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Acordei
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E-book171 páginas2 horas

Acordei

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Sobre este e-book

Encontrei-me com o desconhecido e fiz da minha vida uma conversa, que a certa altura ficou agradável, mas de certo tornou-se um dilema em seu caminho e me trouxe indagações, me fez pensar e depois fiquei com impressões. Elas, as conversas, estão no livro que me fez acordar para muitas coisas, e ofereço essa possibilidade a quem deseja se encontrar com esse prazer.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento24 de fev. de 2022
ISBN9786589968245
Acordei

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    Acordei - Juliana Cabral Alves

    SONHEI

    Quando sonhar nada mais é que um desejo de seguir o seu próprio caminho

    E meus sonhos, pautados pela falta de coerência e de lucidez em suas contínuas narrativas, acenderam em mim o desejo de torná-los histórias com sentidos. Um desejo de sair da sombra do meu relato de vida.

    Na infância me preparava para sonhar, e, para isso, investia em artimanhas que me trouxessem os pesadelos desejados.

    A minha primeira invenção foi a de comer muitas bananas antes de dormir. De fato, tinha pesadelos, no entanto, eram por vezes essas repetidas ações que me afligiam e ainda me expunham aos comentários da minha mãe, que contava que comer bananas à noite matava. Passava noites desconfortáveis de barriga cheia e deixei de me alimentar da fruta antes de dormir.

    Nesse tempo, também tive uma experiência interessante tomando secretamente, e de golada, o gin contido em garrafinhas dadas por uma loja de cortesia ao meu pai, que as mantinha em uma espécie de bar da nossa sala de jantar. Bebia pelo menos uma garrafinha ao deitar para que meus sonhos viessem, mas acabaram-se as tais bebidas e a experiência só me dava sono mais cedo.

    Ainda quando criança, eu comecei a pensar em outras maneiras de chamar um sonho para vir a mim em minhas longas noites, e tinha muitas expectativas com relação a eles. Cheguei a imaginá-los como uma forma de me dar algum recado divino, de me contar segredos sobre mim e os outros, de me orientar sobre algum causo, ou de me oferecer descobertas que me garantissem algum sucesso ou prêmio.

    Sempre tinha ideias que eram reservadas e solitárias para que não fosse impedida por uma contrariedade de um parente próximo. Desse jeito, tomaria as rédeas das minhas decisões e continuaria a fazer o que achava que seria o melhor, ou, pelo menos, tentaria levar adiante uma ideia que pudesse não passar pelo crivo do papai.

    Seguindo os passos da curiosidade, fui aumentando o raio de ação para possíveis locais ainda não investigados.

    Passei por situações curiosas, como a descoberta de uma plantinha que havia na varanda da vizinha, que, vez ou outra, eu pegava clandestinamente, e que de tão azedinha me causava muito interesse. Mas, com medo de ser repreendida ou me fazer algum mal, parei de procurá-la. Nesses lugares eu sonhava que experimentando poderia encontrar sabores gostosos como no sonho que estava no sítio do meu tio Tonico, irmão da minha mãe, que ficava no interior da Bahia.

    Meus sonhos estavam intimamente ligados aos meus segredos e conversava com eles querendo me satisfazer em acontecimentos surreais.

    Estava recordando tudo isso enquanto descansava deitada em minha cama e ria das minhas maluquices, como uma pausa de alegria para aqueles momentos muito difíceis de vida.

    Continuava a me lembrar da minha infância, e dos meus momentos gastronômicos com vastos experimentos para dormir e sonhar, e, entre eles, a fabulosa ideia de tomar Melhoral infantil, como sobremesa junto com bananas.

    Havia uma caixa grande cheia do medicamento que meu pai comprara para manter a casa abastecida; segundo os meus entendimentos, naquele tempo de criança já tínhamos tantas dores de cabeça naquela família de oito pessoas que a caixa bem grande e com muitos comprimidos se justificaria. O remédio ficava no armário do banheiro, e eu o levei para debaixo do meu armário, onde, para mim, ficaria escondido. Naquele quarto, onde dormia junto com as minhas irmãs, eu mantinha a minha iguaria longe das vistas de todos e a tinha como a um tesouro. Depois do primeiro dia passei a furtar os comprimidos várias vezes ao dia e principalmente à noite, e a chupá-los como a uma deliciosa bala. Isso não durou muito porque eu mesma tive medo das consequências de tomar tanto remédio e de que fosse descoberta.

    O medo me assustava, e ele já estava metido na minha cabeça e me freava diante das ideias estapafúrdias que pudessem chegar; algumas eu já ia aniquilando de saída, claro, com o temor da morte.

    As experiências culinárias e de alguns produtos orgânicos inventados por mim foram o suficiente para ter uma ideia de que fazer coisas escondidas e arriscadas poderia gerar mais problemas com o medo do que qualquer outra coisa, mas certamente escapei de muitas punições pelos feitos e isso me dava mais tranquilidade. Era como se estivesse tentando burlar uma ordem, com uma parcela de perigo, e que pudesse enfrentar os meus erros sem ninguém me azucrinando. Sonhava acordada com as possibilidades de despertar em mim uma coragem que pudesse me ajudar a romper com tudo que me fazia medo.

    Descobri que xarope era um delicioso aperitivo, na época mais para refresco, e que também dava um soninho muito bom, até que o meu exagero e gulodice do dia me levou a um sono profundo e aparentemente sem propósito. Durante uma tarde aconteceu de tomar uma grande quantidade do xarope e adormeci enquanto conversava no sofá da sala em companhia da minha mãe, que falava sobre a tosse que estava naqueles dias. Foi a necessidade de expectorar o catarro em meu peito que me fez conhecer o elixir do sono que ficava na mesa da cozinha. Antes de cair no sono profundamente, ouvi a voz da minha mãe a me chamar continuamente e só acordei, para a aflição de todos, quatro horas mais tarde e na mesma posição em que começara a dormir.

    Na minha meninez não podia escolher o que comer e nem pedir para comprar alguma coisa, mas havia liberdade para abastecer a barriga com o que tivesse na geladeira e, portanto, me fartava de frutas, azeitonas, leite condensado, tomates com sal e muitos outros alimentos. À mesa, era mais complicado porque a comida tinha suas porções contadas, principalmente as guloseimas, não era permitido mais que uma quantidade pequena para cada um. Tínhamos direito a um bife, uma parte da galinha, sendo as coxas disputadas e os pés e pescoço para o meu pai, uma porção de batatas fritas, um pão, um copo de refresco, e por aí afora. Tudo isso era muito divertido porque nós, irmãos, transformávamos tudo em brincadeiras o tempo todo. Havia comida suficiente, mas eu era quem estava sempre sendo considerada a comilona. Então, ao chegar à mesa, os outros gritavam para que corressem que eu já me encontrava lá.

    Estava sempre faminta. Comia como uma draga, como se tudo pudesse acabar mais rápido do que pudesse pegar, mastigar e engolir, e quem sabe teria a sorte de uns ou outros não querer as coisas boas, daí podia ser mais para mim.

    Para a minha mãe, tanta comida me levava a uma barriga sempre cheia, e, por isso, gorda e com muitos pesadelos.

    Éramos seis irmãos, que, por ordem do mais velho para o mais novo, eram: Petrônio (Petrô); Augusto (Guto); Patrícia (Patricinha); Laura (Larica); Mara (Marica), e eu, a caçula, Miguelina (Megue, ou Migué).

    Todos os apelidos eram dados pelo meu irmão mais velho, que tinha oito anos a mais do que eu, o Petrô, a criança mais levada de que já havia ouvido falar. Ele argumentava que queria se vingar de tanto irmão que havia chegado sem a sua permissão.

    No meu caso, o apelido Migué era porque o Petrô achava que eu estava sempre querendo passar a perna nele para tomar o que ele mais gostava que era o guaraná que ficava na geladeira como sobra dos refrigerantes servidos nos almoços aos domingos. Eu sempre dizia que havia acabado e tomava escondido, e foi numa dessas que o Petrô me pegou. Na semana seguinte ele fez xixi na garrafa do refrigerante e eu tomei uma golada. Nessa noite eu fui dormir mais cedo para esquecer o que havia acontecido. Eu dormia muitas vezes para tentar apagar coisas da minha memória, e às vezes achava que funcionava, e, ao deitar, queria sempre sonhar para na manhã seguinte lembrar.

    Parecia que as boas lembranças estavam sendo resgatadas na hora certa e que talvez fosse ter uma boa noite de sono, afinal.

    A afirmativa que me levava a crer que teria a boa noite também me trouxe outras recordações, como uma maneira de não me permitir ficar bem, talvez uma culpa em se sentir bem, quem sabe.

    Mesmo não querendo lembrar-me da morte da Mara, que faleceu precocemente e bem longe de todos nós, no Rio Grande do Sul, onde morou desde os seus 18 anos até os seus 24. A comoção familiar foi diferente da sentida neste momento de tantas perdas, durante o atual surto que nos assola.

    A Mara era a mais falante de todos nós irmãos, contudo, ninguém parava muito para ouvi-la, já que tinha a capacidade de emendar os assuntos de uma forma muito corrida que dava nos nervos. Foi ela quem estimulou a narrativa e a capacidade de conversar que há em mim.

    Minha mãe ficou três meses sem falar, e, quando eu me levantava à noite, depois de um sonho ou pesadelo, ia procurá-la para vê-la, e eu a encontrava aos prantos e sentada na poltrona do meu pai que ficava na sala da nossa casa.

    A Marica, Mariquinha para os primos e Maricota para os colegas de escola, não tinha a menor vocação para ficar quieta ou escutar o que nossos pais mandavam fazer, e, do mesmo jeito que não davam pelota para a sua falação, ela se recusava a escutar os outros. Foi desse jeito que logo cedo arrumou um jeito de morar com um namorado, um rapaz bem mais velho que conheceu num carnaval de um clube que havia próximo de casa. Mas, essa decisão custou a toda família uma grande desorientação. Não havia outra história como essa, do tipo abandono do lar, ir pra vida, e com adjetivos bem maldosos, nos tempos que antecederam a sua ida para outro estado, isso ficava sempre a cargo dos outros, não entre os parentes nossos. Uma jovem com tanta determinação acabou por trazer fúria e rancor aos meus pais. Ambos deixaram de falar com a minha irmã e impediam que tocássemos em seu nome e que a procurássemos.

    O silêncio que permeava nosso ambiente passou a se tornar ainda maior e com um ar pesado pelas respirações e suspiros de uma misturada de sentimentos nada agradáveis, com as caras bem amarguradas e de vozes de curto alcance.

    Por uns poucos dias, depois da partida da Mara, eu achei que a família tivesse gostado do silêncio que ficava em casa, porém, depois de algum tempo, a coisa ficou séria, e nada mudava, foi então que percebi que a mágoa trazida pelo suposto descaso ligado à atitude da minha irmã em, insolentemente, como diria o Petrô, nos abandonar, somada ao que chamariam de desrespeito a uma suposta ordem familiar e mais o falatório dos vizinhos, e sobretudo a aparente incapacidade do papai em ter rédeas para segurar a filha seriam os verdadeiros motivos para tamanha perversidade de manter minha irmã no gelo e sem o apoio de que precisava.

    O gelo nunca quebrou e o tempo passou sem que nada fosse dito, e todos silenciados, também, desse modo, choraram a morte da Mara.

    Tive a sorte de conversar com a Mara dias antes da sua morte, e consegui falar sobre a falta que sentia dela e da oportunidade que via de ir me juntar a ela em Porto Alegre, já que a sua carreira de jornalista estava bem e que morava num amplo apartamento e com o Fernando, agora seu marido. Ela ficou muito feliz e disse que me aguardava. Mas, na semana seguinte, ficou doente, descobriu um câncer já muito avançado e com metástase, e morreu antes mesmo que pudesse revê-la, na sua segunda partida de junto de mim.

    Depois do tempo do luto, já passados uns cinco anos da morte da Mara, minha mãe continuava sofrendo muito e nada a fazia melhorar, e com certeza alimentava uma culpa enorme, tanto que parecia não suportá-la e começou a jogar toda a responsabilidade nas costas do meu pai, que morreu seis anos depois.

    Mesmo com a lembrança da dor e com a minha dificuldade de tentar impedi-la de se instalar em mim, ainda assim, fui dormir e tudo isso aconteceu mais rápido do que esperava. No entanto, fui acordando de madrugada, e, agitada, retirava tudo de cima da cama.

    Tive um sonho estranho, dos mais difíceis de entender, e ele se juntou aos outros que nada compreendi, em um só dia da minha vida, muito embora eu estivesse sempre tentado.

    Agarrei-me ao sonho intenso, como aqueles que o peso da comida na noite anterior o torna indigesto por indução, ou do tipo que aparece quando a vida estava desabando num só momento. E, enquanto descendo ladeira abaixo, os fazia compreensivos por existir.

    Aquela noite trazia as impressões de acontecimentos que se passaram em um lugar de sentimentos desconhecidos, absorvidos como as marcas profundas de uma cicatriz que se abriu deixando-se ali à mostra, exposta e com sensações fortes e dolorosas.

    O sonho tinha a sua identidade própria, às vezes parecia existir por si só, já que não o tinha como sendo eu mesma, nem mesmo em presença dentro

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