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Noites de Médan
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E-book298 páginas4 horas

Noites de Médan

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Sobre este e-book

À noite, o bombardeio lança sobre esquinas inteiras da cidade as dilacerações de seus obuses, o terror de sua matança anônima; de dia, espreita-se em vão as profundezas nevadas do céu à espera do voo de um pombo correio que traga sob suas asas o anúncio de, ao menos, uma vitória longínqua, uma informação, ainda que vaga, sobre o que se passa com os parentes distantes na província que se imagina devastada, presa de todos os horrores. Mas os balões saem todo dia levando cartas eternamente sem resposta. O frio, a geada, as balas prussianas terrivelmente certeiras tornam cada vez mais raros os retornos dos torcazes aos pombais, e a sede de notícias é tão grande, a ansiedade tal, que se compram três, quatro jornais em vinte e quatro horas. Todos se repetem; entretanto, quando um vendedor passa gritando: "Vejam as últimas notícias, detalhes precisos do ataque", cabeças aparecem nas janelas embaçadas das casas, os apelos reverberam, mulheres, crianças descem, dão seu sou e, de pé, na rua, leem a folha impressa, febrilmente. A folha repete o que a folha precedente contou, reproduz as mesmas informações, copia os mesmos despachos e, entretanto, dali a pouco, correrão à porta das subprefeituras, vasculhando nos gradis de ferro, onde se colam os avisos administrativos, a esmola de não se sabe qual oficial que seria uma notícia. A esperança abandonou de tal modo os corações que não se conta mais com o anúncio de um sucesso: pede-se apenas uma mudança de tédio.
Henry Céard – A sangria.
IdiomaPortuguês
EditoraEDUEL
Data de lançamento25 de fev. de 2022
ISBN9786589814283
Noites de Médan
Autor

Émile Zola

Émile Zola (1840-1902) was a French novelist, journalist, and playwright. Born in Paris to a French mother and Italian father, Zola was raised in Aix-en-Provence. At 18, Zola moved back to Paris, where he befriended Paul Cézanne and began his writing career. During this early period, Zola worked as a clerk for a publisher while writing literary and art reviews as well as political journalism for local newspapers. Following the success of his novel Thérèse Raquin (1867), Zola began a series of twenty novels known as Les Rougon-Macquart, a sprawling collection following the fates of a single family living under the Second Empire of Napoleon III. Zola’s work earned him a reputation as a leading figure in literary naturalism, a style noted for its rejection of Romanticism in favor of detachment, rationalism, and social commentary. Following the infamous Dreyfus affair of 1894, in which a French-Jewish artillery officer was falsely convicted of spying for the German Embassy, Zola wrote a scathing open letter to French President Félix Faure accusing the government and military of antisemitism and obstruction of justice. Having sacrificed his reputation as a writer and intellectual, Zola helped reverse public opinion on the affair, placing pressure on the government that led to Dreyfus’ full exoneration in 1906. Nominated for the Nobel Prize in Literature in 1901 and 1902, Zola is considered one of the most influential and talented writers in French history.

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    Noites de Médan - Émile Zola

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    Noites de MÉdan

    Reitor

    Sérgio Carlos de Carvalho

    Vice-Reitor

    Décio Sabbatini Barbosa

    Diretor

    Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello

    Conselho Editorial

    Abdallah Achour Junior

    Daniela Braga Paiano

    Edison Archela

    Efraim Rodrigues

    Ester Massae Okamoto Dalla Costa

    José Marcelo Domingues Torezan

    Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello (Presidente)

    Maria Luiza Fava Grassiotto

    Otávio Goes de Andrade

    Rosane Fonseca de Freitas Martins

    A Eduel é afiliada à

    Catalogação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos

    Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina

    Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)

    Bibliotecária: Eliane M. S. Jovanovich – CRB 9/1250

    N784 Noites de Médan / Émile Zola...[et al.] ; Tradução, notas e posfácios Dilson Ferreira da Cruz.--.Londrina : Eduel, 2022.

    1 livro digital.

    Título original: Les soirées de Médan.

    Disponível em: http://www.eduel.br

    ISBN 978-65-89814-28-3

    1. Literatura francesa. 2. Ficção francesa. I. Zola, Émile, 1840-1902. II. Cruz, Dilson Ferreira da. III. Título.

    CDU 840-31

    Autor: Émile Zola, Guy de Maupassant, J.-K. Huysmans, Henry Céard, Léon Hennique, Paul Alexis

    Titulo original: Les soirées de Médan

    Direitos da tradução em Língua Portuguesa reservados à

    Editora da Universidade Estadual de Londrina

    Campus Universitário

    Caixa Postal 10.011

    86057-970 Londrina – PR

    Fone/Fax: 43 3371 4673

    e-mail: eduel@uel.br

    www.eduel.com.br

    Sumário

    Prefácio de Léon Hennique

    O ataque ao moinho

    Bola de Sebo

    Sentido!

    A sangria

    O caso do 69

    Após a batalha

    Sobre as Noites de Médan

    Sobre o Grupo de Médan

    Prefácio de Léon Hennique

    - Vem cá, me chamava, não faz muito tempo, um jornalista curioso, jornalista notável, o que são essas histórias que correm acerca das relações privilegiadas de Zola e seu jovem grupo? Onde os senhores o encontraram? Por que razão se tornaram seus amigos, apesar da diferença de idade? Em nome do que chegaram a lançar os alicerces das Noites de Medan?

    Respondi:

    - O senhor me pega desprevenido, meu caro; questiona-me acerca de coisas já longínquas… Não sei mais, tateio, hesito… Permita que eu reflita, que me lembre, faça como o viajante cuja silhueta aparece de repente à beira-mar.

    - O viajante?

    - Sim, o viajante. Ele é bruscamente ofuscado, não distingue nada, exceto o astro magnífico, depois, lá longe, a enorme planície que ondula, que, sem trégua, embaralha a luz. Pouco a pouco, porém, - sombreia os olhos com uma das mãos – eis que acaba por descobrir minguados pontos negros; um, dois, três, ao diabo. Os pequenos pontos negros se mexem, são barcos de pescadores. Agora ele conta uma flotilha.

    - E então?

    - Então?… meu apólogo é para exortá-lo à paciência. Volte uma manhã e tentarei ser-lhe agradável. Em suma, o senhor não é muito indiscreto.

    O jornalista não voltou mais, eu o espero, mas minha resposta apressei-me em escrever. Oxalá possa ela interessar a algumas pessoas!

    Foi por intermédio de Huysmans, a quem eu havia me ligado nas segundas-feiras de Catulle Mendès, rua de Bruxelles, que conheci Paul Alexis. Decidimos imediatamente nos reunir vez ou outra; escolhemos como local da reunião um café mal frequentado, situado na praça Pigalle, e lá, felizes por estarmos de acordo, pobres de dinheiro, ricos de entusiasmo, tagarelávamos sobre literatura, exaltávamos os Rougon-Macquart¹, vituperávamos contra certos jornais. Pense só! Eles não tinham compreendido, recusavam-se a compreender um filho de Balzac², o homem que trazia o novo, aquele que desde o início havíamos celebrado alto e firme.

    - Eu, exclamou Huysmans, eu vou enfiar-lhes um artigo numa revista belga. Lá atuo em liberdade.

    - Eu, continuou Paul Alexis, eu marcharei em uma folha onde normalmente me inserem em uma edição, gratuitamente.

    - Eu…

    Não pude concluir minha frase, fiquei sem graça. Eu não tinha revista nem folha.

    - Eu, prossegui apesar de tudo… Oh, uma ideia… O abatedouro³ está para sair, não é? E se eu fizesse conferências sobre ele nos Capucines?

    Ouvi Huysmans aplaudir, Alexis descascar:

    - Vá logo te entender com o sujeito das conferências e eu te levo a Zola. Ele te dará seu prefácio e uma prova de O abatedouro.

    - All right!

    O que eu havia imaginado se realizou, o sujeito das conferências foi amável, e, no dia seguinte, ladeado por meu interlocutor, numa noite de inverno, nas Batignolles, soando nove horas, eu parava na porta de um térreo.

    - Toca.

    Zola abre, em um casaco de flanela vermelho, grande, barbudo, repleto, Zola, rosto enérgico encimado por uma bela testa, cabelos cortados curtos. Sua boca? Média. Seu nariz? Ligeiramente fendido em dois, perto da ponta, como o nariz de certos perdigueiros dotados de olfato e perspicácia. Sua voz? Voz de homem cordial, de homem excelente.

    Obtenho o prefácio desejado, as provas; minha conferência tem chance de dar certo; Madame Zola está presente, incógnita.

    Qual não foi meu prazer, em seguida, após um convite de última hora, ao perceber ao lado de Zola, além de Alexis, Huysmans, com cara de riso, e quatro senhores de aspecto simpático. Um era Guy de Maupassant, robusto, vigoroso, de modos francos, amigo de Flaubert; o segundo, Henri Céard, Pílade⁴ de Huysmans; o terceiro, Antoine Guillemet, notável paisagista; e o último, Marius Roux, de Aix-en-Provence e do Petit Journal.

    Um trimestre não se esgotara, aliás, e Maupassant, Huysmans, Céard e o fautor dessa narrativa jantavam juntos todas as quartas – depois, visitavam o casal Zola.

    Estamos bem em casa dele; damos uma mão uns para os outros; temos até mesmo a honra de agradar ao cão Raton, de poucos amigos.

    Zola muda-se, instala-se na rua Ballu – O abatedouro tinha sido um grande sucesso. Julgando a porta aberta graças ao trabalho obstinado do Mestre, a abastança penetra no novo apartamento e o ornamenta com um salão revestido de veludo carmesim. Rememoro o retrato de Zola feito por Manet, duas bibliotecas Luís XVI, inúmeros bibelôs sobre os móveis.

    - Alexis, por favor, não quebre nada hoje, dizia, brincando, D. Zola, quando o bravo camarada surgia.

    Ele tinha uma miopia perigosa.

    - Comprei uma choupana em Médan, nos conta Zola, numa bela noite. Comprei-a para minha mãe, que se aborrece na cidade, e para mim, quando o trabalho me extenua.

    Corremos para Médan pouco depois e deparamos com uma casinha branca, seu jardim, jardim com flores multicores, legumes, jardim cercado por diversas culturas, uma linha de trem, uma estrada, uma ponte.

    Foi na entrada da morada hospitaleira que Vallès⁵ mais tarde confia a Zola:

    - Quer saber, meu velho, da próxima vez que eu vier, vou trazer-lhe uma árvore.

    Vallès não sofria de falta de humor.

    A casinha, o jardim, se ampliaram… Estamos à mesa de Émile Zola, em Paris, Maupassant, Huysmans, Céard, Alexis e eu, para variar. Jogamos conversa fora, e começamos a lembrar da guerra, a famosa guerra de 70. Muitos dos nossos haviam sido voluntários ou mobilizados.

    - Escutem! Escutem! – propõe Zola - porque não fazemos um livro sobre isso, um livro de contos?

    Alexis:

    - Sim, por que não?

    - Vocês têm alguma ideia?

    - Teremos!

    - O título do volume?

    Céard:

    - As noites de Médan.

    Ele se lembrava das Noites de Neuilly.

    - Bravo! Gosto do título, aprova Huysmans. Vestiremos as crianças e as traremos aqui.

    - Logo?

    - O mais breve possível.

    As crianças estão de pé, vestidas. Bola de Sebo merece uma quente ovação. Finda a ovação, sorteio o lugar que cada um – fora Zola – deverá ocupar no futuro in-I2. Maupassant fica em primeiro.

    - E pensar que Turguêniev, a propósito de um ensaio do jovem escritor, havia profetizado que ele jamais teria talento.

    Como os mais experientes derrapam!

    O livro dos seis – Zola havia adicionado um combativo prefácio – está nas mãos de seu editor… Imprimimos… Encadernamos… Dedicamos… Ele agora pontifica na fachada das livrarias… A crítica está furiosa, ataca… Não temos medo; divertimo-nos. O público se diverte também, compra.

    Tempo simples! Tempo probo, afetuoso! Nenhum de meus amigos louvava apenas a si mesmo, tinham mestres, queriam-nos bem, respeitavam-nos: Flaubert, Edmond de Goncourt, Alphonse Daudet, Zola. Mortos, todos mortos, e nós também, quase todos…

    Que se esforce para durar uma parcela de nossa vida anterior, uma parcela melancólica, com essa recente edição das Noites de Médan.

    Léon Hennique – 1930

    Os contos que seguem foram publicados alguns na França, outros no estrangeiro. Eles nos parecem proceder de uma ideia única, ter uma mesma filosofia: reunimo-los.

    Estamos preparados para todos os tipos de ataques, para a má-fé e a ignorância de que a crítica atual já nos deu tantas provas. Nossa única preocupação foi afirmar publicamente nossa verdadeira amizade e, ao mesmo tempo, nossas tendências literárias.

    Médan, 1º de maio de 1880.


    ¹ Composta por 20 romances, Os Rougon-Macquart é a mais importante obra de Zola e do naturalismo, na qual o autor narra a história natural e social de uma família sob o segundo império francês.

    ² Ou seja, Zola. Balzac (1799-1850) escreveu um vasto ciclo romanesco – A comédia humana – também centrado em um grupo de personagens, sendo a principal inspiração do autor de Os Rougon-Macquart.

    ³ Um dos principais romances do ciclo Os Rougon Macquart e duramente criticado em seu lançamento.

    ⁴ Referência aos heróis da mitologia grega, Pílade e Orestes que eram amigos leais e inseparáveis.

    ⁵ Luis Jules Vallez (1832-1885): escritor e político de esquerda. Participou da revolução de 1848 e foi um dos eleitos da Comuna de Paris.

    ⁶ Referência à Les soirées de Neuilly, esquisses dramatiques et historiques, coletânea de pequenas peças de teatro organizadas por De Fongeray; na verdade, pseudônimo coletivo de Hygin-Auguste Cavé e Adolphe Dittimer, organizadores da obra.

    O ataque ao moinho

    Émile Zola

    I

    O moinho do pai Merlier estava em grande festa por aquela bela noite de verão. No pátio tinham colocado três mesas; instaladas de uma extremidade a outra, aguardavam os convidados. Toda a região sabia que naquele dia deviam noivar a moça Merlier, Françoise, com Dominique, um rapaz a quem chamavam de vadio, mas que as mulheres, em um raio de três léguas de distância, olhavam com olhos reluzentes, tanto era boa sua aparência.

    Aquele moinho do pai Merlier era uma verdadeira alegria. Ele ficava bem no meio da Rocreuse, no local em que a grande estrada faz um cotovelo. O vilarejo não passava de uma rua, duas fileiras de casebres, uma de cada lado da estrada, mas lá, no cotovelo, os prados se ampliavam, grandes árvores que seguiam o curso do Morelle cobriam o fundo do vale com sombras magníficas. Não há, em toda Lorraine, um pedaço de natureza mais adorável. À direita e à esquerda, bosques espessos, altas florestas seculares sobem por aclives suaves, cobrindo o horizonte com um mar verdejante, ao passo que na direção do Midi⁷, a planície se espraia em uma fertilidade maravilhosa, estendendo ao infinito pedaços de terra cortados por cercas vivas. Mas o que, sobretudo, faz o charme da Rocreuse é o frescor desse canto verdejante nos dias mais quentes de julho e agosto. O Morelle carrega as folhagens, sob as quais corre por léguas, trazendo sons murmurantes, a sombra gelada e recolhida das florestas. E o ribeirão não é, absolutamente, o único frescor: todas as espécies de águas correntes cantam sob os bosques; a cada passo, as nascentes brotam; sente-se, quando se segue pelas veredas estreitas, como que lagos subterrâneos que transpassam a relva e aproveitam as menores fendas, aos pés das árvores, entre as rochas, para extravasar em fontes cristalinas. As vozes ciciantes desses riachos elevam-se tão numerosas e altas que cobrem o canto dos pisco-chilreiros. Pode-se acreditar que se está em um parque encantado, com cascatas que caem por toda parte.

    Abaixo, as pradarias estão encharcadas. Castanheiras gigantescas fazem sombras escuras. À beira dos prados, extensas cortinas de choupos alinham suas tapeçarias farfalhantes. Há duas alamedas de enormes plátanos que sobem pelos campos na direção do antigo castelo de Gagny, hoje em ruínas. Nessa terra continuamente regada, a relva cresce desmesuradamente. É como um canteiro entre duas encostas cobertas de bosques, mas um canteiro natural, cujas pradarias são gramados e cujas árvores gigantes desenham colossais corbelhas. Quando o sol, ao meio-dia, bate de aprumo, as sombras ficam azuladas, as relvas iluminadas dormem no calor, ao passo que um frêmito gelado passa sob as folhagens.

    Era lá que o moinho do pai Merlier alegrava com seu tique-taque um recanto de vegetação feliz. A construção, feita de estuque e pranchas, parecia velha como o mundo. Ela mergulhava até a metade no Morelle, que nesse local ampliava-se em um claro dique. Uma barragem fora construída; a queda caía alguns metros sobre a roda do moinho que, ao girar, estalava como a tosse asmática de uma fiel criada que envelheceu na casa. Quando aconselhavam ao pai Merlier substituí-la, ele balançava a cabeça dizendo que a roda jovem seria mais preguiçosa e não conheceria tão bem o trabalho; e remendava a antiga com tudo o que lhe caía na mão, aduelas de tonéis, ferragens enferrujadas, zinco, chumbo. A roda parecia assim mais alegre com seu perfil que foi ficando estranho, toda empenachada de relva e musgo. Quando a água batia nela com sua torrente de prata, ela se cobria de pérolas e via-se sua estranha carcaça passar com seu brilhante adorno de colares de nácar.

    A parte do moinho que mergulhava assim no Morelle parecia uma arca bárbara lá soçobrada. Uma boa metade da habitação fora construída sobre pilastras. A água entrava pelo assoalho, os buracos eram bem conhecidos na região por causa das enguias e lagostins enormes que lá se pegavam. Acima da queda da água, o dique era límpido como um espelho, e quando a roda não o perturbava com sua espuma, avistavam-se cardumes de peixes grandes que nadavam com o vagar das esquadras. Uma escada que se tinha rompido descia até o rio, perto de uma pilastra na qual ficava amarrado um barco. Uma passarela de madeira passava acima da roda. Janelas se abriam, cavadas irregularmente. Era uma confusão de esconsos, muretas, construções acrescidas mais tarde, vigas e telhados que davam ao moinho ares de antiga cidadela desmantelada. Mas as heras tinham crescido, todas as espécies de plantas trepadeiras tapavam as rachaduras muito grandes e cobriam com uma manta verde a velha morada. As mocinhas que por lá passavam desenhavam em seus álbuns o moinho do pai Merlier.

    Do lado da estrada, a casa era mais sólida. Um portal de pedra se abria para o grande pátio, ladeado à direita e à esquerda por galpões e estrabarias. Perto de um poço, um olmo imenso cobria com sua sombra a metade do pátio. Ao fundo, a casa alinhava as quatro janelas de seu primeiro andar, encimado por um pombal. O único capricho do pai Merlier era mandar caiar essa fachada a cada dez anos. Ela acabava justamente de ser branqueada, e ofuscava o vilarejo quando o sol a iluminava no meio do dia.

    Havia vinte anos que o pai Merlier era prefeito de Rocreuse. Ele era estimado pela fortuna que soube fazer. Atribuíam-lhe qualquer coisa como oitenta mil francos, amassados sou a sou⁸. Quando desposou Madeleine Guillard, que lhe deu como dote o moinho, ele não possuía quase nada além de seus dois braços. Mas Madeleine jamais se arrependeu de sua escolha, tal a forma como ele soube administrar com galhardia os negócios do casal. Hoje a mulher é defunta, ele permanece viúvo com sua filha Françoise. Certamente poderia descansar, deixar a roda do moinho dormir sob o musgo, mas teria se entediado muito, e a casa ter-lhe-ia parecido morta. Ele continuava trabalhando, pelo prazer. O pai Merlier era então um velho alto, de cara comprida, silenciosa, que jamais ria, mas que, apesar disso, era muito alegre por dentro. Tinham-no escolhido prefeito por causa de seu dinheiro e também pela bela figura que sabia fazer quando celebrava um casamento.

    Françoise Merlier acabava de fazer dezoito anos. Ela não era tida por uma das mais belas moças da região porque era franzina. Até os quinze anos, tinha mesmo sido feia. Não podiam compreender, na Rocreuse, como a filha do pai e da mãe Merlier, ambos tão robustos, crescia pouco e com um jeito de dar dó. Mas aos quinze anos, sem deixar de ser delicada, ela ganhou uma carinha mais linda do mundo. Tinha os cabelos negros, os olhos negros, e além de tudo era toda rosada; uma boca que ria sempre, covinhas nas bochechas, um testa clara onde havia como que uma coroa de sol. Ainda que franzina para a região, não era magra, longe disso, simplesmente não seria capaz de carregar um saco de trigo; mas com a idade tornava-se bem cheinha e acabaria por ficar roliça e deliciosa como uma codorna. No entanto, os longos silêncios de seu pai tinham-na tornado sensata muito jovem. Se ria sempre, era para agradar aos demais. No fundo, era séria.

    Naturalmente, toda a região a cortejava, mais por seus escudos⁹ que por sua graça. E ela terminou por fazer uma escolha que acabava de escandalizar o lugar. Do outro lado do Morelle, vivia um rapaz alto, que chamavam Dominique Penquer. Ele não era da Rocreuse. Dez anos antes tinha vindo da Bélgica para herdar de um tio que possuía uma pequena propriedade bem na orla da floresta de Gagny, exatamente na frente do moinho, a alguns tiros de fuzil. Viera para vender a propriedade, dizia, e voltar para casa. Mas, ao que parece, a região o encantou, pois não saiu mais de lá. Ele era visto cultivando seu pedaço de terra, colhendo alguns legumes, de que vivia. Pescava, caçava; várias vezes os guardas quase o prenderam e lavraram um auto de infração. Essa existência livre, cujas fontes os camponeses não explicavam muito bem, acabaram por dar-lhe má reputação. Diziam vagamente que ele caçava ilegalmente. Seja como for, era preguiçoso, pois frequentemente o encontravam adormecido na relva em horários que devia estar trabalhando. O casebre que habitava, sob as últimas árvores da floresta, tampouco parecia a morada de um rapaz honesto. Se ele fizesse um comércio com os lobos das ruínas de Gagny, isso não teria surpreendido às velhas senhoras. Entretanto, as moças, às vezes, ousavam defendê-lo, pois era soberbo esse homem suspeito, esbelto e alto como um choupo, de pele muito clara, com uma barba e cabelos loiros que sob o sol pareciam de ouro. Ora, uma bela manhã, Françoise declarou ao pai Merlier que amava Dominique e jamais concordaria em desposar outro rapaz.

    Imagine o golpe que o pai Merlier recebeu naquele dia! Ele nada disse, conforme era seu costume. Tinha sua expressão meditativa; entretanto, sua alegria interior não brilhava mais em seus olhos. Ficaram amuados por uma semana. Françoise, também ela, estava toda grave. O que atormentava o pai Merlier era não saber como esse caçador clandestino e malandro tinha sido capaz de enfeitiçar sua filha. Dominique jamais tinha vindo ao moinho. O moleiro ficou à espreita e viu o galante, do outro lado do Morelle, deitado na relva e fingindo dormir. Françoise, de seu quarto, podia vê-lo. A coisa era clara: eles deviam ter-se amado, fazendo-se doces olhos por cima da roda do moinho.

    Entrementes, outros oito dias se passaram. Françoise ficava cada vez mais grave. O pai Merlier continuava sem dizer nada. Depois, uma noite, silenciosamente, ele mesmo trouxe Dominique. Françoise justamente punha a mesa. Ela não pareceu espantada, contentou-se em colocar mais um prato; mas as covinhas de sua face mostraram-se novamente e seu sorriso reapareceu. Pela manhã, o pai Merlier fora encontrar Dominique no casebre, na borda do bosque. Lá, os dois homens conversaram por três horas, portas e janelas fechadas. Jamais ninguém soube o que disseram um ao outro. O que há de certo é que ao sair o pai Merlier já tratava Dominique como filho. Provavelmente, o velho tinha encontrado no rapaz que fora buscar, no preguiçoso que dormia na relva para se fazer amar pelas moças, um bravo rapaz.

    Toda Rocreuse ladrou. As mulheres, nas portas, não cessavam acerca da loucura do pai Merlier, que introduzia assim em sua casa um brejeiro. Ele deixou que falassem. Talvez se lembrasse do próprio casamento. Ele tampouco possuía um vintém quando desposou Madeleine e seu moinho; isso, contudo, não o impedira, de jeito nenhum, de se fazer um bom marido. Aliás, Dominique cortou rápido o cancã, pondo-se tão rudemente ao trabalho que a região ficou maravilhada. O rapaz do moinho foi justamente sorteado, e Dominique jamais quis que engajassem outro. Ele carregou os sacos, dirigiu a carroça, bateu-se com a velha roda de água, quando ela fazia com que pedissem por favor que girasse; tudo isso com tanto coração, que vinham vê-lo pelo prazer. O pai Merlier tinha seu riso silencioso. Ele estava muito orgulhoso de ter adivinhado esse rapaz. Nada como o amor para dar coragem aos jovens.

    No meio de toda essa grossa labuta, Françoise e Dominique se adoravam. Quase não se falavam, mas se olhavam com uma doçura sorridente. Até então o pai Merlier não tinha dito uma palavra acerca do casamento; e ambos respeitavam tal silêncio, esperando a vontade do velho. Enfim, um dia, por volta de meados de julho, ele mandou colocar três mesas no pátio, sob o grande olmo, e convidou seus amigos da Rocreuse a vir à noite beber um gole com ele. Quando o pátio ficou cheio e todos tinham seu copo na mão, o pai Merlier levantou o seu bem alto, dizendo:

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