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O diário secreto da anorexia: a vida por trás do transtorno alimentar
O diário secreto da anorexia: a vida por trás do transtorno alimentar
O diário secreto da anorexia: a vida por trás do transtorno alimentar
E-book389 páginas5 horas

O diário secreto da anorexia: a vida por trás do transtorno alimentar

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Sobre este e-book

O Diário Secreto da Anorexia baseia-se em uma história real que conta detalhes desde a infância aos seis meses de internação hospitalar, na ala da psiquiatria com sonda enteral e muito sofrimento físico e emocional vivenciados pelo protagonista. Renan é um garoto diferente dos demais e que ama a Xuxa. Ele só quer ser aceito e com isso sofre muito bullying, o que desencadeia um quadro clínico de depressão e anorexia nervosa, que o deixa bem perto da morte.
IdiomaPortuguês
EditoraViseu
Data de lançamento18 de abr. de 2022
ISBN9786525404684
O diário secreto da anorexia: a vida por trás do transtorno alimentar

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    O diário secreto da anorexia - Renan Luiz Spila

    Prólogo

    Eu nunca pensei que algum dia escreveria sobre um assunto que tanto me assustava e que parecia estar tão longe de mim. Viver essa doença parecia impossível, até que ela chegou para assombrar minha vida, minha rotina e minha saúde.

    Sempre fui um menino muito tímido, bastante educado, estudioso ao extremo, fã da Xuxa, feliz na medida do possível.

    Eu fico me perguntando: Por que, Deus? Por que justo eu?, mas não encontro resposta. Essa doença é muito maldosa, ela me fez ficar escravo de mim mesmo, preso sem ter algemas.

    E hoje? Como estou?

    É uma luta... uma luta diária. Há dias que eu venço e muitos que perco. Muitos que acho que a dor acabou, mas ela continua ali, maquiada.

    É uma luta se olhar e se ver de um jeito que os outros dizem ser diferente. É uma luta se tocar. É uma luta sentir.

    Hoje, sigo o tratamento com terapia e psiquiatra. Estou desde 2015 longe de uma internação hospitalar, só com algumas intercorrências.

    Estou pesando menos do que quando saí do hospital, meu IMC está em torno de 17,5: é um pouco abaixo, mas às vezes como algo gostoso.

    Ainda sinto culpa ao comer, o pensamento de que estou engordando ainda é vivo, mas tento deixá-lo em segundo plano. É uma luta.

    Se hoje eu pudesse, tentaria começar tudo de uma maneira mais saudável, com preparo emocional para viver essa luta.

    Ainda não sou resolvido quanto a minha sexualidade, depois de ouvir tantas ofensas como bicha e viado, tenho medo de sofrer mais. Deixo aqui minha contribuição: seja mais do que você se vê no espelho, seja mais do que você ‘sente’ ser.

    Sabe de uma coisa que vou contar? A vida é bonita, só depende do ponto de vista. Eu ainda a vejo de um ponto torto, mas quero te alertar que você é mais que um corpo, que você pode ser feliz e saudável e tá tudo bem.

    Tá tudo bem. Tá tudo bem ser você.

    Permita-se ser feliz.

    Ame-se!

    Com todo meu amor,

    Renan Luiz Spila.

    A primeira humilhação

    Esta história teve início quando eu comecei a sofrer bullying, em 2005, ainda na quarta série. Para minha surpresa, a primeira pessoa que fez isso comigo foi minha própria professora. Era muito difícil entender, naquela época, como uma mulher adulta, com a responsabilidade do cargo que exercia, poderia fazer bullying com uma criança de dez anos.

    Era dia de prova. Lembro-me muito bem, pois eu havia passado o dia anterior estudando gramática. Eu estudava no período da manhã. Cheguei bem cedo na escola, como de costume, e levei meus resumos para revisar. Você deve estar se perguntando: Um menino na quarta série, estudando desse jeito? Como se fosse algo difícil! A prova era assim tão importante? Parece o vestibular! E você tem razão. Acabei me sacrificando demais por muito pouco.

    A prova de português, para a qual eu estava mais aflito, seria após o recreio, na primeira aula. Depois ainda teria prova de inglês, mas com essa eu não estava preocupado.

    Quando deu a hora do recreio, todos fizeram fila e saíram seguidos pela professora, que, até então, era um símbolo de respeito e autoridade máxima. Já no pátio, sentei-me com duas amigas para lanchar. Sentamo-nos bem em frente à sala dos professores. Levei meus resumos, para, assim, dar uma última estudada antes da temida prova.

    Terminei de lanchar e, no exato momento em que comecei a olhar o resumo, junto de minhas amigas, a professora veio até nós e pediu que eu e minha colega levássemos as provas xerocadas para a sala, antes do término do recreio. Aceitamos, claro, e levamos as provas do quarto ano do fundamental, inclusive as de português, para a classe.

    Chegando à sala, fizemos rigorosamente o foi mandado: colocamos as provas em cima da mesa da professora e voltamos para o recreio. Por ironia do destino, eu levava o pacote de provas de português, e minha amiga, as de história, que seria no dia seguinte. Colocamos tudo sobre a mesa da professora, descemos as escadas e voltamos para o pátio. Voltei exatamente para o lugar em que estava antes de fazer a gentileza para a professora. E, então, dei graças a Deus por ter sobrado tempo para ler mais uma vez meu resumo!

    Beija-flor… Beija-flor…

    Substantivo masculino, trissílabo.

    Beija-flor… Beija-flor…

    Eu não conseguia decorar a análise completa desse bendito beija-flor! No dia anterior, eu havia copiado da apostila inúmeras vezes, mas empaquei na palavra que representava essa minúscula ave.

    Uma professora se aproximou de nós e disse:

    — O que é que vocês estão estudando aí?

    Respondemos a pergunta que seria o passaporte para o início das humilhações em minha vida.

    Então, essa professora retrucou com um simples ah... e voltou para a sala dos professores. Segui-a com o olhar e percebi que a minha professora perguntou a ela o que dissemos e, depois de ouvir a resposta, fechou a cara.

    Tocou o sinal, acabou o recreio. Não tinha mais para onde fugir! Enfim, havia chegado a hora da prova. Eu era o primeiro da fila de volta para a sala de aula. Tentei puxar conversa com a professora, mas ela me ignorou completamente. Pensei que talvez ela estivesse com algum problema pessoal, mas jamais imaginei que eu seria o tal problema.

    Entramos na sala, sentamo-nos e ela ainda estava com a cara amarrada. Ela foi para a frente da turma e perguntou alto, olhando diretamente para mim:

    — Eu posso saber o que o senhor estava estudando?

    Eu, sem reação, respondi que estava revisando a matéria de análise de palavras, em especial a palavra beija-flor. O rosto dela foi ficando vermelho... vermelho... vermelho... Parecia uma bomba prestes a explodir!

    CABUM!

    E foi isso que aconteceu.

    — Ah, muito bonito! Peço o favor de levar as provas para a sala e você aproveita para dar uma olhada nas questões, não é? — disse ela, em tom jocoso.

    Eu não estava entendendo nada. Nem eu, nem minhas duas colegas que estavam comigo no recreio.

    Com a voz já alterada, ela continuou:

    — Pois o senhor não é homem o suficiente para assumir o que faz? O senhor deveria ter vergonha na cara. Não é digno de assumir o que faz? Que espécie de homem é você?

    Nesse momento, eu comecei a olhar para os outros alunos da sala e percebi que alguns já estavam rindo de mim.

    A professora aumentou ainda mais o tom de voz.

    — Eu teria vergonha de ser você. Você não é digno e, além de tudo, é mentiroso! Quem mais viu as provas? Hein?

    Fiquei sem reação. Será que é isso mesmo? Ela acha que vimos as provas?, pensei. Olhei para minha colega fixamente.

    — A senhorita Beatriz viu as provas com você? — indagou a professora.

    Não aparentei nenhuma reação, além de muita vergonha e indignação... Poxa vida, eu não tinha visto aquelas benditas provas! Ela estava fazendo um escândalo, e outras professoras começaram a aparecer na porta da sala, onde estava ocorrendo aquele circo, e paravam para olhar.

    — Vamos, assume! Tá aí a prova. Vamos, agora é só responder, você já viu mesmo! Vergonhoso! Que atitude mais indecente! — berrou ela.

    Comecei a chorar. Por que isso tem que acontecer comigo, Deus? Quero minha mãe!, pensei comigo. Saí da sala correndo, aos prantos. Desci a escada e fui até a diretoria. Estava muito envergonhado, pois simplesmente o segundo andar inteiro da escola tinha me visto sair chorando da sala e ouvido os gritos da toda poderosa professora do mal.

    Cheguei à sala da diretora e bati na porta. Normalmente ela fica aberta, mas bem naquele dia a diretora estava ocupada. Eu não conseguia me acalmar nem, ao menos, parar de chorar. Uma ajudante da escola me viu e sugeriu que eu me sentasse na sala dos professores. Também me ofereceu água e disse que ia chamar a enfermeira. Eu falei que não precisava, mas ela insistiu.

    As lágrimas não paravam de emergir de meus olhos. Senti uma sensação estranha, como se eu tivesse nojo de mim mesmo, ainda que eu não houvesse feito nada de errado.

    A enfermeira chegou e tentou conversar comigo. Eu estava passando muito mal. Meu coração estava disparado, uma sensação indescritivelmente horrível. Depois de muito tempo, a diretora foi até a sala dos professores para conversar comigo. Eu já conseguia falar, ainda que em meio a soluços – resultado de um longo período de choro.

    Conforme ia contando o que havia acontecido, alguns alunos fingiam beber água somente para espiar a conversa. A diretora ligou para minha mãe vir me buscar e, em seguida, pediu para a ajudante de coordenação ir até a sala pegar meus materiais. Senti-me aliviado de não ter que ir à classe novamente.

    Minha mãe chegou e, quando viu meu estado, ficou desesperada e nervosa por aquilo ter acontecido comigo. Senti que ela também estava com raiva da professora do mal.

    Cheguei em casa e tudo que fazia era chorar.

    Minha mãe ligou para meu pai, que trabalhava em outra cidade e voltaria somente à noite, e ele disse que conversaria melhor com ela assim que chegasse em casa.

    Meu pai ficou horrorizado com a atitude da professora, afinal, uma profissional da área da educação não deveria agir dessa forma criminosa com um aluno que não dava problema algum para a escola. Senti que ele também estava nervoso.

    Eles me perguntaram se eu gostaria de mudar de escola.

    Na hora, fiquei sem reação, pois, até então, eu jamais me imaginaria estudando em outro colégio.

    Fiquei com medo e respondi que não, mas também afirmei que naquela sala eu nunca mais pisaria, assim como também jamais falaria novamente com a bruxa, vulgo professora.

    No dia seguinte, todos os alunos, até mesmo de outras classes, vieram me perguntar o que havia acontecido e dizer que não era justo eu ter visto a prova.

    Não era justo eu ter visto a prova...

    Mas eu não havia visto nada! Era eu, então, o vilão da história? Deveria mesmo ter olhado aquela porcaria de prova, pensei.

    Minha imagem no colégio foi subitamente transformada. Um dia eu era o aluno nerd, que adorava estudar, e, no outro, o aproveitador de uma pobre professora que havia confiado num aluno que tirava boas notas.

    Mudei de sala, fui para a 4ª série B. Comecei a sofrer bullying de algumas pessoas da minha nova turma. Em dia de prova, eu ouvia várias piadinhas.

    — Cuidado com ele, professora!

    — Não vem olhar minha prova, hein?

    — E aí, Renan, já conseguiu colar hoje?

    — Está explicado por que ele vai bem nas provas!

    — Por que não contou antes que colava?

    Meu mundo caiu. Desabou, melhor dizendo. Comecei a pensar seriamente em mudar de escola, visto que absolutamente nada tinha acontecido com a professora bruxa. Eu fui o único prejudicado. Minha vida escolar havia sido arruinada a troco de nada.

    Contar esse acontecimento tem como objetivo alertar que uma simples atitude ou uma simples palavra pode levar qualquer pessoa para um mundo de depressão e até de transtorno alimentar. Precisamos estar cientes de que não conhecemos o interior dos outros e de que nossas ações ruins podem agravar um momento de fragilidade emocional e trazer consequências muito negativas. Além disso, professores são modelos para os alunos e devem tomar muito cuidado com suas atitudes, inclusive porque podem desencadear tristes processos de bullying, que destroem momentos importantes de aprendizado na vida de uma criança, fazendo com que consequências sérias ocorram num futuro não muito distante.

    Perdas irreparáveis

    No ano anterior a todo o tumulto e humilhação que já contei, que teve origem numa atitude impensada de uma profissional da educação, eu estava triste e deprimido. Minha avó, a Fina, tinha partido para o céu. Ela era a pessoa que sempre estava ao meu lado, fosse assistindo à rainha Xuxa, na telinha, ou como plateia nos meus shows particulares, cheios de músicas também da Xuxa.

    Quando ela faleceu, eu estava na terceira série.

    Eu morava numa casa que meus pais haviam acabado de comprar. Sabe quando a gente faz a escolha errada? Pois bem, foi isso que aconteceu. Dias depois de nos mudarmos, após uma longa reforma, começaram a aparecer escorpiões por toda a casa. Vários. Minha mãe ficava apavorada com cada um que aparecia, e isso acontecia quase diariamente.

    A casa era muito quente. Era um forno, melhor dizendo. A rua era deserta. Eu me sentia em uma espécie de casa dos horrores. O clima lá dentro era pesado, denso e triste. Parecia que aquele lugar tinha muita carga negativa. Eu puxava o ar e sentia como se alguém estivesse me sufocando.

    Além dos escorpiões, mal sabiam meus pais que, num dia de chuva, esse lugar tão temido por mim auxiliaria a piorar o estado de saúde da minha avó.

    O dia estava escuro. Não havia sol, e nuvens carregadas rodeavam o céu. Começou a chover muito forte. Percebemos que o ralo do corredor não estava dando conta de escoar tanta água. Começamos a nos preocupar.

    A água, então, começou a subir. Subiu tanto que transbordou e passou a entrar na casa. Foi uma correria daquelas! Colocar os móveis para cima, proteger os eletrônicos, pegar rodos e panos...

    A água foi invadindo toda a casa. Sala, quartos, cozinha, banheiros... tudo! Entrava água dos dois lados. Era desesperador. Eu via nossa cachorrinha Yuna se molhando e isso me partia o coração.

    Minha mãe e minha avó estavam desesperadas, com rodos e baldes nas mãos. Uma cena que me marcou muito foi ver minha avó molhada até a canela, descabelada e visivelmente cansada, com o rodo na mão, tentando fazer o possível para a água não subir até o nível da cama no quarto da minha mãe.

    Era muita água.

    Foram as horas mais terríveis que passei. No final da tarde, meu pai chegou do trabalho, também desesperado. Eles decidiram, então, vender a casa.

    Minha avó já tinha idade e a saúde bastante fragilizada; assim, ninguém vai tirar da minha cabeça que foi por culpa da friagem de toda aquela água que, tempos depois, ela ficou gripada e desenvolveu uma pneumonia.

    Lembro-me, como se fosse ontem, do último dia de vida da minha avó fora do hospital. Ela estava muito debilitada pela pneumonia. Acordamos cedo para levá-la ao hospital. Ela dizia que estava com fome e que queria muito comer sua sopinha de pão com café com leite, que sempre fazia pela manhã.

    Meus pais não a deixaram comer, alegando que, caso fosse necessário fazer algum tipo de exame, ela precisaria estar em jejum. Isso me partiu o coração...

    Eu estava me sentindo muito abalado por tudo o que estava acontecendo em minha vida. Nesse meio tempo, a casa já estava à venda, e toda hora recebíamos visitas de possíveis compradores para vê-la.

    A sensação era horrível. As pessoas invadiam a casa, abriam os guarda-roupas, mexiam em tudo sem nem pedir licença. Só faltavam abrir a geladeira!

    Uma vez, num sábado, apareceu uma família inteira, todos interessados na casa. O que o corretor havia se esquecido de nos informar é que não seria uma pessoa em casa, nem duas ou três... mas onze! Havia onze pessoas querendo entrar em minha casa. Era pai, mãe, avó, avô, criança, bebê, tia, tio, primos... Só faltou mesmo levarem o cachorro e o papagaio!

    Meu pai impediu que eles vissem a casa, para minha sorte. Eu me sentia invadido toda vez que isso acontecia. Minha casa não era um ponto turístico.

    Fui visitar minha avó no hospital. O ano estava só começando e tudo já estava muito triste. Na festa de ano-novo, minha avó tinha feito algo que nunca fazia: comeu bastante doce! Parecia que estava se despedindo dessas gostosuras.

    No hospital, quando entrei para visitá-la, ela logo começou a passar mal e vomitar, e, então, fui obrigado a sair do quarto. Dias depois, ela foi para a UTI. Eu e minha mãe íamos todos os dias ao hospital, mas eu não podia vê-la, já que a idade mínima para entrar na UTI era de treze ou quinze anos.

    Eu implorava para poder entrar. Minha mãe dizia que o lugar só tinha gente doente e que eu ficaria triste. Mais triste é não ver a Fina!, eu pensava.

    Um dia, o telefone tocou por volta das cinco da manhã. Eu tenho sono pesado, nunca acordo com barulhos alheios, porém daquela vez foi diferente. Eu me levantei. Eu senti. Então meu pai me deu a notícia de que minha avó tinha acabado de falecer.

    Devido à pneumonia, houve complicações no batimento cardíaco e ela não resistiu. Sabe qual foi minha sensação? Que eu estava vivendo um filme de horror!

    Lembro-me que começamos a nos arrumar bem cedo. Meu pai ligou para o serviço, informando o que havia ocorrido e que não iria trabalhar, e saiu para resolver os detalhes do velório.

    Eu fui ao enterro. Comprei uma rosa numa lojinha ao lado do Velório da Saudade. Eu só me lembro de um longo corredor, cheio de gente, e eu, ainda pequeno, chorando muito, com uma rosa na mão, indo em direção à minha avó.

    Ao vê-la, ela parecia estar dormindo. Na hora, eu ainda perguntei para minha mãe se ela não iria acordar, mas, infelizmente, isso jamais ocorreu.

    Eu tinha dó da minha avó. Ela teve dois filhos, o meu pai e mais um. Meu pai sempre fez tudo por ela e meu avô, que eu não cheguei a conhecer.

    A exclusão social

    Não sei ao certo o porquê me tornei um anoréxico. Logo eu, que sempre morri de medo das pessoas esqueléticas que apareciam na televisão em programas sobre anorexia. Agora eu consigo entender o motivo de estarem magras. Não é porque passavam fome, mas, sim, porque não conseguiam comer.

    Há uma diferença gigantesca entre passar fome e não conseguir comer. Passar fome consiste em não comer por algum motivo, como dieta para emagrecer ou jejum espiritual. No entanto, depois de um tempo, a pessoa sente a necessidade de sanar a fome de alguma maneira e, então, come. Não conseguir comer é um fato que vai além de passar fome por causa de um regime, por exemplo. A consequência de não conseguir comer é um danado sentimento de culpa, que invade a mente e parece incontrolável. Uma sensação horrível.

    Continuando a história… Depois de um tempo, conseguimos, enfim, vender a casa na qual perdemos minha avó. Meu pai perdeu muito dinheiro, incluindo tudo o que foi gasto na reforma, o fundo de garantia… Fez isso para poder vender o lugar que estava fazendo muito mal para nossa família.

    No mesmo ano em que perdemos a minha avó e tivemos a casa inundada, ainda fomos roubados na porta da escola. Um dia, quando minha mãe foi me buscar na saída do colégio, o nosso carro havia sumido. A sensação que ficou foi de vazio e um sentimento de incapacidade.

    Após vender a casa, mudamo-nos para um apartamento. Perdemos a tão sonhada casa própria e muito dinheiro. Agora, morávamos de aluguel novamente. Para piorar, nossa cachorra Yuna teve de ser sacrificada. Foi uma tristeza sem tamanho.

    Yuna era uma fox paulistinha muito, mas muito nervosa mesmo. Para vocês terem uma ideia, para ela tomar banho, era necessário sedá-la! O veterinário disse que ela não se adaptaria em um apartamento e sugeriu que ela tomasse uma medicação, através de uma injeção, para torná-la mais zen.

    Minha mãe confiou nele, mas mal sabíamos que ele estava, na verdade, procurando uma candidata para testar uma nova medicação. Ele nunca tinha feito aquilo antes, com nenhum outro animal. Por que ele teve que escolher justo a minha cachorra para fazer o teste? Já não bastava eu perder tanta coisa, ser humilhado na escola, ficar sem minha avó? Agora, de brinde, eu também tinha que perder minha cachorra?

    Depois do procedimento, Yuna ficou louca. Ela não nos reconhecia mais. Babava, batia a cabeça nas portas, avançava em todo mundo, latia até para sua sombra. Não teve jeito, ela também teve que partir, visto que estava sofrendo demais. Mamãe ficou muito deprimida, assim como todos nós.

    É muito difícil administrar as perdas. Isso eu aprendi com o tempo. O ser humano é movido a afeto, amor, carinho, riqueza. Perder um ente querido, dinheiro, casa, um animalzinho... Se tudo isso mexe com o psicológico de um adulto, imagine o que faz com uma criança.

    Mau pai só sabia se queixar das dívidas, e eu estava depressivo com tudo que tinha acontecido nos meses anteriores. Depois da humilhação causada pela professora, precisei começar um tratamento psiquiátrico, além de psicológico.

    Eu comecei a ter TOC, o famoso transtorno obsessivo-compulsivo. No meu caso era relacionado à limpeza e à organização. Eu passava horas limpando meu nariz, usava uma caixinha de cotonetes num único dia. Às vezes, eu me machucava tanto que chegava a sangrar.

    Quando sangrava, eu passava mal, porque não consigo ver sangue sem cambalear.

    Nessa época, também comecei a ter pânico de provas. Eu passava mal em dias de prova na escola. Chorava de soluçar. Era horrível! Meu coração disparava, e não havia remédio que me fizesse melhorar. Pelo contrário, só piorou. A partir da quinta série, eu não conseguia mais fazer prova em sala normal, junto dos outros alunos.

    Nessa fase da minha vida, surgiu uma pessoa muito importante: Rose, a coordenadora do ensino fundamental II.

    Eu pensava que essa segunda etapa do ensino fundamental seria melhor, visto que não só a coordenação era diferente, mas também os professores. Não que eu tivesse algo contra as professoras antigas, com exceção, claro, da bruxa que havia me humilhado.

    Assim começava uma nova etapa da minha vida: TOC, quadro depressivo em razão da perda da minha avó, mudança de casa, falta de dinheiro e o mais temível dos problemas: o início do bullying.

    A primeira experiência que tive com bullying na infância foi na segunda série.

    Havia um menino, dois anos mais velho que eu, que vivia rindo do meu jeito tímido de falar e de me portar. Certo dia, quando eu estava indo ao banheiro, não reparei que ele havia colocado o pé na minha frente, para que eu tropeçasse. Caí com tudo e fiquei com o braço enfaixado durante umas três semanas. Essa queda me fez perceber uma coisa: o ser humano pode ser muito cruel. Até então, eu não conhecia esse lado da vida.

    No início da quinta série, as coisas começaram a ficar mais complicadas. As tarefas aumentaram muito e, agora, eu tinha muitos trabalhos para fazer, além das provas.

    Comecei a estudar excessivamente. Passava cerca de doze horas por dia elaborando questionários e decorando-os. Nos finais de semana, acordava às seis da manhã para estudar, e isso durava o dia inteiro.

    Eu sofria demais. Chorava compulsivamente. Exigia muito de mim mesmo. E não me contentava em tirar boas notas – eu queria ser o melhor da classe, e eu conseguia.

    Com o passar do tempo, os professores foram me conhecendo melhor e eu comecei a ganhar vários certificados de destaque pelas minhas notas. Os professores me elogiavam na frente de toda a turma, pediam para eu responder as perguntas na lousa e buscar comunicados na direção, além de dar os famosos carimbos, que avisavam os pais quando o aluno tirava nota baixa ou não fazia tarefa.

    Assim, eu virei o queridinho da maioria dos professores.

    Isso fez com que eu ficasse cada vez mais exigente comigo mesmo. Nos dias de prova, eu tinha uma espécie de pânico, e a única pessoa que conseguia me acalmar era a coordenadora Rose.

    Ela foi um anjo para mim.

    A maioria dos alunos, principalmente os meninos, me via com outros olhos. Eles começaram a reparar mais em mim, principalmente nos meus defeitos. Como sou muito tímido, minha voz fica retraída, então uma turminha de garotos da minha sala começou a imitar minha voz, só para me sacanear e humilhar.

    Sempre fui muito certinho. Usava calça mais alta e com a camiseta para dentro. No recreio, os meninos começaram a me imitar e ridicularizar.

    O bullying foi aumentando. Agora, não eram só os meninos da minha sala que me humilhavam, mas a maioria dos meninos de todas as salas de todas as séries do colégio inteiro.

    Eu tentava reagir. Comecei a chamá-los de gentalha, mas só isso não bastava. Comecei a me dedicar ainda mais aos estudos, para que eles ficassem com inveja das minhas notas, visto que as deles eram péssimas.

    Apareceram as primeiras inimizades, e elas eram muitas. Ganhei o apelido de protegido dos professores, e os garotos mais sacanas começam a me chamar de bicha por eu ser muito caprichoso, tímido e nerd.

    Mas eu não dava trégua para eles. Passei a reclamar para a direção toda vez que alguém mexia comigo, e até mesmo quando não mexiam. Se atrapalhassem a aula, isso já era um motivo para eu ir reclamar.

    Naquela época, eu acreditava que não estava errado. Era a única arma que eu tinha para revidar as agressões. Comecei a ficar a cada dia mais excluído. O telefone de casa já não tocava mais para mim.

    Na aula de educação física, eu era sempre o último a ser escolhido, principalmente para jogos de queimada.

    Uma vez que me marcou muito foi quando só havia sobrado eu para ser escolhido. Quem estava escolhendo os jogadores era um dos meninos que adorava me caçoar. Ele, mais uma vez, não perdeu a oportunidade de me humilhar e perguntou à professora:

    — Tem como eu não escolher agora, professora? Meu time já está completo.

    Essa frase me marcou muito. Na hora, eu me senti um lixo. Era como se não bastasse ser deixado de lado o tempo todo na escola. Eu mesmo me enojo com o fato de ser tão ruim nos esportes…

    Representante de sala, queridinho das professoras, nerd, bom aluno, tímido, isolado – essa era a forma que eu me enxergava na quinta série.

    Um belo dia, ao me olhar no espelho, não gostei do que vi. Tive vontade de me esconder. Vontade de sumir. Senti, também, que estava começando a ficar depressivo. Percebi que não via mais graça nas coisas que fazia, na vida em geral.

    A exclusão social que eu vivenciava fazia muito mal para mim. Eu devia ter mudado de escola, eu realmente devia… Por mais que eu me esforçasse para me sentir bem, ali já não era meu lugar.

    Minha melhor amiga, Iris, ainda estava afastada de mim e magoada, e nossa relação estava estremecida. Para piorar, ela mudou de escola no final do ano. Comecei a me preocupar com o fato de que eu não a veria mais na sexta série.

    Houve uma vez em que fiquei muito preocupado. A professora passou um trabalho sobre o sistema solar e ninguém – eu repito, ninguém – quis fazer comigo! Fiz eu e meu pai. Comecei a me sentir cada vez mais sozinho, mas meu pai sempre me ajudava com a elaboração das maquetes.

    Simplesmente, o meu trabalho foi o mais elogiado. A partir daí, alguns colegas, que até então não me convidavam para nada, começaram a se reaproximar de mim. Era um grupo composto de meninas, na maioria. Elas eram minhas amigas, não falavam mal de mim e não me humilhavam, mas estavam afastadas.

    As gozações foram ficando cada vez mais frequentes.

    Por que eu tenho que passar por isso?

    Por que tenho que ser excluído?

    Eu não sou igual a todos?

    O ano letivo terminou, e eu entrei de férias em novembro. O que me consolava é que eles, aqueles garotos que insultavam e me humilhavam, teriam de ficar mais um mês na escola fazendo provas e mais provas de recuperação.

    Olhando para trás, percebo que ser excluído de uma forma tão brutal e impiedosa só contribuiu para a repulsa que eu tinha da sociedade e para o medo que adquiri de ser julgado de forma negativa. Hoje, vejo que a exclusão a que eu fui submetido durante muitos anos foi uma porta aberta para que eu entrasse num mundo escuro e depressivo, mas que, ainda assim, apesar de tudo, foi uma escolha minha.

    Uma criança feliz

    Eu tive uma infância tão maravilhosa! Creio que tenha sido a época mais feliz de toda a minha vida. Vivíamos numa linda casa, com quintal e um vistoso jardim, que costumávamos decorar no Natal. Sempre fui muito paparicado. Adorava ganhar presentes! Todo final de semana meu pai me dava algum brinquedo ou algo que eu quisesse.

    Era tão bom acordar e ir passear, sem ter preocupação com horários para me alimentar, poder comer coisas gostosas quando eu quisesse, me divertir, enfim, estar livre.

    Naquela época, eu tinha uma vizinha da minha idade. Nossas mães se conheceram quando ainda éramos bebês de carrinho e, assim, nos tornamos amigos. Hoje, somos como irmãos. Nossa amizade sempre foi algo que me confortava e animava. Chamo essa minha amiga carinhosamente de Fefê.

    Além de sermos vizinhos, estudávamos na mesma escola. Na verdade não estudávamos, já que estávamos no maternal, mas vivíamos grudados.

    Íamos à escola no período da tarde e, pela manhã, quase todos os dias, eu estava na casa dela ou ela na minha. Almoçávamos juntos, e, às vezes, depois da escola, ainda íamos um para a casa do outro, para brincarmos até o anoitecer. Era praticamente o dia inteiro de diversão, sem preocupações. Naquela época, não podia sequer imaginar que a vida seria tão difícil como está sendo hoje em dia.

    A mãe da Fefê virou minha segunda mãe; o pai dela, o meu segundo pai; e a irmã dela, outra irmã!

    Uma lembrança

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