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Compensação ambiental e unidades de conservação de proteção integral: O dilema enfrentado pelos povos Indígenas
Compensação ambiental e unidades de conservação de proteção integral: O dilema enfrentado pelos povos Indígenas
Compensação ambiental e unidades de conservação de proteção integral: O dilema enfrentado pelos povos Indígenas
E-book314 páginas3 horas

Compensação ambiental e unidades de conservação de proteção integral: O dilema enfrentado pelos povos Indígenas

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Sobre este e-book

Essa obra busca proporcionar uma leitura interdisciplinar, tendo como foco questões socioambientais, em especial, o dilema enfrentado pelos povos indígenas com a criação de unidades de conservação de proteção integral.
Atualmente, nos casos de licenciamento ambiental de empreendimentos que possam causar significativo impacto ao meio ambiente, o empreendedor é obrigado a realizar uma compensação ambiental. Essa compensação é realizada por meio da implantação e da manutenção de alguma unidade de conservação de proteção integral, a qual, por sua vez, busca a preservação dos ecossistemas livres e proíbe a presença de seres humanos.
O fato é que em muitas situações, a criação dessas unidades de conservação vem acontecendo em áreas ocupadas por povos tradicionais, os quais acabam tendo que ser realocados ou, até mesmo, expulsos.
O que seria uma compensação ambiental? Deverão os povos indígenas desocupar o território que habitam em nome da preservação ambiental? A natureza intocada é sinônimo de preservação ambiental? Como a legislação e a jurisprudência vem resolvendo essas espécies de conflito?
Essas são algumas das questões abordadas nessa leitura repleta de história e saber.
IdiomaPortuguês
EditoraViseu
Data de lançamento20 de mar. de 2023
ISBN9786525447537
Compensação ambiental e unidades de conservação de proteção integral: O dilema enfrentado pelos povos Indígenas

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    Pré-visualização do livro

    Compensação ambiental e unidades de conservação de proteção integral - Juliana Perdoncini

    Agradecimentos

    Aos meus pais (in memoriam), Aldair e Pedro, minha eterna gratidão. Perdi-os muito cedo, mas nunca deixei de tê-los em meus pensamentos. Sempre imagino que eles seriam os primeiros a aplaudir este momento. Têm coisas que não estão mais ao nosso alcance, mas, por sorte, estão em nossas lembranças. Agradeço à minha mãe, pelo exemplo de força e perseverança, e a meu pai, pelo belo exemplo de humildade e honestidade.

    Ao meu querido esposo, Flávio, que sempre incentivou minha trajetória e, com muita paciência, soube esperar por mim, desempenhando, muitas vezes, o papel de pai e de mãe, enquanto me dedicava a leituras, escritas e pesquisas.

    Aos meus filhos, Pedro e Bianca, por tornarem os meus dias mais belos, mostrando que ainda tenho muitos sonhos para com eles sonhar.

    Ao orientador de minha dissertação de mestrado, Luciano Félix Florit, que fez despertar em mim um interesse que foi muito além da interpretação das leis. Juntos, discutimos e analisamos o atual sistema de compensação ambiental sob um viés humanitário, que me permitiu entender a dor e o sofrimento dos povos indígenas que precisam continuar lutando pelo direito originário às terras que desde sempre ocuparam, possibilitando perpetuar sua cultura, crenças e tradições.

    Por que os povos indígenas?

    Em que pese a importância de todos os povos tradicionais – a exemplo dos Quilombolas, Seringueiros, Castanheiros, Quebradeiras de coco-de-babaçu, Faxinalenses, Pescadores artesanais, Ribeirinhos, Caiçaras, Sertanejos, dentre tantos outros existentes no Brasil –, optamos pelos povos Indígenas, considerando sua origem estar ligada à própria história da América e do Brasil, bem como pela importância de aprofundar a pesquisa em legislações, conceitos e histórias da trajetória dessa gente na construção de seus direitos. Direitos esses que, mesmo positivados, não vêm sendo suficientes para garantir, de fato, a proteção desses povos.

    Um convite à leitura

    Este livro, fruto de minha dissertação de mestrado em Desenvolvimento Regional, busca por meio de um estudo interdisciplinar abordar o atual sistema de compensação ambiental brasileiro, possibilitando ao leitor uma apresentação teórica e prática desse instituto, em especial, no que tange à criação de unidades de conservação de proteção integral sobre territórios ocupados por indígenas e os conflitos socioambientais resultantes desse cenário.

    Como reflexo do Estado Democrático de Direito, em 1988, é promulgada a nova Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/1988) e positivado, dentre tantas garantias, o dever de zelo para com os povos indígenas, reconhecendo no art. 231 o direito à organização social desses povos, bem como os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, incumbindo, ainda, à União o dever de demarcação das terras indígenas, sua proteção e garantia de respeito a todos os seus bens. Essa mesma Constituição dispôs em seu art. 225 que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, cabendo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

    Assim, com a proposta de regulamentar o art. 225, é editada a Lei n.º 9.985 em 18 de julho de 2000, a qual instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (conhecida também como Lei do SNUC), criando o procedimento de compensação ambiental. De acordo com o art. 36, da Lei do SNUC, sempre que o órgão ambiental competente para o licenciamento ambiental conclua que um empreendimento seja causador de significativo impacto sobre o meio ambiente, o empreendedor será obrigado a apoiar a implantação e manutenção de unidade de conservação do Grupo de Proteção Integral.

    Ainda, consoante disposição do art. 2.º, inc. VI, da Lei do SNUC, entende-se por proteção integral a manutenção dos ecossistemas livres de alterações causadas por interferência humana, admitido apenas o uso indireto de seus atributos naturais, ou seja, as unidades de conservação de proteção integral não comportam a presença humana.

    A questão é que muitas unidades de conservação de proteção integral estão sendo criadas em territórios ocupados por povos indígenas em nome da instalação de grandes empreendimentos causadores de significativo impacto ambiental. Muitos acordos de compensação ambiental estão trazendo soluções desastrosas para esses povos como a sua remoção das terras sem qualquer consulta sobre sua concordância ou mesmo um amparo que possa ser chamado de compensável.

    Em nome da Lei do SNUC, muitas unidades de conservação foram criadas à revelia de populações que desde sempre ocuparam as áreas que passavam a ser objeto de proteção especial. As restrições a que esses povos são submetidos acabam inviabilizando a possibilidade de sua própria sobrevivência. As soluções trazidas pela Lei do SNUC não estão sendo suficientes para dirimir situações conflituosas decorrentes da superposição entre unidades de conservação e terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, seringueiros, ribeirinhos, caiçaras, quilombolas e tantos mais que sempre contribuíram com a preservação do meio ambiente.

    Ainda que passados mais de 30 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988, os povos indígenas continuam dependendo de lutas e reivindicações para alcançar um direito há tempos delineado constitucionalmente. A possibilidade de compensar danos futuros com a criação e manutenção de unidades de conservação de proteção integral traz consigo muitas preocupações, não apenas para com os povos retirados de suas terras com o fim de autorizar a construção de mais uma mineradora ou mais uma barragem, mas para com toda a humanidade, que perderá mais uma parcela de recursos naturais, diversidade cultural, dentre tantas outras perdas a isso associadas. A busca pelo crescimento econômico a qualquer custo vem, de fato, resultando em um grande custo social e ambiental para todos.

    O conhecimento de que algo está errado suscita a necessidade de estudo e reflexão, especialmente quando soluções atribuídas por lei estejam em confronto com os interesses dos povos protegidos pela própria Constituição Federal. Foi esse entendimento que incentivou a pesquisa de mestrado e que culminou com esta obra.

    Os processos legais e sociais que envolvem as problemáticas em investigação, são reflexo de concepções naturalizadas historicamente pelo Brasil-Colônia e o Estado nacional em relação aos povos indígenas. Em que pese a importância de todos os povos tradicionais¹ existentes no Brasil e sua constante luta pelo reconhecimento de seus direitos, voltamos nosso olhar neste trabalho aos povos indígenas, haja vista sua origem estar ligada à própria história da América. Também pela importância de aprofundar a pesquisa em legislações, conceitos e histórias da trajetória dessa gente na construção de seus direitos e, ainda, no intuito de proporcionar subsídios para futuros estudos, investigações e reflexões.

    Os problemas socioambientais são, sem dúvida, expressões da desigualdade social que marcaram a história do nosso país. Na legislação brasileira, é possível verificar importantes avanços quanto aos direitos indígenas, contudo, esses avanços ainda são incapazes de possibilitar um equilíbrio entre o crescimento econômico e as problemáticas socioambientais. As leis e decretos que regulam a compensação ambiental e a criação das unidades de conservação de proteção integral parecem ter ignorado as questões socioambientais consequentes da instalação de grandes empreendimentos em meio à natureza. A participação dos indígenas nos processos de normatização é sobrestada e tardia, quando deveria ser a base das tomadas de decisão em situações em que seus direitos sejam, ou possam ser, lesados em decorrência do desenvolvimento econômico.

    O enfrentamento do crescimento econômico a qualquer custo é um fardo pesado para os povos oprimidos. A história dos indígenas é marcada por exploração, violência e desrespeito, o que os torna ainda mais vulneráveis em um cenário de relações de poder, como é o caso do Estado brasileiro. A criação de políticas públicas, apenas de acordo com os desenhos e meios previstos por seus idealizadores, vem implicando desfechos negativos para os povos indígenas. O crescente desrespeito à vontade desses povos de permanecer no local onde desde sempre viveram é preocupante. A globalização parece estar apagando as identidades desses indivíduos, e muitos deles já não sabem exatamente quem são e qual o lugar que ocupam no mundo.

    Diante dessas considerações iniciais e com o intuito de aprofundarmos o estudo, este livro foi organizado em quatro partes ou capítulos centrais além deste, introdutório, e das conclusões. No primeiro capítulo – Os indígenas e o descobrimento do novo mundo –, buscamos investigar a história dos povos indígenas na época da chegada dos Portugueses ao território, hoje conhecido como Brasil, e as problemáticas enfrentadas por aqueles povos frente ao processo de colonização. A história que se desnuda aqui não é bem aquela contada nos bancos escolares, mas, sim, outra, com um olhar de dentro, de um território violentamente colonizado, repleto de saberes ancestrais, omitidos pela maioria das literaturas. Seguindo uma linha temporal, chegamos às principais legislações editadas desde o Império e que tiveram reflexos sobre os povos indígenas até os dias atuais. Questões sobre territorialidades e a regularização fundiária da posse indígena também merecem um espaço nesse momento, assim como as lutas e conquistas que fizeram os povos indígenas ganhar reconhecimento constitucional no ano de 1988.

    No segundo capítulo – O licenciamento ambiental como instrumento de controle estatal –, o procedimento de licenciamento ambiental tem enfoque. Aqui apontamos seu conceito, espécies e função de instrumento de controle estatal. Ainda que a pretensão deste estudo seja o instituto da compensação ambiental e os efeitos decorrentes de sua aplicação, quando confrontado com terras habitadas por indígenas, não há como deixar de abordar o procedimento de licenciamento ambiental, considerando que a compensação é autorizada dentro desse procedimento de licenciamento.

    No terceiro capítulo – Compensação ambiental no ordenamento jurídico brasileiro –, a compensação ambiental é estudada especialmente em relação à sua aplicação em terras ocupadas por povos indígenas e, ainda, como funciona a criação de unidades de conservação de proteção integral, consoante determinação do art. 36 da Lei n.º 9.985/2000. Também buscamos conceituar a natureza jurídica da compensação ambiental, bem como impacto e dano ambiental para maior compreensão da temática. No que tange às unidades de conservação de proteção integral, apresentamos, nesse momento, sua concepção clássica, isto é, de que tais áreas devem ser constituídas, essencialmente, por grandes regiões que devem permanecer isoladas da presença humana.

    Finalmente, no quarto capítulo – Compensando o incompensável –, fazemos uma profunda reflexão acerca dos impactos trazidos pela Lei n.º 9.985/2000 sobre os povos indígenas, chegando ao objetivo traçado para esta pesquisa. Também fazemos uma crítica quanto aos principais efeitos paradoxais da lei, elencando temáticas como etnocídio e a própria inconstitucionalidade presente na Lei do SNUC. Para tanto, consideramos a contribuição dos povos indígenas para a preservação do meio ambiente e as importantes teorias sobre etnoconservação, buscando desmistificar o mito de que natureza preservada é natureza intocada. Os conflitos de valoração que permeiam essa temática, assim como a luta dos povos por justiça socioambiental, merecem espaço, levando em conta a necessidade de ir além da mera interpretação das leis, investigando possibilidades de construção de uma ética socioambiental capaz de conduzir a uma nova racionalidade ambiental.

    O Brasil clama por uma nova ética socioambiental, fato que vem sendo ignorado por políticas ambientais conservacionistas, mas, principalmente, ignorado por quem tem o dever de não ignorar. A construção de modelos de desenvolvimento voltados para povos indígenas pressupõe o reconhecimento da sua autonomia e autodeterminação. Todavia, as políticas indigenistas de proteção ambiental não estão sendo capazes de aliviar os problemas e as dores das populações tradicionais que sofrem com os interesses econômicos. A incógnita é sempre a mesma: com tantas normas de proteção aos povos indígenas, por que eles ainda dependem de movimentos sociais para ter seus direitos assegurados? Essa e outras interessantes reflexões sobre o desrespeito aos povos indígenas na atualidade, mesmo após o reconhecimento de seus direitos na CRFB/1988, conduzirão a leitura aqui proposta.


    1 De acordo com o art. 3.º, inc. I, do Decreto n.º 6.040/2007, são povos e comunidades tradicionais os […] grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição […] (BRASIL, 2007).

    1. Os indígenas e o descobrimento do novo mundo

    Antes de adentrarmos no cerne do tema proposto neste livro, é necessária uma abordagem histórica sobre a construção do Brasil. Conhecer a formação do Estado foi primordial para uma análise mais completa no tocante às problemáticas relacionadas aos povos indígenas, de ora em diante tratados como povos indígenas ou, simplesmente, indígenas, primeiros povos a habitar o atual território nacional.

    É um tanto curioso imaginar a chegada das caravelas portuguesas na costa brasileira, no ano de 1500, repletas de uma parcela de europeus que se deparavam com uma nova civilização caracterizada por costumes extremamente diversos daqueles viajantes. A carta do escrivão Pero Vaz de Caminha, enviada ao então rei de Portugal, descreve de forma envolvente o encontro dessas civilizações e o assombro dos europeus ao verem aqueles homens pardos e nus. Esse povo muito bem recebeu os portugueses, oferecendo-lhes confiança e ajuda para conhecerem outros territórios da Terra de Vera Cruz (BRAGA, 2015)².

    Sem saber exatamente a que civilização pertenciam aquelas pessoas, os portugueses e muitos outros europeus os chamaram de índios. Esses habitantes, bem como suas terras, encantaram os descobridores. Ao menos, no tempo da colonização, por muitos lugares da Europa, os indígenas foram conhecidos por sua simplicidade, simpatia e inocência. Isso tudo graças à influência do italiano Américo Vespucci, que divulgou por meio de muitos relatos o conteúdo da carta escrita por Caminha. Dentre essas narrativas, uma carta conhecida como Mundus Novus fora traduzida em diversas línguas, disseminando a imagem que o europeu fazia dos povos indígenas no século XVI (THOMAS, 1982).

    Tanto esses documentos como outros registros históricos realizados pelos europeus retratam a história de um Brasil que teria sido descoberto apenas no século XVI. Entretanto, esse novo território já existia e era habitado por milhões de pessoas desde muito tempo. O historiador Darcy Ribeiro menciona que é possível estimar a presença de mais de 5 milhões de indígenas no Brasil à época de seu descobrimento pelos europeus, explicando que:

    É de todo provável que alcançasse, ou pouco excedesse, a cinco milhões o total da população indígena brasileira quando da invasão. Seria, em todo o caso, muito maior do que supõem as avaliações correntes, conforme demonstram estudos de demografia histórica (Borah 1962, 1964; Dobbyns e Thompson 1966). Baseados em análises da documentação disponível, realizadas à luz de novos critérios, esses estudos multiplicaram os antigos cálculos da população indígena original das Américas. (RIBEIRO, 1995, p. 141).

    A América não era uma novidade para os europeus no século XVI, e é de suma relevância lembrar desse assunto antes de adentrarmos no ano de 1500 e explorar um pouco mais sobre a história que nos contaram.

    Em 12 de outubro de 1492, o navegador genovês Cristóvão Colombo chegava à América. A viagem foi patrocinada pelos reis católicos da Espanha Fernando de Aragão e Isabel de Castela. Colombo, na verdade, esperava atingir as Índias em uma rota alternativa pelo Oriente. A rota foi apoiada no mapa de outro italiano, o florentino Toscanelli, e apresentada ao rei de Portugal Dom João II, que negou o apoio. O conquistador não vinha com intuito de ocupação e colonização, mas para obter riquezas. O ouro, a prata e tantas outras pedras preciosas acendiam o espírito comercial dos navegadores espanhóis. Dentre seus objetivos, estava dominar os povos originários da América reduzindo-os à escravidão. Em contato com astecas, maias e incas, realizaram saques vultosos, que inundaram de ouro e prata a Europa ocidental.

    Vale mencionar que a Idade Moderna teve início com o descobrimento da América no ano de 1492. Período marcado pelo declínio do feudalismo, pelo mercantilismo como política de Estado, pela expansão marítima, pelo renascimento cultural, dentre tantos outros fatores que delinearam a história dessa época.

    Importante trabalho a ser considerado nessa narrativa é a obra de Tzvetan Todorov intitulada A conquista da América: a questão do outro. O livro serviu como ponto de partida para se definir e falar em alteridade, uma vez que o autor usa a posição de Cristóvão Colombo perante os povos indígenas, já que é a partir do contato com o outro que se pode experimentar a identificação ou a diferença. A alteridade aos povos indígenas, tratada por Todorov (2010), deu início a uma reflexão sobre essa capacidade de se colocar no lugar do outro e buscar compreender e respeitar seu modo de viver.

    Todorov (2010, p. 69) menciona que Colombo descobriu a América, mas não os americanos., ao dizer que o navegador via os índios ora como seus iguais ora como diferentes. Ainda, sobre a falta de compreensão de Colombo para com os costumes indígenas, revela que:

    Será que foi mera ambição o que levou Colombo a viajar? Basta ler todos os seus escritos para ficar convencido de que não é nada disso. Colombo simplesmente sabe a capacidade atrativa que podem ter as riquezas, e especialmente o ouro. É com a promessa de ouro que ele acalma os outros em momentos difíceis [...] (TODOROV, 2010, p. 6).

    Dois traços dos índios parecem, à primeira vista, menos previsíveis do que os outros: são a generosidade e a covardia. Ao ler as descrições de Colombo, percebemos que estas afirmações informam mais sobre o próprio do que sobre os índios. Na falta das palavras, índios e espanhóis trocam, desde o primeiro encontro, pequenos objetos; e Colombo não se cansa de elogiar a generosidade dos índios, que dão tudo por nada. Uma generosidade que, às vezes, parece-lhe beirar a burrice: por que apreciam igualmente um pedaço de vidro e uma moeda? […] Colombo não compreende que os valores são convenções -a mesma incompreensão que mostrou em relação às línguas, como vimos -e que o ouro não é mais precioso do que o vidro em si, mas somente no sistema europeu de troca. (TODOROV, 2010, p. 22-23).

    Outro autor que se destacou por disseminar muitas informações sobre o descobrimento da América foi o frade e teólogo dominicano Bartolomeu de Las Casas, que acompanhou de perto os primeiros anos da colonização. Autor da obra História das Índias, que só foi publicada no século XIX, ganhou destaque em muitos de seus escritos por compreender e defender os costumes indígenas. Em uma perspectiva de ética fundamental, estudou o problema da consciência, dos direitos daquele que segue uma consciência errada, mas de boa-fé.

    Antes de escrever História das Índias, Las Casas já havia escrito outra obra intitulada Brevíssima relação da destruição das Índias: o paraíso destruído. Nela, o autor organizou o primeiro pensamento universal fundamentado na corrente jusnaturalista, qual seja, a liberdade originária, delineada pelo respeito à dignidade da população autóctone. Foi inovador ao rechaçar a aplicação do castigo pela idolatria quando defendeu que os cristãos não tinham jurisdição sobre os índios para castigá-los. Os índios não haviam nascido em terras cristãs, não eram filhos de cristãos, não tinham jurado fidelidade para se tornarem súditos da Coroa. Por isso tudo, a guerra contra essa gente representaria um mal muito maior do que uma minoritária e eventual prática de canibalismo realizada por eles. O confronto com os índios, descreve o autor, faria muito mais vítimas de um povo, que desconhecia a irregularidade da conduta, do que a prática de canibalismo, que era desejada pelos deuses (LAS CASAS, 1984).

    Las Casas (1559) narra em detalhes a criação do mundo. O autor faz uma descrição biográfica de Cristóvão Colombo e depois detalha os eventos que ocorreram nos primeiros anos do descobrimento da América, bem como a expedição de Hernán Cortés a Tenochtitlán, ainda que não entre em detalhes da conquista do México. Ele defendia os povos indígenas e sua condição de homens livres em uma postura não só cristã, mas de consciência social de orientação incontestavelmente progressista. Já, seu antagonista na controvérsia, Sepúlveda³ representava o papel de justificador histórico da escravidão indígena, embasado no postulado de Aristóteles, o […] grande teórico da escravidão, senão do próprio racismo. (LOURENÇO, 2005, p. 110).

    Las Casas (1559) registrou sua visão política e jurídica em relação ao povo do Novo Mundo, detalhando que esse povo não ofendeu e não perturbou ninguém, bem como a própria religião cristã e não poderiam, de forma alguma, ter seus direitos arrancados. Para o autor, a lei natural também era produto do intelecto,

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