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O Chamado da Águia: Uma Nova Cruzada
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O Chamado da Águia: Uma Nova Cruzada
E-book362 páginas5 horas

O Chamado da Águia: Uma Nova Cruzada

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Sobre este e-book

Em meio à crise econômica trazida pela implementação da agenda globalista em seu país, o fazendeiro Thomas
Walsh tenta preservar o legado de sua família enquanto observa a derrocada moral de uma sociedade de infinitos direitos, que considera patriotas tão perigosos quanto o gás carbônico e garante a vida aos mais perversos criminosos enquanto a nega a inocentes bebês, nascidos ou não. Quando mais um inocente é confiscado pelo gigante Estado, Tom embarca em uma viagem sem volta em busca da Verdade, acompanhado por um excêntrico grupo de amigos de opiniões banidas que, ao lutar pela liberdade de toda a sociedade, coloca a sua própria em risco.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento23 de mar. de 2022
ISBN9786588927779
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    Pré-visualização do livro

    O Chamado da Águia - Dimitri Marconi

    ALERTA DE GATILHO

    Todos os personagens presentes neste livro são totalmente fictícios, bem como quaisquer nomes, localidades, acontecimentos, estatísticas, siglas e teorias. TRATA-SE DE UMA OBRA DE FICÇÃO E QUALQUER SEMELHANÇA COM A VIDA REAL É MERA COINCIDÊNCIA.

    Contudo, embora seja um livro de ficção, e apesar do autor saber que é difícil prever quais matérias são sensíveis ou não em uma obra literária, ele entende que O CONTEÚDO DESTE LIVRO PODE TRAZER GRANDE DESCONFORTO OU SOFRIMENTO, UMA VEZ QUE ALGUMAS PASSAGENS COM TEMA PERTURBADOR SÃO RETRATADAS DE FORMA NUA E CRUA. Dessa maneira, o Alerta de Gatilho foi introduzido para permitir que o potencial leitor possa escolher ler esta obra de acordo com sua disposição. Antes de decidir lê-la (ou não), o leitor deve saber que HÁ CENAS FORTES QUE PODEM REMETER A TEMAS COMO RACISMO, SEXISMO, DIREITO AO ABORTO, AGRESSÃO E OUTROS.

    Portanto, aquele que considera o conforto intelectual um direito universal deve, sem hesitar, seguir à esquerda, fechar o livro e – por que não? – queimá-lo. Já aquele que está aberto a questionamentos, colocando a busca pela verdade no topo de sua lista de prioridades, está convidado a seguir à direita. Faça-o, contudo, por sua conta e risco, e ABANDONE A LEITURA NO PRIMEIRO SINAL DE INCÔMODO PSICOLÓGICO, pois não há qualquer intenção de que alguém passe por algum sofrimento lendo esta obra.

    Se ainda assim o leitor estiver decidido a virar a página, antes de fazê-lo ele deve saber que até o autor ficou horrorizado com muitas das opiniões de seus personagens. Sendo, porém, um defensor intransigente da liberdade de expressão, não poderia censurá-los, pois eles possuem vida própria dentro da obra, e esta não foi escrita para flocos de neve, mas sim para o seleto grupo de pessoas que ainda acreditam que dois e dois são quatro.

    CONSIDERE-SE AVISADO!

    I

    Ordem de aborto. O menino nasceu sem autorização – o fazendeiro Thomas Walsh ouviu mais uma vez o grito de horror do pequeno Jimmy, arrancado dos braços da mãe para fazer cumprir a lei. Deu um salto da cadeira, suspirando como um mergulhador que, sem equipamento, chega à superfície depois de vários minutos de exploração oceânica. Todos ao seu redor viraram-se ligeiramente para averiguar quem ousava perturbar o já tradicional ritual de espera no Comitê pelo Combate às Mudanças Climáticas, obrigatório para boa parte da população – os mortais.

    Tom não havia conseguido dormir aquela noite – não por culpa do seu sofá, que até era aconchegante, mas pelo que testemunhara, havia menos de vinte e quatro horas, na chácara dos York. Sentiu alívio ao ver que havia sido o centro das atenções por apenas dois segundos; todos já se voltavam novamente para seus tijolos brilhantes, adoração compartilhada apenas pela grande tela suspensa, situada quatro cadeiras à frente de Tom, que nada levava em suas mãos, a não ser o formulário a ser apresentado em breve. Era como se ele estivesse cercado por girassóis indecisos, cada um com seu pequeno sol em suas mãos, sem saber se se alimentava dele ou do outro, bem maior, que todos ali compartilhavam.

    O grande sol era apenas uma tela para Tom. Em seu canto esquerdo, mostrava que ele ainda teria de esperar o atendimento de umas trinta pessoas; à direita, tomando a maior parte do retângulo, transmitia o canal de notícias, informando que a famosíssima atriz Angelina Black, que já tinha três filhos, estava grávida de gêmeos, o que Tom já havia escutado em seu rádio pela manhã. Em seguida, com muito entusiasmo, o repórter comemorou a instalação de vinte novas turbinas eólicas em uma cidade distante – com aquele sorriso triunfante, ele poderia tranquilamente estar cobrindo o fim de uma guerra, com a total rendição do inimigo. Tom estranhava o fato de sua conta de luz vir aumentando constantemente, embora visse com certa frequência inaugurações como aquela. Com tantos novos pontos de geração de energia, seja pelo vento seja pelo sol, por que ele, com consumo menor, pagava hoje o dobro em relação ao ano anterior?

    Sentiu o estômago gelar ao saber que um estudante havia sido acusado de abuso sexual na Universidade Gore Lemon, onde sua filha Greta vivia. As imagens mostraram o menino branco franzino, de cabelo preto e nenhum sinal aparente da habilidade de cultivar uma barba, sendo levado do campus pela polícia – já havia sido expulso da instituição, segundo a reportagem. Apesar de obviamente tenso por considerar momentaneamente a possibilidade de sua filha ter sido abusada (longos segundos depois, foi mostrada a real vítima), Tom talvez fosse a única pessoa que assistia àquilo sem condenar o menino – não que fosse um entusiasta do estupro, mas poderia muito bem ser o único que ainda não havia batido o martelo sobre sua culpa. A denúncia tinha sido feita havia poucas horas e, mesmo assim, naquele momento, qualquer juiz a quem o caso fosse designado já tinha sua decisão final tomada, talvez até assinada – faltava apenas marcar a data do julgamento. Tom, todavia, era um bocado desconfiado de tudo, ainda que sua chama da dúvida tivesse se enfraquecido muito após a morte de sua esposa, Julia. Seus questionamentos haviam se tornado mero ceticismo passivo, sinal de que talvez aquele fogo não tivesse apenas minguado – talvez tivesse se apagado por completo. Era esse o grande receio de seu amigo Andrew Knight, o Drew, uma das poucas pessoas na cidade com olhos vermelhos brilhantes. Ele lembrava do amigo de anos atrás e queria trazê-lo de volta; para isso, em doses homeopáticas, vinha tentando expor Tom à grande verdade.

    Sentia muita falta de Greta, com quem não falava há mais de oito meses, quando passaram juntos o Natal de janeiro. Não via a hora de tê-la de volta, já com o diploma de Enologia e Viticultura – como habitual, essa sombra do futuro fez seu peito se encher de orgulho. Estava curioso para aprender com ela técnicas novas que nem poderia imaginar! Com certeza isso aumentaria a produtividade da fazenda – seria a salvação do seu legado! Sua linha de raciocínio traiçoeira resgatou então todas as dificuldades financeiras, e o orgulho e a esperança deram lugar à angústia.

    Levantou-se para caminhar pelo enorme salão, a fim de despistar seus pensamentos. Seu metro e oitenta pareciam um pouco mais por sua magreza, e a calça jeans e a pesada bota não atrapalhavam sua aparência elegante. O salão principal do Comitê pelo Combate às Mudanças Climáticas era povoado por uma dúzia de robustos pilares de mármore distribuídos simetricamente, contrastando com o carpete verde, que imitava um gramado de corte baixo. Junto a cada pilar havia um grande vaso, cujas plantas apresentavam o mesmo tom de verde do chão. De passagem, acariciou a planta mais próxima, descobrindo que estava tão viva quanto a grama em que pisava.

    Cinco corredores se formavam em frente às cadeiras, cada um com várias cabines de cada lado. Aquele prédio, apenas uma das tantas sedes do comitê, recebia todos os dias centenas de pessoas em busca de autorização para atividades que, até alguns anos antes, eram executadas automaticamente, sem formulários ou carimbos. Do lado oposto às cabines, atrás da legião de cadeiras, havia quatro luxuosos elevadores que, quando abertos, graças ao revestimento de vidro, possibilitavam a visão da praça. Observando aquele entra e sai dos burocratas, assim como todos os excessivos lustres e incontáveis computadores, Tom tentou imaginar quanto o comitê pagava mensalmente à companhia de luz. Uma criança que, com um copo, coleta água de um canto da piscina e imediatamente a despeja do outro lado consegue notar alguma diferença no nível da água? E notaria se passasse a usar um balde? Para azar de Tom, ele não nadava naquela piscina, e era um dos condenados a enchê-la de fora.

    Continuou caminhando displicentemente, fazendo hora. Ao fundo, reviu a maquininha da qual havia retirado sua senha duas horas antes, bem ao lado do detector de metais e dos dois seguranças armados que supervisionavam a entrada ao suntuoso edifício. Enquanto seguranças particulares proliferavam, protegendo os poucos que podiam pagar, policiais eram espécie em extinção. À esquerda, podia ver os poucos degraus que davam na Praça da Diversidade, a maior da cidade. Pensou em sair por uns minutos enquanto aguardava seu número, opção escolhida por muitos, já que havia bem menos cadeiras disponíveis do que pessoas na fila da senha – ele mesmo já havia feito assim várias vezes. Em outras ocasiões, Tom já havia aguardado na praça, em uma cadeira, escorado a um pilar, a outro, e até sentado em um canto do salão – talvez tivesse esgotado todas as possíveis abordagens àquela visita entediante, já que era obrigado a comparecer ao comitê no mínimo duas vezes por ano, fosse para solicitar suas cotas anuais de combustível e carne vermelha ou, como era o caso naquele dia, renovar o alvará de utilização de suas máquinas da vinícola.

    Resolveu ficar lá dentro desta vez – deviam chamá-lo em breve, pensou. À direita dos seguranças, viu duas grandes portas que não havia notado mais cedo, sob um longo cartaz que lembrava um vitral que havia em sua igreja. Apertou os olhos, inspecionando a imagem, que consistia em um homem de uns sessenta anos, pele e cabelos brancos, olhar profundo, quase angelical, segurando um animal em seus braços. Dado seu aspecto, o cartaz talvez se camuflasse por dias em meio às gravuras que Tom costumava ver em sua igreja, não fosse pelos dizeres que levava na parte inferior: Como se preparar para um planeta seis graus mais quente? Palestra de Albert Grimm, presidente do Comitê pelo Combate às Mudanças Climáticas. 24 de dezembro, às 16h, no Auditório Thunberg. A palestra marcaria a abertura de mais uma edição do congresso anual organizado pelo comitê, que era sempre agendado, não por acaso, para os dias 24 e 25 de dezembro. Não bastava retirar as crianças das famílias nessa época; parte importante do planejamento estatal passava pelo fomento da concorrência com datas tradicionais como aquela.

    Tom conhecia o homem, que aparecia esporadicamente em alguns programas de televisão. Preferia se informar, no entanto, através do rádio, onde já o ouvira em múltiplas ocasiões. Sempre que escutava as palavras de Grimm, ficava preocupado com o futuro – não podia evitar, embora sua desconfiança habitual amortecesse parte do terror. Entretanto, naquele momento sua atenção se voltava ao animal que Al Grimm segurava – não sabia se era um cordeiro ou um bezerro.

    Desviou o olhar para a praça, através do estreito vão entre um dos seguranças e o detector de metais. Ao fundo, podia ver a base do que já havia sido uma estátua, mas agora era apenas um solitário bloco de pedra com pichações que ele não conseguia ler àquela distância. Sua visão era frequentemente interrompida pelas centenas de pessoas que caminhavam cabisbaixas para um lado e para o outro, cada uma mirando um fino tijolo que levava em suas mãos – os objetos brilhavam, mas pareciam algemas. Apenas uma a cada cinquenta pessoas que cruzavam a visão de Tom não arrastava aquela pesada bola de ferro; naquele momento, possivelmente fosse ele o único dentro do prédio que não carregava aquele fardo. Tinha a felicidade de poder caminhar de cabeça erguida, realmente vivenciando os locais por onde passava, e não hipnotizado pelo brilho artificial de seus grilhões.

    Trezentos e treze! Trezentos e treze! – uma mulher de ancas gigantes se arrastava pelo carpete, chamando pela senha de Tom. Aqui! – acenou com o papel, desculpando-se com a senhora enfezada e acompanhando-a até seu guichê. Enquanto ela se apertava toda para entrar de volta na cabine, Tom colocou o formulário pelo vão entre o vidro e a bancada. Por alguns minutos, observou-a castigando as teclas como se lhe tivessem feito algum mal, inserindo no sistema os dados do formulário que ele submetera. Achou que o número de gêneros parecia ter aumentado ainda mais em relação a outros formulários recentes, mas já estava craque no preenchimento que em outras ocasiões lhe havia tomado muito tempo: nos campos raça e gênero, bastava selecionar as únicas opções que estivessem escritas apenas em letras minúsculas.

    Finalmente, ouviu a impressora cuspir sua decisão, entregue em seguida pela gorda, que transparecia um ar de satisfação. INDEFERIDO – era este o veredito do sábio sistema. Averiguando o papel por completo, Tom torcia a mandíbula coberta por uma barba cerrada, tão grisalha como seus cabelos curtos que apontavam para cima. Como assim, senhora? – perguntou calmamente, com certo ceticismo. Indeferido quer dizer negado, senhor – respondeu em tom condescendente. Não, isso eu sei. Mas e aí? – tentou manter a calma. E aí que o senhor não poderá usar essas duas máquinas, senhor – ela mal conseguia ocultar sua alegria mesquinha. Mas eu comprei faz só três anos! Estão ótimas ainda! – argumentou, conforme buscava mais fatos que poderiam ter sido ignorados por engano, apesar da perfeição do sistema. Fazia apenas dois meses que havia pago a última parcela do empréstimo tomado para comprar aquelas máquinas; logo, deveria haver algum mal-entendido. Senhor, não sou eu que decido. Segundo o sistema, o senhor já atingiu a cota de carbono disponível para seu grupo, e a pegada de carbono agregada de sua empresa não comporta mais essa renovação. Não posso fazer nada. Com licença – saboreou cada palavra e baixou como uma guilhotina a pequena persiana que cada cabine tinha por trás do vidro. Tom lembrava exatamente o dia em que aprendera o que aquela palavra queria dizer – grupo.

    O incrédulo Thomas Walsh esperava muito pouco do governo, mas ainda assim havia sido surpreendido. Não entendia como os dois tanques em que fermentava o vinho poderiam poluir tanto o meio ambiente a ponto de terem que ser desativados. Ainda que realmente o fizessem, ambos já haviam sido fabricados há alguns anos, então será que apenas continuar usando-os seria mesmo tão nocivo à natureza? Queria fazer essas perguntas àquela senhora, mas preferiu tentar engolir a derrota ao ver que um dos seguranças já se aproximava.

    Deixou o prédio ainda olhando para o papel e, em vez de virar à esquerda, onde encontraria sua velha picape, um charmoso Ford F150, ano 1984, seguiu reto, cabisbaixo, até tropeçar no degrau que delimitava a imponente base da estátua que lá não mais estava. Lembrou-se da época em que monumentos de todo o país passaram a ser removidos por razões sanitárias. Aparentemente, eram agentes disseminadores dos vírus do racismo e do ódio; ele jamais havia imaginado que tantos personagens importantes da história do país fossem racistas e fascistas. Erguendo finalmente os olhos do papel para a base, conseguiu ler os dizeres nela pichados e, a julgar por aquelas palavras, pensou que talvez os cientistas não estivessem tão errados; realmente havia muito ódio ali. Cogitou que talvez devessem ter removido as bases das estátuas também, para garantir a erradicação do tal vírus.

    Seus olhos já haviam sido libertados do veredito cravado no papel, mas sua mente ainda era prisioneira, então adiou o retorno ao carro, pois uma caminhada deveria ajudá-lo a organizar os pensamentos. Caminhou até a avenida adjacente à praça e virou à esquerda, tentando processar passado, presente e futuro. Mais alguns passos depois, ainda sem conclusões, seu corpo parou, embora seu cérebro não parecesse ter dado aquele comando. Olhando ao redor, reconheceu aquela porta vermelha – era o O’Briain’s, bar do velho Aengus Ó Briain, amigo da família, que havia conhecido o avô de Tom lutando a guerra das guerras. Além da porta de madeira, a fachada do bar contava com um vidro ensebado, com o nome do bar desenhado em verde junto a um trevo de três folhas; o mesmo desenho podia ser visto em um letreiro no alto, que há tempos Gus não ligava. A energia elétrica já era cara demais sem esse custo extra – o bar ainda estar funcionando era, em si, uma vitória para o velho Aengus.

    Tom costumava ir ao bar com certa regularidade, mas todos que antes o acompanhavam agora ele poderia levar apenas em seu peito. Desde criança, ia com seu pai e seu avô, erguendo as sobrancelhas de alguns clientes. Se apenas sua presença no local os perturbava, o que fariam se soubessem que Tom, com o consentimento dos pais, já experimentava os vinhos da família? O O’Briain’s era cenário de muitas lembranças, o que fez com que ele o riscasse de sua vida após a perda de Julia, com quem ia ao bar especialmente durante a temporada de futebol – não por ele, que mal entendia as regras, mas ela era apaixonada pelo violento esporte, o mais forte elo que tinha com seu falecido pai. As cicatrizes da perda de seus ancestrais jamais sumiriam, mas já faziam parte de sua pele. A morte de Julia, no entanto, havia fincado em seu peito um punhal muito profundo, e esse corte ainda sangrava.

    Olhando para o escuro interior do bar, lembrou-se das inúmeras vezes, nos últimos meses, em que seu amigo Drew o chamara para participar das conversas que vinham tendo; eram supostamente densas e certamente contrárias ao governo atual, cuja sede Tom sequer conhecia, mas tinha a impressão de que se localizava do outro lado do oceano. Talvez fosse a hora de se juntar aos amigos novamente e tentar compreender do que tanto falavam. Olhou de novo para o papel, pensando mais uma vez que algo deveria estar errado. Virou-se, caminhando de volta os dois quarteirões até ver o grande prédio do comitê, que tinha fachada azul-marinho. As portas ainda estavam abertas; quem sabe se insistisse poderiam perceber alguma falha na avaliação de minutos atrás… Deu mais alguns passos em direção ao prédio azul, mas suas entranhas se reviraram. O prédio era um ímã que não mais o atraía, mas fazia o oposto. Suas células sentiam repulsa pela construção. Em conjunto com os intestinos, seu cérebro decidiu participar do motim, projetando em sua mente a porta do O’Briain’s, e adicionando a ela um belo contorno brilhante. Refém de suas vísceras, Tom deu meia volta e em segundos já se via outra vez em frente à porta vermelha – sentiu o calor gerado pelo regozijo ansioso de seus órgãos. Teria realmente algo especial ali? Poderia haver luz? E se existisse… ele queria vê-la? Enfim, tomando as rédeas da situação, sua mão direita decidiu encerrar a indecisão.

    Tommy! – uma voz familiar o trouxe satisfação imediata pela ousadia de sua mão. Era o velho Aengus Ó Briain – o único, desde a morte de seu avô, que o chamava assim. Levava na cabeça um chapéu de feltro marrom-escuro, com a parte central achatada e uma faixa preta horizontal em sua base. Mirava Tom através das grandes lentes arredondadas de seus óculos, que eram presas à armação apenas em sua parte superior. Gus! – exclamou, abraçando-o. Pisei no seu pé, garoto? – disse, ainda durante o abraço. Tom não entendeu a pergunta, mas sentiu em seu peito um calor que um dia fora regra, hoje era exceção. Não te vejo faz o quê… um ano? – completou o velho, que havia notado a feição confusa de Tom. Ah… muito trabalho, sabe… – e desviou o olhar. De fato, cuidar da vinícola demandava muito, mas ambos sabiam a real razão para ter evitado o bar do amigo por tanto tempo. Dois anos antes, o velho comparecera ao velório de Julia e, desde então, sempre contando com a carona de Drew, viam-se apenas nas missas do padre Paul. Com o fechamento da igreja pelo Estado, contudo, o velho se recusou a ir às missas celebradas na frente do prédio, pichado e danificado pelos chamados manifestantes pacíficos.

    Quer tomar o quê, garoto? O seu vinho acabou… – Tom não ficou surpreso, pois tinha presenteado o amigo com uma caixa havia dois Natais. Vou trazer mais esses dias – disse ele. Eu até compraria, mas ninguém aqui tem tido condições… – desculpou-se Gus; o preço do vinho Walsh estava, de fato, acima da capacidade não só da clientela do velho, como de boa parte da população. Eu sei, não tá fácil pra ninguém – respondeu, olhando para o papel, agora bem amassado, que ainda levava na mão esquerda. Fui ali no comitê hoje – informou, com voz melancólica. Combustível ou carne? – de fato, eram essas cotas as duas maiores razões para se visitar o comitê. Não, tentei renovar a licença de duas máquinas lá, mas… – balançou a cabeça em lamento. Você não pode mais usá-las, então? – Tom confirmou. Maria? Vem ouvir isso! Ora, são uns gênios, não é mesmo? Agora o planeta tá salvo – ironizou o velho, sacudindo os braços. Alguns segundos depois, uma bela mulher, à beira dos quarenta anos, surgia pela porta dos fundos, que dava acesso à escada para a casa de Aengus. Agora tudo vai melhorar, Maria… o Tommy aqui não pode mais usar as máquinas dele – satirizou. Que tipo de máquina? Faz muita fumaça? – perguntou ela, antes mesmo de se apresentar. Não faz nada! São dois tanques só… daqueles de fermentação de vinho, sabe? – a mulher gargalhou, mostrando todos os seus dentes. Seus cabelos volumosos, tão pretos como seus delicados óculos com pequenas lentes retangulares, contrastavam com sua pele de porcelana. Pode usar… Thomas? – buscou confirmação. Tom – disse ele. Então, Tom, pode continuar usando, viu… eles fazem um monte de regras, mas não têm a menor capacidade para fazer com que sejam cumpridas – disse ela, fazendo surgir alguma esperança nele, que não havia pensado nessa possibilidade; era Drew geralmente a origem de comentários contendo tamanho desprezo pelas leis. Maria Demetra – ela finalmente se apresentou, apertando sua mão. Mas pode me chamar de DEMI – enfatizou, olhando para Aengus, que insistia em chamá-la pelo primeiro nome; ele disfarçou um riso enquanto servia três doses de vodca. A Maria era cientista-chefe do comitê, Tommy – informou, dando mais sentido ao desenho que Tom via na camiseta da mulher: o planeta Terra no centro, circundado pela frase Não Existe Planeta B.

    Pouco acima dos seus olhos vermelhos, Demi tinha uma cicatriz que interrompia verticalmente sua sobrancelha esquerda. Não devia ser muito antiga, mas já estava fechada; Tom, porém, não teve coragem de perguntar o que havia ocorrido à mulher que acabara de conhecer. E por que você saiu do comitê? – decidiu-se por uma pergunta aparentemente menos invasiva, sem saber que estava ligada tanto à cicatriz como à razão para morar em um quartinho nos fundos do O’Briain’s. Bem, isso é assunto pra outro dia – desconversou, enquanto Tom tentava cruzar mentalmente os acontecimentos do dia anterior com a frase que ouvira dois minutos antes. Será que a SS não faz esse tipo de inspeção também? – perguntou, despertando curiosidade em ambos. SS? – perguntou ela, apertando um dos olhos ao vasculhar a memória. Ele não tinha escolha; precisava compartilhar o que presenciara – tragédia cuja protagonista ainda devia estar agonizando em sua cama. Tomou sua vodca e começou.

    II

    A manhã nasceu tão nublada quanto o destino do pequeno Jimmy York. Tom selecionou alguns cachos de uva de sua plantação, depositou a cesta no banco de seu velho caminhão e saiu pela estradinha estreita em direção à igreja lacrada, embora já não houvesse missas e o paradeiro do padre Paul ainda fosse desconhecido. A Estrada 33 se encerrava ao pé da montanha, de modo que a rota à esquerda levava à ponte, passagem necessária para chegar à cidade, enquanto a rota à direita dava acesso não apenas a outras fazendas, como à entrada para o morro que levava ao Vale, cidadezinha localizada a duas horas dali, isolada no alto da serra. Passando em frente à igreja, virou à direita, chegando ao cemitério onde Julia estava havia dois anos. Ainda que sentisse o estômago gelado e os olhos molhados sempre que o fazia, por um segundo a sentia presente novamente como nos outros vinte e sete anos, e não apenas em seu peito, morada que jamais abandonaria.

    Fez o sinal da cruz e voltou à avenida que levava ao morro, seguindo reto em direção à casa dos York. Ao ver, de passagem, a entrada para a montanha, lembrou-se de meses antes, quando havia ajudado o pastor Lawrence em sua fuga para o Vale, no dia da prisão do padre Paul. Católico desde sempre, Tom também frequentava, até quando o governo permitiu, a igreja evangélica, por influência de Julia. Notava, sim, algumas diferenças entre elas, mas se sentia acolhido por ambas as comunidades. Ninguém além do casal participava tanto das missas quanto dos cultos, e ninguém havia estado em melhor posição para perceber, ao longo dos anos, como esses rebanhos vinham encolhendo. Teriam os desistentes migrado a outro templo, encontrado outros deuses? Ou teriam eles abandonado definitivamente qualquer religiosidade? Thomas Walsh caminhava, cada vez mais depressa, em direção ao seu destino, e essa era uma das respostas que ele estava fadado a descobrir.

    Passou ao lado de um dos inúmeros armazéns do Urso, empresário estrangeiro com olhos apertados e bochechas gigantes, de quem sempre ouvia falar no jornal – o sentido do termo estrangeiro, no entanto, perdia força a cada dia, assim como país e fronteiras. O sujeito devia ser muito bem relacionado, pois sempre participava de eventos com políticos e jornalistas do conglomerado de notícias que possuía todos os canais, rádios e jornais, a rede MSDNC. Entretanto, nada disso lhe ajudava a fazer um vinho decente; o que Tom fabricava custava o dobro, mas a diferença de qualidade era tão grande que, mesmo assim, vendia mais. Enchia-se de orgulho quando pensava nisso, pois era sinal de que estava mantendo viva a tradição iniciada pelo avô. A vinícola era o legado da família, e seria também o seu.

    Seus consumidores eram quase exclusivamente habitantes do bairro nobre, parte da cidade localizada do outro lado do rio, que, pela proximidade, confundia-se com o oceano onde desaguava. Até seria possível chegar lá sem atravessar as águas; porém, fazer todo o contorno por terra demandaria bem mais tempo e combustível, o que fazia com que todos optassem pela travessia, ou pela grande ponte, ou pelos barcos que saíam do cais da Praça da Diversidade.

    Mais alguns quilômetros após o armazém do Urso, já podia ver a entrada para a pequena estradinha que levava à chácara dos York. A menos de um minuto da curva notou que lá entrava um carro negro, com a aparência de uma viatura policial. Seguiu sem pressa, pensando que deveriam estar procurando algum criminoso ou algo assim, mas logo sua memória deu-lhe um choque de realidade – seus pelos da nuca também se lembraram. Havia um motivo muito específico para a visita da polícia, mas já fazia mais de três anos. Seria possível que estivessem lá por… Jimmy?

    Tom encostou rapidamente o caminhão em frente à casa da amiga, ao lado do carro que agora notava não se tratar de uma viatura policial. Talvez até tivesse sido em algum momento, pois o modelo era o mesmo, mas seu teto não contava com as tradicionais luzes, e era todo preto, exceto pela pequena estampa branca na lataria da porta: SS - 013. Ele não sabia o que aquilo queria dizer; talvez o número fosse a identificação da unidade, mas e a sigla? Corre, filho! CORRE! – o berro de Kate interrompeu sua observação do carro. Apressou-se até os fundos da propriedade, onde viu um homem forte, de farda preta, trazendo o pequeno Jimmy no colo, enquanto o outro, mais baixo e jovem, tentava conter a mulher desesperada. Qual é o problema, senhor? – perguntou, com os olhos arregalados. Ordem de aborto. O menino nasceu sem autorização – disse o oficial que segurava Jimmy, confirmando a suspeita de Tom, que notou que os homens levavam no braço esquerdo uma braçadeira azul-celeste, com um símbolo branco que lembrava o formato dos continentes, e logo abaixo a sigla SS. Encosta ali no muro – ordenou o oficial mais alto, e Tom obedeceu. Isso. Agora fica aí, sem gracinhas – completou o líder da operação. O outro, claramente menos experiente, segurava Kate com dificuldade. No auge de seu instinto animal, segurá-la era tarefa árdua para o novato; finalmente conseguindo espaço suficiente para o golpe, Kate desferiu uma poderosa cotovelada nos seus testículos, derrubando-o imediatamente. Ah, tenha dó… – o líder lamentou a incompetência do parceiro, vendo a onça se aproximar com determinação para recuperar sua cria. Tom ensaiava uma reação, ainda processando todas as variáveis ali expostas, mas a mulher não parecia precisar de ajuda. Arrancou o filho dos braços do oficial, que não ofereceu resistência. Sua passividade, porém, escondia outra tática: depois do terceiro passo dado por ela, que se afastava de costas, fitando o carrasco, ele sacou sua arma e disparou, acertando o canto da coxa esquerda da mulher. Em um segundo, Kate e Jimmy estavam estirados no gramado, a três metros do outro oficial, que ainda tentava recuperar o fôlego, apoiando os braços no primeiro dos três degraus que levavam à cozinha. Por reflexo, Tom deu dois passos em direção ao atirador. Opa! Vai querer também, amigo? – perguntou o homem, apontando a arma para ele, que congelou, erguendo levemente os braços. Levanta, viado! – ordenou ao oficial mais novo, enquanto Tom se ajoelhava ao lado da amiga, que, sangrando, agarrava o filho aos prantos, como se apenas seu abraço pudesse protegê-lo do carrasco.

    Tom tentava entender o que poderia fazer para impedir a captura do menino, acudir a amiga e punir o oficial sádico. Não era faixa-preta de nada, estava desarmado e, mesmo se por um milagre conseguisse recuperar a arma de um deles, não sabia atirar. Drew havia tentado lhe ensinar em uma madrugada estranha uns meses antes, mas foi uma aula tão rápida… Seria possível? Chega de desculpas – pensou, com os olhos piscando uma cor vermelha. Todo esse debate interno havia durado cerca de cinco segundos, e agora ele estava decidido a reagir. Levantaria e iria até o Ford, onde encontraria seu revólver, que Drew

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