Necrochorume: e outros contos
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Necrochorume - João Ximenes Braga
Sumário
Suco gástrico (introdução)
Útero
Vinho
Carne
Urina
Asco
Esgoto
Caipirinha
Saliva
Café
Sangue
Bile
Uísque
Açúcar
Lágrima
Cuspe
Soro
Chá
Oxigênio
Seco
Necrochorume
Sêmen
Saibo
Gota d’água
Fígado
Bebida que pisca
Tentáculos
São teus olhos
Bolo
Coragem
Sobre o autor
Texto de orelha
Suco gástrico (introdução)
Você é facilmente engolido sem ser mastigado. É um organismo muito maior e mais forte que o seu – ou que qualquer outro de que se tenha notícia na nossa fatia de Equador e Greenwich. Vamos chamá-lo de Organismo, nome próprio, caixa alta, para tratá-lo com o devido respeito.
Você escorre pela goela com facilidade, deslizando por um tecido mole lubrificado por um líquido viscoso que torna a experiência até agradável no início. Uma vez que você é alojado no estômago, o processo é lento, muito lento. Dependendo do seu vigor, da sua capacidade de resistência, a digestão pode levar anos, décadas. Você pode até morrer de outras causas antes de ser totalmente ingerido pelo Organismo.
Essa digestão lenta é uma característica do processo evolutivo do Organismo, e é o que o torna tão resiliente. Consegue absorver todos os nutrientes das presas que absorve, sem desperdiçar quase nada em matéria fecal. E como o Organismo consegue manter a presa viva e operante por tantos e tantos anos? Como consegue absorver cada nutriente dela ao mesmo tempo que a nutre para melhor lhe servir?
Acontece que seu processo digestivo é muito peculiar. É um estômago com propriedades de útero.
Não é o suco gástrico do Organismo que destrói a presa. É o dela própria. Isso mesmo. Entre no Organismo e uma estranha reação química acontece. É o seu próprio estômago que vai lhe devorar, de dentro pra fora. É o seu próprio suco gástrico que vai corroê-lo, romper os tecidos internos, as paredes dos órgãos, mantendo-o em lenta agonia enquanto seus nutrientes são lentamente – len-ta-men-te – absorvidos. Não há um verme a quem dedicar memórias, embora haja vermes nestas memórias.
Então chegamos a primeiro de janeiro de 2019.
– E me coloco diante de toda a nação, neste dia, como o dia em que o povo começou a se libertar do socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto.
O Organismo entrou numa nova etapa de sua evolução. Agora, está se digerindo a si mesmo, de dentro para fora.
Útero
Natividade se acomodou e a médica passou o gel na sua barriga.
– Ai, que frio.
– Você não quer ver se os seus bebês estão bem?
– Quero, claro! Eu tô toda arrepiada, e não é de frio.
A médica passou o ultrassom na barriga de Natividade e reagiu com curiosidade ao ver a imagem que se formava na tela.
– Engraçado...
– Algum problema? – reagiu Natividade, tensa.
– Eles parecem estar em posição de briga.
– Briga?
– Tão virados de frente um pro outro, os punhos cerrados, parece que tão prontos pruma luta de boxe. Eles mexem muito?
– Bastante. Pra ser sincera, parece que vivem aos chutes... Mas isso é um problema?
– Sinal de que são fortes! Eles são muito saudáveis.
– Que alívio, doutora.
Natividade deu uma pausa, reflexiva.
– Será que isso significa que eles vão brigar muito ao longo da vida?
– Acho que seus filhos vão ser grandes homens.
– Em que sentido?
– Coisas futuras... – respondeu a médica, vaga.
– Coisas futuras... – repetiu Natividade, sonhadora.
Silêncio. Instante pesado. Até que Adelaide tirou a barriga de grávida e se voltou para o diretor.
– Fala alguma coisa, Rodrigo, pelo amor de Deus. Eu tava bem?
Rodrigo demorou a responder.
– Eu anotei algumas coisas. Depois do que alívio, doutora
, acho que a pausa precisa ser mais longa. Conta até sessenta.
Adelaide ficou ofendida.
– Se eu tiver que contar, vou perder a emoção do personagem.
– Pronto! – indignou-se Rodrigo.
– Eu não voltei a fazer teatro pra isso...
– Se você quer verdade na emoção do personagem, me faz acreditar que o gel tá frio!
– Se pelo menos eu tivesse uma barriga de borracha, e não uma almofada!
Rodrigo preferiu evitar o confronto. Adelaide era um azougue, mas seu nome traria bilheteria e patrocinadores. Ademais, era um papel pequeno, a mãe. Ele se voltou para os protagonistas, Alberto e Mariana.
– O que vocês tão achando da dramaturgia?
– Olha... Adelaide, você é um gênio. Márcia, você também tá ótima.
– Obrigada – respondeu Márcia, que faz a médica nesta cena e a empregada em tantas outras, mal disfarçando que percebeu a ofensa.
– Mas não gostei do coisas futuras
.
– Coisas futuras
vem do livro, ora – respondeu Rodrigo.
– Eu sei, reli esta semana pela vigésima vez. É ótimo, mas no livro é dito por uma adivinha, um oráculo. Na boca de uma médica não tem a menor graça.
Rodrigo suspirou.
– Como nós já discutimos aqui várias vezes, esse livro é inadaptável para o teatro, pro cinema, pra qualquer coisa. O que estou me propondo a fazer é um diálogo com a obra original, mas pra falar do Brasil contemporâneo.
– E por que não posso ir num terreiro falar com uma pombajira incorporada? – perguntou Adelaide. – Fica mais próximo do livro.
– Pra depois me acusarem de racista? Não, obrigado.
Rodrigo começou a andar de um lado para o outro do palco, e os atores, assim como seu assistente, sabiam que era melhor não importuná-lo quando fazia isso. Depois de uns cinco minutos assim, ele parou e se pronunciou.
– Eu vou pensar. Eu queria que a minha Natividade fosse uma mulher contemporânea, não aquela personagem do século XIX. Vocês acham que ela iria numa taróloga?
Todos concordaram, com entusiasmo.
– Vou reescrever essa cena, então. Alberto, vamos ler a cena dois do terceiro ato?
– Eu leio como Pedro ou como Paulo?
– Os dois.
– Rodrigo, pelo amor de Deus, não faz isso comigo. Eu preciso saber qual dos dois eu vou fazer pra encontrar o personagem.
– Qual você quer fazer? – perguntou Mariana. – Eu posso ler o outro gêmeo, até o Rodrigo encontrar o ator adequado.
– Um ator adequado pra fazer meu gêmeo... Difícil – disse Alberto, com olhar vago, fingindo não perceber que a frase era um autoelogio.
– Mas Rodrigo, você deixa o Alberto fazer o que ele preferir, não deixa? Qual você prefere, Alberto? Pedro ou Paulo?
– Pois é, não sei. Ainda não consegui terminar o livro, mas não tô entendendo muito bem. Quando o Rodrigo me disse que o protagonista tinha um irmão gêmeo achava que era um bom e um vilão. Os dois são iguais.
– Eu sei – disse Mariana. – Por isso a Flora não consegue decidir com qual ela quer namorar. E eu adoro esse conflito. Rodrigo, se você quer mesmo se descolar da época e fazer uma história contemporânea, por que não fazer um trisal?
– Um trisal? – Alberto reagiu espantado. – Mas eu vou ter que transar com meu gêmeo também?
– Xi... Isso vai dar treta – interferiu Adelaide.
– Vai dar mídia! – retrucou Alberto, entusiasmado.
– Que que cê acha, Rodrigo? – insistiu Mariana.
Rodrigo deu uma pausa dramática.
– Vou pensar sobre o trisal. Mas já tenho o outro ator.
– Maravilha! E quando eu vou conhecer? – animou-se Alberto.
– Agora – respondeu Rodrigo, acenando para seu assistente. – Wesley, por favor.
Wesley foi até a coxia. Os atores cochichavam entre si, alimentando a própria curiosidade. Até que Wesley voltou com um espelho de chão antigo amarrado a um par de skates. Mariana e Adelaide começaram a rir, o que deixou Alberto ainda mais irritado.
– Que porra é essa?
– Você vai fazer os dois personagens – respondeu Rodrigo.
– Meu sonho era fazer isso no cinema ou na televisão, mas no teatro não tem jeito. Os dois tão sempre juntos em todas as cenas.
– Exato. Você vai fazer as falas de ambos. O espelho você vai sempre levar com você, o outro ator vai ser o seu reflexo, só preciso estudar as marcações.
– Mas, Rodrigo! Quando um ator faz gêmeos na televisão tem um dublê passando as falas do outro! Como eu vou compor dois gêmeos diferentes no palco, na mesma cena?
– Eles não são diferentes, Alberto, eis a questão.
Adelaide se impacientou. Logo viu que Alberto ia começar a conceitualizar, e ela não tinha a menor paciência para seu blá-blá-blá. Inventou uma desculpa e foi para o camarim.
– A única diferença entre eles é a opinião política. Um é monarquista, o outro é republicano. De resto, são iguais.
– Mas como é que eu vou compor isso, meu Deus do céu?
– Isso nós vamos criar juntos, calma. Mas é importante entender isso. Eles não são gêmeos. São a mesma pessoa.
– Uma mesma pessoa que divide dois corpos iguais? Eu não sabia que era livro de terror.
– Também não tinha entendido assim – acrescentou Mariana. – Mas lembra que o livro mais famoso desse autor é narrado por um cadáver.
– Que doido!
– Mas se a motivação dessa entidade é seduzir a Flora, por que dois corpos iguais, e não diferentes?
– Não é nada disso, gente! – interrompeu Rodrigo, impaciente. – O livro não é sobre Pedro, Paulo e Flora. É sobre a sociedade brasileira, e é aí que tá a genialidade.
Em plena proclamação da República, ele tem dois personagens, um monarquista e um republicano que são completamente iguais. Entenderam agora?
O silêncio respondeu que não.
– A monarquia e a república são a mesma coisa!
Alberto e Mariana se entreolharam espantados, duvidando da sanidade de Rodrigo.
– O que o Machado demonstra nesse livro é que a sociedade brasileira não mudou nada com a proclamação da República. Duas faces da mesma moeda. As mesmas pessoas que mandavam no país antes continuaram mandando, e os que estavam fodidos continuaram fodidos.
– E a Flora nisso? – indagou Mariana.
– É uma representação da pátria, perdida entre as duas ideologias.
– Mas como eu vou construir uma personagem pensando que é uma representação da pátria?
– Isso nós vamos fazer juntos. Temos tempo pra isso. O que importa é vocês entenderem a relevância desse projeto. A magnitude de fazer esse diálogo com Esaú e Jaco neste momento histórico.
Alberto e Mariana se entreolharam, mais espantados. Rodrigo percebeu que seria necessário ser bem explicadinho.
– Vocês não leem jornal? Todos dizem que estamos vivendo um momento grave de polarização na política.
– Que nem na época da proclamação da República? – indagou Alberto.
– Isso – respondeu Rodrigo.
Wesley levantou a mão.
– Rodrigo, desculpa me meter, mas você não acha que precisa trabalhar melhor essa conceituação? Se você diz que as duas coisas são iguais, como é que pode polarizar?
Rodrigo não gostou da intervenção, sobretudo porque não conseguia retrucar a lógica de Wesley.
– Desculpa mesmo estar me metendo, mas acho melhor a gente discutir essas coisas aqui antes da peça estrear e você se embananar na frente dos jornalistas.
– Posso me meter também? – disse Márcia.
Rodrigo, Alberto e Mariana já haviam esquecido que ela estava ali.
– Esse livro já me irrita num grau porque o Machado, mesmo sendo preto, faz um romance sobre política no Brasil de 1889 e nem toca na questão dos negros, mas tudo bem, vá lá, eu entendo que a visão dele sobre a cosmogonia do Brasil é essa de que a mudança de regime não mudou em nada a luta de classes e isso incluía as pessoas escravizadas que haviam sido recém-libertadas e largadas sem eira nem beira. Acho que foi o jeito que ele encontrou de tocar no assunto. Nada mudou, mesmo. Mas acho que trazer essa correlação de forças para o Brasil de hoje é errado.
Rodrigo entrou em choque com a intervenção de Márcia. Que petulância!
– Bem... – disse