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Povos Indígenas e Ditadura: A Luta dos Kaingang no RS
Povos Indígenas e Ditadura: A Luta dos Kaingang no RS
Povos Indígenas e Ditadura: A Luta dos Kaingang no RS
E-book314 páginas4 horas

Povos Indígenas e Ditadura: A Luta dos Kaingang no RS

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Sobre este e-book

Povos indígenas e Ditadura: a luta dos Kaingang no RS procura ampliar o conhecimento geral que temos sobre os grupos sociais afetados durante a Ditadura Militar brasileira, desenvolvendo uma análise sobre as ações estatais direcionadas aos povos indígenas durante o período. Por meio de um aprofundamento em relação às experiências vivenciadas pelo povo Kaingang no estado do Rio Grande do Sul, tornaram-se perceptíveis as características genocidas e etnocidas das relações que o Estado brasileiro — caracterizado por um terrorismo de Estado particularmente marcado pela colonialidade do poder — estabeleceu com as comunidades e sujeitos indígenas, podendo ser compreendidas enquanto exercício de uma necropolítica. A obra também destaca que os indígenas não permaneceram passivos diante da "marcha inelutável do progresso", considerando o papel da articulação "corpo-território" como uma das mais significativas formas de resistência contra o projeto de integração e desaparecimento empreendido pela ditadura.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de dez. de 2021
ISBN9786525012643
Povos Indígenas e Ditadura: A Luta dos Kaingang no RS

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    Povos Indígenas e Ditadura - Amanda Gabriela Rocha Oliveira

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    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    Dedico este trabalho aos povos originários de toda Abya Yala. A suas histórias, suas lutas, seu passado, seu presente e seu futuro. Em especial, aos Kaingang, que tanto me ensinaram e ensinam sempre.

    AGRADECIMENTOS

    Este livro, apesar de ter uma autoria individual, só foi possível por causa de uma grande rede de afetos proporcionada pela trajetória construída dentro desse tema de pesquisa. Sendo assim, é preciso fazer o reconhecimento e os agradecimentos àqueles que contribuíram imensamente para a realização desta obra.

    Primeiramente, sou profundamente grata à Iracema, ao Gabriel e à Odila, por generosamente terem compartilhado suas histórias. Minha mais profunda gratidão à Elza, por ter proporcionado contatos, ajudado-me com as entrevistas, ter me recebido em sua casa e, principalmente, ter sido uma grande amiga. Assim como sou grata ao Danilo, por ter aceitado realizar o prefácio deste livro e, principalmente, por ter aberto caminhos dentro da academia para que a história recente de seu povo fosse conhecida por todos.

    Agradeço, também, aos meus pais, Carmem e Elvio, que não só escutaram muito sobre as teorias e descobertas que fazia, como me apoiaram nas minhas aventuras, mudanças, tentativas, erros e crises, nunca deixando de acreditar em mim.

    Por fim, gostaria de agradecer às centenas, possivelmente milhares de povos indígenas de Abya Yala, em especial, aos Kaingang: obrigada por seus ensinamentos, sua força, sua resistência, suas histórias e sua diversidade, que são tão necessários neste mundo que parece cada vez mais distante do que é importante.

    Sem vocês, este trabalho não teria acontecido, todos e todas têm sua parte nele. Muito obrigada por tudo. Demarcação já!

    Os quase-humanos são milhares de pessoas que insistem em ficar fora dessa dança civilizada, da técnica, do controle do planeta. E por dançar uma coreografia estranha são tirados de cena, por epidemias, pobreza, fome, violência dirigida.

    (Ailton Krenak)

    APRESENTAÇÃO

    As ações repressivas cometidas pelos agentes civis e militares das Ditaduras de Segurança Nacional do Cone Sul foram muitas. Censura, detenções arbitrárias, prisões, torturas e desaparecimentos são algumas das que poderiam ser citadas aqui como exemplos. Mas e as ações repressivas cometidas pelos Estados contra os povos indígenas nas Américas há mais de 520 anos? De que forma a ditadura se diferenciou desses outros períodos históricos para esses povos? Após ingressar na graduação em História por querer melhor compreender o que havia sido a Ditadura no Brasil, ao final do curso, esses questionamentos levaram-me a realizar a investigação que gerou este livro.

    Tais questões surgiram pela oportunidade que tive de conhecer e conviver com colegas, amigos, professores e mestres indígenas Mbyá-Guarani e Kaingang. Ouvi-los contar suas histórias, suas vivências e perspectivas em relação ao mundo e aos eventos que eu havia passado a formação universitária inteira estudando fez-me perceber que o reconhecimento por parte da sociedade não indígena sobre suas trajetórias era ainda pouco significativo, diante da imensidão de experiências diversas dos mais variados povos da região. Foi a partir dessa convivência, dessa escuta, desse compartilhar, que fui aprendendo não só sobre o que foi a ditadura em sentidos mais amplos, mas também sobre outras realidades possíveis, outras formas de ser, de existir, de resistir e de sonhar. Espero que esta pesquisa tenha contribuído um pouco para a divulgação da história dos povos indígenas durante as Ditaduras do Cone Sul e que tenha honrado a história dos entrevistados e do povo Kaingang do Rio Grande do Sul, que tão generosamente compartilharam-na comigo.

    Então, caros leitores e leitoras, meu desejo é que as próximas páginas — apesar de contarem sobre muitas dores, violações de direitos e uma luta incessante sobre o direito de viver e existir de acordo com o seu modo de ser — ofereçam a vocês ferramentas para compreender esse passado, ler o presente e atuar para um futuro diferente, no qual os povos e sujeitos indígenas tenham o respeito e o reconhecimento que merecem, pois o protagonismo histórico eles sempre tiveram: basta que os e as não indígenas permitam-se escutar, enxergar e sentir essas histórias.

    A autora

    PREFÁCIO

    É com grande satisfação e honra que preparo o presente prefácio à obra que tem sua origem na dissertação de mestrado de Amanda Gabriela Rocha Oliveira. Conheci a Amanda acompanhando a algumas aulas, falas e palestras realizadas por nós, indígenas, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Aliás, esse movimento dentro da Universidade Federal, nos últimos tempos, tem sido de grande importância para nós do movimento indígena, pois há um bom tempo nos articulamos e trabalhamos no sentido de dar voz à luta sobre nossos direitos. Em alguns momentos, encontrava-se eu à mesa, e em outros, os parentes de luta e nossos mestres, como Edson Kayapó e Ailton Krenak.

    Amanda foi orientada por um dos principais mestres sobre as Ditaduras no Cone Sul, o Prof. Dr. Enrique Serra Padrós, com o qual tive o prazer de assistir algumas aulas durante meu curso de mestrado. Acompanhei, então, esse caminho da Amanda, que dedicava seu tempo à história das ditaduras da região e confesso que me surpreendeu o direcionamento de sua dissertação para a História Indígena do Sul do Brasil. É muito bom tê-la não só como simpatizante, mas como companheira de luta em nossa causa.

    Para mim, particularmente, a Amanda entra, com sua pesquisa, para fazer parte de um grupo seleto de escritores acadêmicos que investigam, trabalham e simpatizam com a causa indígena. Tenho me dedicado ao tema do desaparecimento da população indígena do Brasil no século XX, pois defendia-se que não chegaríamos vivos ao novo milênio, o que me remete, então, a algumas colocações de John Monteiro, que afirmava que, muitas vezes, o historiador não se sente preparado para desenvolver pesquisas sobre a temática indígena. Pois bem, em tempos obscuros como os que enfrentamos (no passado e no presente), já não basta um historiador estar preparado, técnica, teórica, metodologicamente e talvez lançar-se ao desafio de pesquisar sobre os povos indígenas. É preciso ser simpático, empático e muitas vezes colocar-se como defensor da causa. Escrevo isso, porque Amanda tem se colocado à disposição dos grupos indígenas do Rio Grande do Sul para prestar ajuda no que está a seu alcance e apoiar, o que para nós, indígenas, é algo muito bom, pois necessitamos de mais braços de apoiadores para a luta, que se revela cada vez mais árdua, difícil. Nesse sentido, digo à Amanda: seja bem-vinda.

    Para quem quer trilhar uma boa leitura e dar o pontapé inicial para entender a relação das ditaduras no Cone Sul com os povos indígenas, desde já recomendo o trabalho de nossa professora Amanda. O texto toma ainda mais corpo ao debruçar-se sobre a atuação da ditadura brasileira e os indígenas Kaingang no extremo sul do Brasil. Para nós, que como indígenas procuramos trabalhar em cima das premissas da Nova História Indígena e lutamos, com nossa escrita e com nossa fala, para trazer a público as vozes dos nossos povos que por muito tempo procurou-se invisibilizar e silenciar. Agora vemos essas vozes surgirem com mais força em trabalhos de investigação e pesquisa de uma nova geração de historiadores, na qual me incluo, também, enquanto historiador, professor e Kaingang. A dissertação, agora adaptada como livro, demonstra que a história indígena esteve e está presente, evidenciando que o indígena não era um mero coadjuvante, mas sim protagonista da História.

    O presente livro traz revelações importantes de documentos que comprovam que o estado brasileiro agiu de modo cruel e violou, de todas as formas possíveis, os Direitos Humanos dos povos indígenas, como antes revelado pelo Relatório Figueiredo. E como descendentes diretos, como parte dessa história, avaliamos que essas violações permanecem vivas, ainda, dentro de muitas terras indígenas que conhecemos. Nesse sentido, este livro torna-se referência ao demonstrar que existe (e passa a fazer parte de) uma farta documentação que evidencia a existência de graves violações que proporcionaram perdas significativas na vida dos Kaingang, fato que exige que reparações sejam feitas não só pelas perdas em si, mas sim como reconhecimento dos direitos dos Kaingang que foram violados enquanto seres humanos.

    Nesse sentido, parabenizo à Amanda pela obra e peço que continuemos firmes nesse processo de preencher as lacunas deixadas pela Historiografia Brasileira. Não posso ainda precisar, mas penso que não foi em vão. Ainda bem que encontramos os rastros e trazemos essa história para dentro da Nova História Indígena e gostaria de dizer que Amanda, agora, faz parte dela...

    Professor mestre Danilo Braga

    Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História

    da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    AI-5 Ato Institucional Nº 5

    AL-RS Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul

    Anaí Associação Nacional de Apoio ao Índio

    Apib Articulação dos Povos Indígenas do Brasil

    ASI-Funai Assessoria de Segurança e Informação da Fundação Nacional do Índio

    CI Comissão de Inquérito Administrativo

    CIDH Comissão Interamericana de Direitos Humanos

    Cimi Conselho Indigenista Missionário

    CNV Comissão Nacional da Verdade

    CPI Comissão Parlamentar de Inquérito

    CTCC Centro de Treinamento Clara Camarão

    CVJ Comisión de Verdad y Justicia

    DNOCS Departamento Nacional de Obras Contra a Seca

    DOI-Codi Destacamentos de Operações e Informações e Centros de Operações de Defesa Interna

    Dops Departamento de Ordem Política e Social

    DSI Divisão de Segurança e Informação

    DSN Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento

    ESG Escola Superior de Guerra

    ex-ESMA antiga Escuela de Suboficiales de Mecánica de la Armada

    Funai Fundação Nacional do Índio

    Grin Guarda Rural Indígena

    Ibad Instituto Brasileiro de Ação Democrática

    Ibama Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

    Igra Instituto Gaúcho de Reforma Agrária

    Incra Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

    Ipes Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

    IR Inspetoria Regional

    ISA Instituto Socio-Ambiental

    Master Movimento dos Agricultores Sem Terra

    MCR Movimiento Campesino Revolucionario

    Minter Ministério do Interior

    MIR Movimiento de Izquierda Revolucionaria

    MPF Ministério Público Federal

    OEA Organização dos Estados Americanos

    OIT Organização Internacional do Trabalho

    PDS Partido Democrático Social

    PIN Programa de Integração Nacional

    PI Posto Indígena

    PM-MG Polícia Militar de Minas Gerais

    RF Relatório Figueiredo

    RS Rio Grande do Sul

    Sesai Secretaria Especial de Saúde Indígena

    SNI Serviço Nacional de Informações

    SPI Serviço Nacional de Proteção ao Índio

    TDE Terrorismo de Estado

    UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    UnB Universidade Federal de Brasília

    Unisinos Universidade do Vale do Rio dos Sinos

    UNI União das Nações Indígenas

    Sumário

    INTRODUÇÃO 19

    1

    OS POVOS INDÍGENAS E AS DITADURAS DE SEGURANÇA NACIONAL DO CONE SUL 39

    1.1 Ditaduras e Indígenas no Cone Sul — Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai 41

    1.2 Ditadura e indígenas no Brasil 58

    1.3 Considerações sobre as relações entre as ditaduras e os povos indígenas do

    Cone Sul 81

    2

    A DITADURA E OS KAINGANG NO RIO GRANDE DO SUL: A PERSPECTIVA DO ESTADO 89

    2.1 Os Kaingang nas investigações do Estado (CPIs e CIs) 92

    2.2 Os Kaingang nos documentos da repressão (ASI-Funai e SNI/RS) 109

    2.3 Colonialidade do poder e Terrorismo de Estado — a atuação do Estado em

    relação aos Kaingang 124

    3

    OS KAINGANG E A DITADURA NO RIO GRANDE DO SUL:

    UMA PERSPECTIVA INDÍGENA 133

    3.1 Donos de sua história, ontem e hoje: as vivências Kaingang durante a ditadura

    no RS 136

    3.2 A atuação da imprensa 154

    3.3 Etnocídio, Genocídio e o corpo-território como resistência 167

    CONSIDERAÇÕES FINAIS 173

    REFERÊNCIAS 179

    LISTA DE DOCUMENTOS 190

    ASSEMBLEIA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL 190

    CENTRO DE REFERÊNCIA VIRTUAL INDÍGENA (ARMAZÉM DA MEMÓRIA) 190

    ARQUIVO NACIONAL 191

    ACERVO INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL 191

    LEIS, RELATÓRIOS E INFORMES 194

    SITES 195

    DEPOIMENTOS 196

    NOTÍCIAS 196

    VÍDEOS 201

    INTRODUÇÃO

    Nas últimas décadas, os estudos sobre os povos indígenas e os regimes de Terrorismo de Estado (TDE) no Cone Sul têm proliferado. No Brasil, com a implementação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2012, após a condenação do país pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), vinculada à Organização de Estados Americanos (OEA), no processo sobre as violações de Direitos Humanos em relação aos guerrilheiros do Araguaia¹, o Movimento Indígena passou a pressionar a CNV com o intuito de criar um grupo de trabalho que investigasse especificamente a violência contra os povos indígenas ao longo da ditadura. Surgiu, assim, o Grupo de Trabalho sobre Graves Violações de Direitos Humanos no Campo ou contra Indígenas², que reencontrou documentação sensível e trouxe a público informações que geraram forte repercussão quando divulgadas e, também, com a sua integração ao Relatório Final da CNV, em 2014. Enquanto pouco se avançou nas investigações sobre os cidadãos mortos e desaparecidos, o trabalho da CNV trouxe novidades, gerando debate e incentivando o interesse público acerca do que foi o cotidiano dos diferentes povos indígenas do país durante a ditadura. A divulgação de uma estimativa de pelo menos 8 mil indígenas mortos em decorrências de ações do governo ditatorial chocou a opinião pública nacional e internacional, e despertou a atenção para o desconhecimento que os não indígenas tinham e continuam tendo, em geral, em relação à história da realidade dos povos indígenas naquele período e, consequentemente, no próprio presente. Sendo assim, meu interesse ao realizar este estudo é compreender qual era e como foi a atuação da ditadura em relação às comunidades Kaingang do estado do Rio Grande do Sul (RS).

    Diante disso, antes de adentrar aos capítulos deste livro, acredito ser importante contextualizar o período histórico que aqui será abordado e discutir alguns conceitos que nortearão a interpretação que realizo dos diferentes tipos de documentação aos quais tive acesso.

    Frequentemente, a cronologia da ditadura brasileira é estabelecida como sendo seu início o Golpe de Estado de 1964 e concluída em 1985 com a eleição indireta de Tancredo Neves para a Presidência da República (contudo, o candidato vitorioso faleceu antes de sua posse e quem assumiu, então, foi seu vice, José Sarney). Entretanto, ao pensar os marcos desse processo em relação aos Kaingang no RS, acredito ser importante partir de um recorte temporal um pouco estendido para a realização deste livro. Durante o governo de Leonel Brizola no estado, gerou-se um grave problema para os indígenas: entre os anos de 1962 e 1963, agricultores sem-terra ligados ao Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master) e apoiados pelo governador, ocuparam parte da terra indígena de Nonoai, no norte do RS, dentre outras áreas indígenas.

    Nos anos seguintes, durante o governo de Ildo Meneghetti, aumentou o número de colonos que ia adentrando essa e outras áreas indígenas do estado. Esse processo constitui-se como trauma na memória indígena; de fato, foi um evento marcante, e é dele que parti para compreender o encadeamento de violações de Direitos Humanos que sofreram os Kaingang no RS ao longo desse período. Apesar disso, faço uma ressalva: a lógica e a sistemática administrativa do governo Brizola foram significativamente diferentes daquelas impostas pela ditadura. Da mesma forma, cabe registrar que a disputa de terras entre não indígenas e indígenas no RS é anterior ao recorte temporal deste trabalho, vindo desde o Período Colonial, e adquirindo suas características mais conhecidas nos anos 1940, como resultado do processo de esgotamento da fronteira agrícola do estado. O ano de 1985 ainda era um ano de intensos conflitos dentro de terras indígenas, no qual a tutela do Estado ainda era vigente, sendo difícil tomá-lo como referência para o fim da ditadura para esses povos; por isso, tomei a promulgação da Constituição de 1988, que teve dois artigos referentes aos direitos indígenas, como marco final desse processo. Entretanto, deve-se ter em mente que muitas foram as continuidades do lapso temporal da ditadura para o nosso presente, afinal de contas, ideias e práticas não se transformam da noite para o dia.

    Sendo assim, compreendo que, no contexto de Guerra Fria, após o início da Revolução Cubana, foi implementado no Brasil um Estado de Segurança Nacional, em substituição a um projeto nacional-desenvolvimentista de viés reformista. A Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento (DSN)³ foi a base teórica implementada pela coalizão civil-militar que tomou o poder, como apontou Maria Helena Moreira Alves em Estado e Oposição no Brasil (1984). Dentro da lógica da DSN criada nos Estados Unidos e reinterpretada pelas ditaduras do Cone Sul, a presença de um inimigo interno a ser combatido

    fazia-se necessária. Esse inimigo — diferente do inimigo externo, mais comum à ideia de guerra convencional — não tinha um rosto definido e poderia ser qualquer pessoa que ameaçasse a Segurança Nacional com suas ideias e comportamentos. Durante muito tempo, esse inimigo interno era associado a organizações de luta armada ou políticas que, de uma forma ou outra, eram diretamente relacionados com uma entidade abstrata nomeada como Comunismo Internacional, pelos defensores do regime inaugurado em 1964.

    A ampliação dos objetos de pesquisa sobre a ditadura permitiu identificar outros setores da sociedade que também foram reconhecidos como inimigos internos ou potenciais inimigos internos. Esse é o caso das comunidades indígenas. De fato, dentro de tal perspectiva, o medo e a paranoia em relação à infiltração de ideias comunistas ou de guerrilhas nas comunidades indígenas de fronteira, fez com que elas fossem percebidas como uma questão de Segurança Nacional. Contudo, havia a permissão e o incentivo à presença de missionários estrangeiros, principalmente estadunidenses, dentro de tais comunidades, já que pareciam não incomodar tanto a ditadura, que estava alinhada ao bloco capitalista, ocidental e cristão.

    Primordial, em especial para o caso brasileiro, também é a compreensão da dimensão que o desenvolvimento econômico tem para a DSN, principalmente em relação à questão indígena. A ditadura foi instaurada com o objetivo de manter e aprofundar um modelo de desenvolvimento capitalista dependente e explorador (ALVES, 1984, p. 315). Sendo assim, ao longo do regime, diversas foram as medidas para garantir e fomentar esse modelo, incluindo políticas de construções de enormes proporções (casos da Hidroelétrica de Itaipu e da estrada Transamazônica, por exemplo) e de ocupação do interior do país, espaço considerado como vazio territorial. Teóricos da Escola Superior de Guerra (ESG) que se dedicavam a estudos de estratégia e geopolítica e que tiveram papel de destaque no novo governo, como Golbery do Couto e Silva, defendiam a ideia de que as regiões e fronteiras centro-oeste e amazônica eram desertos verdes, carentes de presença humana e com um potencial de exploração imenso e subaproveitado. Para ele, a manobra geopolítica para integração do território nacional (COUTO; SILVA, 1981, p. 46-47) exigia:

    1.º- articular firmemente a base ecumênica de nossa projeção continental, ligando o Nordeste e o Sul ao núcleo central do país; ao mesmo passo que garantir a inviolabilidade da vasta extensão despovoada do interior pelo tamponamento eficaz das possíveis vias de penetração;

    2.º- impulsionar o avanço para noroeste da onda colonizadora, a partir da plataforma central, de modo a integrar a península centro-oeste no todo ecumênico brasileiro [...];

    3.º- inundar de civilização a Hiléia amazônica, a coberto

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