mulheres : Capoeira : Manifestação cultural : História 796.8109

    Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964

    Prefácio

    Introdução

    Sobre como surgiu a ideia e se iniciou a pesquisa que dá carne e sangue aos argumentos

    01. Rosa Palmeirão e os Capoeiras: gênero, raça e classe na constituição histórica de significados

    Gênero, raça e classe na construção de um tipo social

    Sobre a virada valorativa dos símbolos e dos tipos: os cronistas da capoeiragem e o não rompimento com a colonialidade

    Rosa Palmeirão e sua transmutação histórica

    02. Idalina no Jogo de ocultação/revelação das Mulheres nas narrativas tradicionais da Capoeira

    Morre o valente, nasce o diplomado, o lugar editado das mulheres na tradição

    A navalha da memória e seu (re)corte de gênero: as mulheres do passado deslocadas nos discursos do presente

    03. Chicão, a última dos tempos dos valentes: a masculinização da valentia e da desordem na historiografia da Capoeira

    A miopia no olhar relativo à presença de mulheres negras no contexto de rua analisado pela historiografia

    Valentes de fato! O Mulherio das Ruas e suas Façanhas

    Iê Faca de Ponta, camará: as perigosas Maria Firmiana e Adélia Maria

    Iê Viva a Bahia, camará: as célebres Clé, Calunga e Belleza, e outras turbulentas

    Considerações Finais

    Referências Bibliográficas

    Sobre a Autora

    Dedicatória

    Dedico este livro à minha mãe, Ivone, a primeira valente que conheci, e que me ensinou a enxergar todas as outras. E à minha filha, Sofia Vitória, que leva o nome de minha avó, para que se lembre sempre que mulheres são Rios que desbravam seus próprios caminhos.

    Agradecimentos

    Dirijo meus agradecimentos a alguns dos que fizeram possível este livro, a pesquisa e/ou que participaram do meu processo de aprendizado e de reflexões: Valdenice dos Santos, a mestra Jararaca, pela referência; Bruno Borges, o Periquito, meu mestre e companheiro de arrelias; Anderson Oliva, meu ousado professor; Adriana A. Dias, a Pimentinha, pelas muitas trocas; Josivaldo Pires, o mestre Bel, pelas provocações; Marivaldo Pereira, que acreditou no projeto e articulou para que acontecesse; Juninho, da Editora Dandara, pela paciência, confiança e carinho; Kamila Gomes, capoeira-pesquisadora sempre me desafiando; e os amigos/irmãos Flávia, Gugu, Luísa, Thiago, Durval e José, só porque eu amo.

    "Quem não conhece a Capoeira,

    não pode dar o seu valor".

    Prefácio

    A capoeira é homem, escreveu Machado de Assis em uma de suas crônicas publicada em 1885.¹ O literato, assim como muitos outros, não conseguiu enxergar a presença das mulheres no meio da capoeiragem na cidade do Rio de Janeiro Oitocetista. Ledo engano. Alguns anos antes, em 1882, o cartunista Angelo Angeli já havia se atentado para o fato e em uma de suas charges da Revista Ilustrada afirmou: Até as pretas deram agora em capoeira!.² Na velha cidade da Bahia não foi diferente. É o que mostrou Paula Juliana Foltran nesta obra que conta uma história sobre as mulheres na capoeira e que tenho a honra de prefaciar.

    A capoeira da Bahia despertou o interesse de artistas, cronistas, pesquisadores, memorialistas e literatos desde o século XIX. A partir do centenário da abolição, ela se tornou objeto central de estudos em diferentes áreas do saber científico e atualmente são diversos os trabalhos que tratam da temática dentro e fora da universidade. Entretanto, como demonstrou Paula Juliana Foltran, durante muito tempo houve um grande silenciamento sobre a participação ativa e criativa das mulheres enquanto agentes históricas neste universo. Neste sentido, este livro, fruto da sua tese de doutorado, é um divisor de águas e um marco na historiografia e na própria história da capoeira.

    Uma das grandes contribuições desta obra foi dar visibilidade ao protagonismo das mulheres negras na capoeira em Salvador, que ali estavam, desde a sua gênese, atacando e se defendendo com a navalha escondida nos cabelos, na luta pela sobrevivência, nas ruas e ladeiras da cidade da Bahia, mas que (quase) ninguém tinha visto! Pioneira no tema, Juliana conseguiu derrubar de uma vez por todas a falsa ideia de que a capoeira de outrora pertencia a uma cultura de domínio exclusivo dos homens, assim como a crença de que apenas nos anos 1960 as mulheres entraram para a capoeira.

    A autora se debruçou sobre diversas fontes e construiu uma nova história sobre o conhecido tempo dos valentes e da malandragem, período privilegiado dos estudos históricos sobre o assunto na Bahia. Este foi um momento em que a capoeira foi perseguida e criminalizada, juntamente com outras práticas culturais negras, através de uma política de extermínio do Estado brasileiro e suas instituições. Uma orientação governamental contra as populações negras e suas heranças disfarçada de política de modernização e civilização das cidades e dos costumes.

    Seguindo algumas pistas deixadas pela historiografia sobre a capoeira baiana, Juliana demonstrou que atitudes de valentia, desobediência, ousadia e insubordinação de centenas de mulheres negras, necessárias diante do contexto de violência e opressão racial, social e de gênero em que viviam, pouco se diferenciavam do comportamento daqueles homens eleitos como os verdadeiros capoeiras. Para além dessas atitudes, ao analisar os conflitos envolvendo mulheres, a pesquisadora identificou muitos indícios da cultura da capoeira que vinculavam suas trajetórias a ela: desde o modo de andar cheio de gingado dessas mulheres até as tatuagens do signo de Salomão que carregavam em seus corpos. Dessa forma, a autora deste livro conseguiu mostrar que esse mundo pertencia também às mulheres de carne e osso que até então tiveram sua história negada, mas que daqui para a frente não poderão mais ser esquecidas: nossas ancestrais, as capoeiras de outrora.

    Em Mulheres Incorrigíveis, Juliana - capoeirista, pesquisadora e feminista - superou com maestria o desafio da ausência de fontes graças à inovação da perspectiva teórico-metodológica de gênero e interseccional escolhida como horizonte investigativo e que foi fundamental à análise original que fez da documentação. Dialogando com uma bibliografia, sobretudo, a feminista negra e decolonial, como Sueli Carneiro, Angela Davis, bell hooks, Maria Lugones, Oyèrónké Oyewùmí, Jurema Werneck, Grada Kilomba e tantas outras, a autora recuperou as valiosas contribuições de intelectuais negras historicamente esquecidas. Assim pôde revisitar com um novo olhar as primeiras narrativas sobre a capoeira, crônicas e memórias daqueles que estavam dentro e fora da grande roda, a própria historiografia existente e também ampliar a documentação jornalística, policial e jurídica sobre o assunto.

    Foltran reconheceu os primeiros passos dados por nós, historiadoras e historiadores da capoeira na Bahia, ao mesmo tempo em que questionou nossos olhares ainda enviesados, engessados por um viés ainda binário e essencialista de gênero e raça, fruto da colonialidade, que fizeram com que não enxergássemos as mulheres presentes na documentação como agentes históricas ou reservássemos a elas um lugar periférico no tecido do tempo. A historiografia reforçou antigas narrativas e alimentou tradições modernas sobre a capoeira que ainda hoje vê sua gênese ligada ao mundo dos homens.

    Todavia, por não existir passado fixo, Juliana, partindo de suas inquietações enquanto mulher e capoeirista, reescreveu uma parte importante desta história, mostrou com destreza que uma outra leitura era possível, tornando visível aquelas que estavam escondidas, às margens ou estereotipadas e as trouxe para o centro da roda. Marias, Zeferinas, Angélicas, Franciscas, Josephas e Idalinas, e tantas outras mulheres, negras e valentes, não deixarão mais de fazer parte desta história de luta e resistência.

    Da tese nasceu o livro e a veia poética e política da autora se aflorou ainda mais, tornando sua leitura mais agradável e acessível ao grande público. A autora emociona logo nas primeiras páginas ao lembrar das experiências de violência e resistência de duas mulheres que fizeram parte de sua vida: sua avó Vitória e a parteira Raimunda. Há muito tempo, nós, mulheres capoeiristas, necessitávamos de uma pesquisadora como Juliana Foltran, formada em serviço social e com experiência na luta contra a opressão e a exploração das mulheres, para produzir uma pesquisa que reconhecesse o nosso lugar nesta história, sem os equívocos provocados pelo sexismo e pelo falogocentrismo.

    É preciso enfatizar que esta obra é fruto dos movimentos feministas que viraram a academia do avesso e questionaram sua forma tradicional de produzir ciência e a própria construção da história, permitindo que as mulheres fossem reconhecidas como agentes do conhecimento e da própria história. Com certeza a publicação deste livro é muito importante para as futuras pesquisas que dentro da universidade não poderão mais ignorar a presença das mulheres na cultura da capoeiragem.

    Mulheres incorrigíveis, em muitos sentidos, representa um marco e a força da luta feminista e antirracista dentro da capoeira que tem batalhado com unhas e dentes pela valorização do protagonismo das mulheres e pelo fim da desigualdade de gênero nesta cultura que nasceu da ânsia por liberdade. A partir de agora, a história da capoeira não poderá ser mais contada da mesma forma. As mulheres também não poderão mais deixar de compor a memória da capoeiragem. Boa leitura!

    Adriana Albert Dias

    Historiadora e pesquisadora da capoeira baiana

    1 ASSIS, Machado de. Balas de estalo & crítica: crônicas. São Paulo: Globo, 1997. Balas de estalo era o nome da seção do Jornal Gazeta Popular do Rio de Janeiro onde esta crônica foi publicada pela primeira vez.

    2 Revista Ilustrada, n. 289, 1882.

    introdução

    "Muitas moram em mim.

    E são essas muitas que se unem em uma só,

    a fim de escrever" ¹

    No interior de São Paulo, minha avó trabalhou na lavoura, no plantio de café. Seu braço forte e sua pele manchada do Sol são lembranças que guardo da infância, do curto período em que com ela convivi. Gostava de observar suas mãos grossas e seus pés duros enquanto ela preparava seu cigarro de palha e destrinchava o fumo de rolo. Os dedos amarelos. Minha mãe me contava que na sua infância, quando ela própria tinha de ajudar no duro trabalho do campo, e quando o estudo era algo muito distante (metafórica e literalmente, pois tinha de caminhar quilômetros, com pés descalços, para chegar na escola), viu sua mãe, minha avó, correr, diversas vezes, com ela nos braços, para fugir da carabina do meu avô. Quando bebia, o velho se esquecia da recomendação de deixar de lado o idioma materno para se assumir verdadeiramente um trabalhador brasileiro (aquele que viera substituir a mão de obra escravizada e branquear o povo), e usava todo repertório italiano para xingar e ameaçar dona Vitória, sua esposa, minha avó.

    Apesar da tristeza ou do absurdo que esta história possa representar, minha mãe nunca a contou com lágrimas nos olhos. Seu tom sempre foi de orgulho, porque na sua perspectiva, mais significativo que a violência de seu pai, para ela eventual, era a força de sua mãe. Esse é o sentido que ela escolheu para contar sua história. Vitória protegia a si e a filha mais nova, escondia-se como podia no meio do mato, para evitar o embate injusto e assimétrico produzido pela posse da arma de fogo. Contudo, narrava minha mãe entre sorrisos marotos, sem a carabina, ela sabia muito bem quem é que ganhava a briga: dona Vitória não era mulher para fraquezas. E apesar de toda dureza de sua vida e das dificuldades enfrentadas, as histórias que ouvia sobre ela a descreviam como muito forte, tanto no físico como no caráter.

    Meu trabalho como assistente social me deu o privilégio de conhecer muitas donas Vitórias. Cada uma que aparecia agregava mais sentidos à leitura que eu podia fazer da minha avó, que se foi antes de eu completar 7 anos. Também traziam evidências para a crítica da leitura que se faz de todas as mulheres, sempre tão enviesadas e distorcidas por ideologias, estereótipos e lugares fixos. Mostravam como os sistemas de opressão moderno-coloniais, em seus eixos de dominação de raça, gênero e classe, cegam os olhares para as existências e produzem narrativas injustas para com nosso verdadeiro papel social, cultural e político. Apagam nossos protagonismos e nossa inserção real na vida, para fazer caber na teoria o objeto mulher dentro de conformações e expectativas pré-determinadas. Uma dessas mulheres se chamava Raimunda. Mais de 16 anos após nosso primeiro encontro, em Recife, sinto grande necessidade de contar sua história, pois ela, como se verá, produz junto com dona Vitória e a história das mulheres incorrigíveis narradas neste livro uma grande cocha de retalhos que se torna mais significativa, mais inteligível, justamente nos pontos e nós que a costuram.

    Dona Raimunda era uma parteira. Vivia em Jaboatão dos Guararapes, na área rural do município que faz parte da região metropolitana do Recife. Morava em uma comunidade ribeirinha, distante do centro e com maiores dificuldades de acessar os serviços na capital. Trabalhou na roça desde cedo, ainda criança, e nunca teve oportunidade de ir à escola. Era analfabeta das letras, mas sabia ler o mundo. Para diminuir as despesas em casa, excluindo uma boca a alimentar, seu pai a deu em casamento a um homem bem mais velho. Ela o descrevia como um sujeito ruim, que a tratava mal, era grosseiro e estúpido, mas que tinha um boi. Sempre que se referia a ele, elevava a voz e dava um tom nervoso à narrativa. A mágoa era quase palpável, como pedregulhos secos rolando a cada palavra, e como Riobaldo, ela sabia que viver é perigoso, exigia coragem e certa dose de desobediência, mas na hora certa, pois Deus é paciência. O contrário é o diabo. Se gasteja².

    O sujeito a viu em uma festa de quermesse, na praça da Igreja e cismou que queria se casar com a menina. Ofertou a cabeça de gado ao pai de Raimunda, que já em situação de miséria, aceitou a ajuda e entendeu fazer bem à filha. Sobre o pai, não havia qualquer aspereza em sua fala. Ela compreendia aquela atitude como parte da vida, como repertório contra o qual não se podia lutar. Destino? Ele era o pai e a ela coube respeitar a decisão, tomada na medida certa do bem-estar familiar. Assim, aos 13 anos, Raimunda se juntou a este homem e com ele viveu uma vida amarga. Aos quase 50 anos, quando a conheci, já tinha parido 24 vezes. A maioria dos rebentos estava viva. Alguns morreram no parto e outros foram levados sem pecado. De todos tinha lembrança, e sobre todos falou com lucidez.

    Trabalhou no corte de cana e recebia em diárias. Ou melhor, recebia por dia, mas o valor irrisório auferido equivalia a uma quantidade fixa de cana que ela deveria cortar diariamente, nem que tivesse de trabalhar do alvorecer até depois do pôr do Sol. Junto com ela, o homem também trabalhava na mesma plantação e recebia a mesma quantidade de dinheiro pelo mesmo montante de cana cortada. Contudo, ele nem sempre comparecia. Por vezes preferia gastar consigo o dinheiro recebido no dia anterior. O pouco que Raimunda tinha era dividido para a família, a cada ano maior. Era ela a responsável pelo alimento na mesa. E quando ele, por não trabalhar sempre, se via precisado de mais dinheiro, tomava o dela. No geral, aliás, ele tomava notas do que a mulher comprava, para impedir gastos considerados desnecessários.

    E assim os anos se passaram, na penúria da vida, na labuta diária em pé de igualdade com seu marido e com qualquer outro homem de olhos cansados de ver o verde da cana. Era dentro de casa que ser mulher lhe trazia os sofrimentos específicos. Era obrigada a servir sexualmente a este homem a quem detestava. Não escondia o asco quando descrevia as investidas constantes, diárias, sobre seu corpo. Ela me contou inúmeros episódios: muitos de tristeza, mais ainda de alegria. E sua capacidade contagiante de sorrir e emendar uma narrativa na outra, evidenciando a complexidade das relações que compõem a vida humana, ensinou muito sobre a agência das mulheres do povo na (re)criação de suas trajetórias, na escrita de suas histórias e das de sua comunidade.

    Conto, dentre tantos, dois causos especificamente marcantes. Um por ser de uma dor profunda e ilustrar os tipos de experiências violentas que compõem a vida de Raimunda. O outro, por ser o derradeiro, quando a força que lhe cobravam no campo para conseguir atingir a meta diária de corte de cana pôde romper com qualquer possibilidade de leitura de uma mulher passiva, fraca e conformada.

    Entre os 24 partos que teve, poucos foram respeitados, se é que houve algum, em termos de resguardo. Além da necessidade de trabalhar, que a obrigava a voltar ao corte da cana tão logo recobrasse as forças, dona Raimunda contou episódios em que o marido a esperava enquanto paria, para poder ter relações em seguida. Em suas palavras, que martelaram minha mente por anos, ela não podia sequer se banhar após o nascimento do filho: se paria de manhã, já à tarde, ainda com os restos de parto no corpo e na cama, ele vinha fazer a sua sujeira.

    O outro caso ocorreu anos depois. Uma vez, tendo recebido o ordenado do dia, foi a uma mercearia, como de costume, para comprar as necessidades da casa. Um filho seu, que na época tinha 9 anos, a acompanhou e pediu para que comprasse um doce. Ao retornarem, dona

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