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Kulkucaia, a bruxa
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Kulkucaia, a bruxa
E-book300 páginas3 horas

Kulkucaia, a bruxa

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Sobre este e-book

Na antiga Cusco, durante o apogeu do Império Inca, a princesa Sulemaica, irmã do imperador é acometida por uma avassaladora paixão. Hauka, a sua leal serva, tenta a todo custo amenizar o sofrimento da princesa, a qual estima como filha. No entanto, as suas ações levam a nobre senhora a um encontro com a inescrupulosa feiticeira Kulkucaia, desencadeando toda uma sequência de horríveis e nefastos acontecimentos Sangue, morte e um acordo firmado com as forças tenebrosas poderão trazer para a princesa a tão sonhada felicidade?Aventure-se no mundo mágico de Kulkucaia e seus aterrorizantes companheiros: Cangará — criado do ovo da ave de couro, o fantasma Galaufe — leal protetor da feiticeira, os anões Ugly e Igly, a criatura maléfica conhecida como Boca Cosida e o feiticeiro morto-vivo Anhangá-Açu.Kulkucaia, a bruxa — uma história arrepiante com os seres de Orokaba, o Mundo dos Encantados.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de mai. de 2022
ISBN9781526057433
Kulkucaia, a bruxa
Autor

Alexandre Menphis

Natural de Taboão da Serra- SP, onde reside e trabalha, Alexandre Menphis é Administrador de Empresas e Professor de Contabilidade e Custos.Amante nato da leitura, possui diversas obras de sua autoria entre elas o romance de fantasia: Jupiro e o Mundo dos Encantados e o livro de Contos: Contos Sinistros publicados pela Editora Biblioteca 24 Horas. Participou da Antologia Ondas Poéticas pela Darda Editora, através da qual foi ganhador de um concurso que escolheria um autor para publicação de um livro solo, foi quando surgiu a primeira edição de Vidas de Areia. Participou das antologias Pétalas (Darda editora), Sonhos Literários (Publicações Independentes), Corolário da Alma e Alvorecer (ambas pela Editora Porto de Lenha — Selo Cavalo Café) e Contos Fantásticos Hórus Vol.1 lançado em Portugal pela Editora Edições Hórus, com o conto: A Mulher da Cabeça Para Trás.Atualmente trabalha na trilogia A Rainha de Vênus e no livro Moara, a princesa do Sol.

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    Kulkucaia, a bruxa - Alexandre Menphis

    Parte I – O Feitiço de Kulkucaia

    1- Uma Princesa amargurada

    Cidade de Cusco, apogeu do Império Inca – cerca de cento e cinquenta anos antes da Invasão espanhola.

    A

    manhecia, e os primeiros raios de luz incidiam sobre os telhados de palha trançada, refletindo na camada fina de gelo que se acumulara durante a fria madrugada. Era uma claridade ainda tímida, resultante da transição das estações. Os sacerdotes já haviam prenunciado a chegada de tempos mais amenos, o que era aguardado por todos, excetuando uma nobre senhora que, da janela dos seus aposentos, indiferente, observava o despontar do dia. Seu nome, Sulemaika, uma das princesas do Império Inca.

    Filha do antigo Sapa Inca, já falecido, e irmã do atual monarca do império, a princesa Sulemaika jamais havia se casado ou se envolvido com alguém. As pessoas temiam seu olhar rígido, quase desprovido de emoções, e diziam que o seu coração era mais frio que a geada que açoitava a cidade durante as longas noites de inverno; diziam também que jamais haviam presenciado em sua boca um sorriso amistoso sequer. Passaram então a chamá-la de Princesa feia.

    Sulemaika, por sua vez, parecia não se importar. Não ostentava vaidade, nem se preocupava, como as donzelas da sua idade, em mostrar-se interessante ao sexo oposto. Os poucos pretendentes foram recusados, pois sabia que não passavam de manobras do seu bondoso pai. O velho monarca, que muito a estimava, terminava sempre aceitando suas recusas, assim como acatava seus pequenos desejos, sem jamais obrigá-la a nada. Sulemaika tornara-se adulta e, após a morte do genitor, os anos lhe trouxeram a solitária maturidade. Era respeitada, temida e odiada. Todavia, jamais se sentira amada ou se apaixonara por alguém. A única pessoa que lhe despertava algum afeto era sua leal serva, Hauka, uma senhora de meia-idade que a servira durante toda sua vida.

    No entanto, nas últimas semanas, um acontecimento mexera com o coração da princesa. Durante a comemoração do Inti Raymi¹, o imperador ordenara que fosse celebrado o noivado de Nayarak, sua filha mais velha, com o filho do kuraka² de uma aldeia distante. Convidado pelo soberano, o príncipe viera para Cusco. Quando conhecera o jovem Pumawari — era esse o nome do prometido da sobrinha —, Sulemaika sentiu o coração acelerar. Suas pernas ficaram trêmulas e uma palidez repentina tomou-lhe a face. Na primeira oportunidade, buscou a segurança dos seus aposentos. Contudo, por mais que procurasse se entreter, a imagem do belo guerreiro não lhe saía da cabeça. De madrugada, sentindo um calor sufocante, procurou por uma piscina com água fria. Quando mais calma, ao deixar o tanque de pedra, observou seu reflexo na água parada e sentiu um aperto tomar-lhe o coração. Estava velha! Como poderia, de alguma forma, chamar a atenção do ilustre guerreiro ou mesmo rivalizar com a beleza jovial da sobrinha? Suspirou aterrorizada frente aos próprios pensamentos: estaria apaixonada?

    Um misto de medo e rancor percorreu seu coração. Sentiu ódio por não ser bela, por sua mãe havê-la concebido assim — feia e sem atrativos — e desprezo aos deuses por submetê-la a tão injusto castigo. Por que não se encantara por alguém assim quando jovem? Quando bastasse apenas um pedido para que seu pai lhe atirasse aos pés o pretendente que escolhesse? Por que nessa época não aparecera alguém como Pumawari? Estariam os deuses se divertindo com seu sofrimento? Pensou na sobrinha, afortunada criatura, e sentiu um calor tomar-lhe a face. Nayarak podia ser fútil e desmiolada, mas seu corpo era jovem e encantador. De suas carnes o belo rapagão iria se fartar quando eles estivessem casados. Uma lágrima desceu-lhe pela face e, embora fria, parecia queimar o seu rosto.

    — Minha senhora, trouxe sua refeição, é preciso que coma um pouco e se agasalhe. — A voz da serva a despertou das suas abstrações. A mulher aproximou-se da princesa e tocou em seu braço.

    — Está gelada, minha senhora! Por favor, afaste-se dessa janela. O dia, apesar de claro, ainda promete ser muito frio.

    Sulemaika a olhou indiferente, mesmo sabendo que as palavras de Hauka estavam cobertas de razão. Seu corpo estava frio, embora seu coração parecesse queimar. Guiada por Hauka, sentou-se em um banco estofado com penas e coberto com pele de jaguar. Ignorando o desjejum, cobriu o rosto com as mãos e, descontrolada, deu vazão à sua angústia.

    A serviçal, preocupada, perguntou o que afligia sua senhora. Sulemaika soluçava. Por fim, acatando as insistências da serva, desabafou parte do seu infortúnio:

    — Padeço, bondosa Hauka, de uma dor que jamais pensei um dia sentir! No entanto, não lhe posso contar a razão desse meu sofrimento, apenas sei que me encontro irremediavelmente perdida.

    — Minha senhora, tenha confiança nos deuses e clame pela ajuda divina.

    — Não acredito que os deuses se importem com o que nos acontece. Por isso jamais lhes supliquei nada.

    — Então está na hora, minha senhora.

    — Não, Hauka, prefiro não me iludir.

    — A senhora não deve pensar assim, princesa, sempre há uma solução...

    — Não para o meu caso.

    — Sempre há, minha senhora, mas é necessário que acredite, digo isso por experiência própria. Já havia percebido uma tristeza em seu semblante e entendo que as dores causadas pelo coração sempre são as mais difíceis de serem suportadas. Não carece que me conte nada, apenas que não se deixe abater dessa forma.

    — Ah, estimada Hauka! Suas palavras me soam confortantes, embora não acredite que possam de alguma forma ajudar-me. Por outro lado, percebo em seu olhar que deseja confiar-me algo, mas temerosa, procura conter as palavras. Sempre fui condescendente contigo Hauka, e em contrapartida, tem se mostrado de minha inteira confiança. Dessa forma, se deseja me confidenciar alguma coisa, então diga.

    A velha serva pigarreou e, após olhar de soslaio para a porta, como a certificar-se de que ninguém se aproximava, prosseguiu:

    — Minha senhora, o que tenho a dizer é muito importante e espero que me perdoe caso a desagrade com este assunto, pois envolve forças misteriosas do outro mundo, daqueles que não mais vivem.

    A princesa a olhou curiosa e a serva prosseguiu:

    — Conheço uma pessoa que sabe lidar com essas forças poderosas. Ela saberá como atenuar a sua aflição e, se não lhe for possível extirpar todo o mal que lhe angustia, ao menos conseguirá amenizar o seu sofrimento.

    — Continue, mulher, embora não acredite nessas coisas, me diga quem é essa pessoa.

    — Na floresta, além do rio, vive uma senhora ermitoa, conhecedora de muitos mistérios. É ela portadora de dons e capaz de destilar os mais poderosos sortilégios...

    — Uma Kollahuaya³?

    — Não, minha senhora, Kulkucaia é muito mais. Ela saberá como ajudá-la. 

    A princesa se ergueu pensativa, os dedos se cruzando de forma inquieta, o olhar introspectivo.

    — Senhora?

    — Kulkucaia, você disse? — Parou por um instante, enquanto levava uma taça de ouro aos lábios. Hauka havia lhe trazido leite de lhama e milho-cozido.

    — Sim, minha senhora. Kulkucaia, é esse o nome da prestigiosa curandeira.

    — Já ouvi esse nome há muito, muito tempo. Recordo, quando criança, de minha bisavó falando sobre ela. Seria a mesma pessoa?

    — Creio que sim, minha senhora. Dizem que a mulher é velha como o tempo.

    — Nunca acreditei ou me imaginei procurando alguém assim — comentou a princesa enquanto finalizava o conteúdo da taça. — Mas sempre há uma primeira vez para tudo. — Calou-se pensando: até para o que os homens chamam amor.

    — Minha irmã Suyana, certa vez, procurou pelos serviços da senhora Kulkucaia, quando se viu apaixonada pelo nobre chefe da guarda.

    — O meu primo, o comandante Acoapate? Mas eles não são casados?

    — Sim, minha senhora, mas minha irmã teve trabalho com o comandante. Ele não queria casar com ela, não.

    — Como assim? Não me esconda nada.

    — Ela tinha confiado sua mocidade a ele, que lhe prometera casamento. No entanto, após conseguir o que queria, Acoapate a abandonou, passando a se interessar por uma donzela mais jovem e mais bem-apessoada. Desesperada, Suyana recorreu à Kulkucaia, que lhe deu o prazo de uma noite para que o homem voltasse a procurá-la.

    — Verdade? Então...

    — O comandante apareceu no dia seguinte. Trouxe-lhe presentes: uma lhama gorda e bem-tratada e uma mantilha de lã de fino acabamento. Dizia-se apaixonado. Em pouco tempo os dois estavam se casando.

    — Mas talvez Acoapate gostasse mesmo de sua irmã e tudo não tenha passado de uma feliz coincidência.

    — Não, minha senhora, o danado já falava em casar-se com a outra, a filha de um homem de posses e muito mais bela que minha irmã. Não fossem os préstimos de Kulkucaia, eles jamais teriam se casado!

    — E a rival, a tal jovem? Ela nunca voltou a procurar Acoapate?

    — Ora, para isso o feitiço de Kulkucaia também foi decisivo. Três luas após o casamento da minha irmã, a tal rapariga foi encontrada morta em seus aposentos, com a garganta roxa, como se durante a madrugada mãos invisíveis tivessem lhe estrangulado — respondeu Hauka com ar de riso.

    Sulemaika deu uma gargalhada como há muito tempo não fazia.

    — Ah, Hauka, Hauka! Só você, com suas histórias, para desanuviar os meus ânimos!

    — Então, a senhora se decidiu a ir?

    — Sim, Hauka, e você irá comigo. Avise o comandante Acoapate. Peça-lhe que me prepare um pequeno séquito, acredito que cinco homens será o suficiente. Amanhã à noite seguiremos para o local.

    — Sim, minha senhora.

    — Hauka, não se esqueça: boca fechada e avise o Acoapate para ser discreto. Não quero que ninguém fique sabendo, muito menos comentando por aí.

    — Ninguém saberá, minha senhora, lhe prometo.

    Quando a mulher deixou os aposentos, Sulemaika sentou-se, pensativa. A possibilidade do encontro com a misteriosa anciã havia trazido um fio de esperança ao seu desencantado coração. Suspirou fundo, o dia prometia. Era o último dedicado às celebrações a Inti. Mais tarde iria reencontrar o formoso príncipe aimará ao lado da desagradável sobrinha. Que os deuses fortalecessem sua alma!

    2 - No antro da bruxa

    O pequeno grupo seguia noite adentro guiado pelos raios emanados por Mama Quilla, a Deusa da Lua. Caminhavam em silêncio, cinco guerreiros bem armados e duas mulheres encapuzadas, a princesa Sulemaika e sua serva Hauka. Ao se aproximarem da margem do rio, Hauka emitiu três assobios imitando alguma ave noturna. Logo, dois vultos surgiram das sombras. À primeira vista pareceram dois curumins, mas ao se aproximarem, percebeu-se, na verdade, serem dois anões de semblante horrendo e disforme.

    — Procuramos pela senhora Kulkucaia — dirigiu-se a mulher a um dos anões.

    A criatura deu sinal para que Hauka e seu grupo o acompanhasse. Seguiram então por um caminho estreito no meio do mato espesso que margeava um rio. Um dos anões ia sempre à frente, enquanto o outro se incumbia de orientá-los para que não pisassem em pontos perigosos, como zonas de areia movediça, pântanos infestados por víboras e jacarés, e nichos com teias de aranhas peçonhentas e mortais. Após o longo e apavorante trajeto, saíram diante de uma ponte de cordas, à qual, cautelosos, atravessaram. O anão os informara para que não olhassem para baixo, era um despenhadeiro assustador. Após uns cinquenta passos, avistaram, oculta pela vegetação espinhosa, a entrada de uma caverna. Era ali o antro da feiticeira.

    A princesa tinha o coração apreensivo. Acostumada com a segurança do palácio, as poucas vezes que viajara era sempre guarnecida por um grande séquito, por isso, vez ou outra, passava por sua cabeça se fora sábia a sua decisão. Nessas horas apertava mais forte a mão da serva fiel, que a confortava com o olhar.

    Uma figura portando uma tocha acesa os recepcionou na entrada da gruta. Todos sentiram certa apreensão diante da mal-encarada senhora de cabelos esbranquiçados, presos por um gorro de lã já gasto pelo tempo. Do pescoço um chumaço de colares de dentes e unhas de preguiça caía sobre o colo largo.

    — Seja bem-vinda à humilde morada de Kulkucaia, princesa Sulemaika.

    Sulemaika sentiu o rosto corar. A velha de aspecto milenar a havia reconhecido.

    — Por favor, entrem. Não é aconselhável que permaneçam do lado de fora — observou Kulkucaia em direção aos guerreiros. — Dentro de minha caverna estarão seguros. 

    Os homens procuraram o semblante do comandante. Estavam assustados, os quéchuas temiam e respeitavam o mundo oculto. A princesa acenou para que ouvissem a anciã e todos entraram. Kulkucaia pediu para que eles aguardassem em uma espécie de sala de espera, onde havia bancos feitos de troncos de árvores e moringas com água fresca. A princesa e sua serva acompanharam a idosa por um túnel até outro compartimento, onde uma mesa e bancos rústicos de toras as aguardavam.

    Kulkucaia trajava uma túnica andina de tecido cru, a qual cobria seus fartos seios e deixava os volumosos braços à mostra, e sobre os ombros, um xale de lã de alpaca. Nos pés um calçado surrado de fibra vegetal.  Ao conferir os presentes que Hauka trouxera em um bornal, esboçou um largo sorriso na cara rechonchuda. Eram víveres, como milho, mel, batatas, carne assada, além de mantas de lã de vicunha e um par de sandálias de couro de lhama.

    — Ah! Como posso agradecer sua amável gentileza, princesa Sulemaika? De todos os presentes, os que mais me apetecem são esses calçados. — A mulher sentou-se para conferir se serviam. — Odeio andar descalça. Os que sua irmã me presenteou, cara Hauka, há muito se foram.

    Os calçados ficaram perfeitos e a bruxa, satisfeita, serviu às suas visitantes, em duas cuias de cerâmica, um líquido grosso e esbranquiçado.

    — Não carece se preocupar, senhora Kulkucaia — respondeu a princesa, sem perceber o semblante ansioso de sua serva, a ela dirigido.

    — Carece sim, minha princesa. É leite com ovos de tracajá. A senhora precisa renovar as forças, pois o feitiço que irei conjurar necessita de que esteja forte e bem alimentada.

    — Mas, eu...

    — Beba, minha senhora, é preciso — disse Hauka levando o conteúdo à boca e, de uma vez só, esvaziando o recipiente. — É até bom.

    — E necessário — completou a bruxa. — A senhora deve confiar no que digo, princesa. Só assim poderei trazer aos seus pés aquele que, de uma hora para outra, roubou a paz do seu coração.

    A princesa sorveu todo o conteúdo da cuia. Quando terminou, mesmo procurando disfarçar, sua cara não era das melhores. Kulkucaia, que observava atenta, não conteve o riso. Por fim, serenando o semblante, comentou:

    — Não a acho feia como sempre disseram.

    A nobre sentiu a face corar. A bruxa, percebendo, disse mirando em seus olhos:

    — Sinto que uma grande paixão lhe corrói a alma, princesa e sei como atenuar o seu sofrimento.

    — Senhora Kulkucaia, é tudo o que mais desejo.

    — Muito bem! Por favor, queira me acompanhar. Se preferir, Hauka pode aguardar aqui. — A princesa fez um gesto para que a serva a acompanhasse e a bruxa sorriu. Afastando uma cortina feita de palha de totora, Kulkucaia levou suas acompanhantes a outro ambiente, uma espécie de laboratório de bruxarias.

    Era uma área ampla, onde havia diversos balaios de palhas, bichos ressecados e pendurados: cobras, ratos, raposas, jacarés; assim como grande quantidade de ervas secas. Jarras, alguidares e potes de barros jaziam por sobre uma mesa de toras. Convidada a sentar-se, a princesa se posicionou de frente à anciã. Entre elas, sobre a mesa tosca a bruxa acomodou uma faca negra de obsidiana e um alguidar de barro, onde despejou o conteúdo de um dos potes. Era um líquido azul e perfumado. Em seguida pegou a mão direita da princesa e a mergulhou nesse líquido, enquanto recitava encantamentos. Um vapor acinzentado desprendeu-se do recipiente.

    A princesa sentiu o corpo estremecer, a bruxa deu sinal para que ela retirasse a mão do vasilhame e a enxugasse com um trapo que havia sobre a mesa. Hauka auxiliou a sua senhora, preocupada com a palidez que tomara o semblante da princesa.

    Kulkucaia alheia, observava o interior do alguidar, o líquido mudara de cor, tornando-se avermelhado. 

    — Muito bem! — monologou a anciã após um breve período de silêncio. Erguendo os olhos em direção à princesa disse:

    — Cuspa, minha senhora.

    Sulemaika olhou, indecisa.

    — Cuspa na vasilha — repetiu a bruxa enquanto, com uma das mãos, buscava por um dos cestos de palha que estavam próximos. Assustada, a princesa viu que algo se mexia dentro dele.

    — Cuspa, princesa! — Sulemaika obedeceu.

    A velha retirou a criatura, que a princesa percebeu ser um morcego. Com a faca negra decepou a cabeça do animal. O sangue caiu no vasilhame desprendendo um estranho chiado. Uma lufada de vento, surgindo de repente, ameaçou apagar as chamas das lamparinas de gordura.

    — Chame o nome dele três vezes, minha senhora.

    A princesa ouviu indecisa. Mas um novo comando da anciã a fez dizer quase gritando o nome do rapaz:

    — Pumawari! Pumawari! Pumawari!

    Hauka ouviu, surpreendida. Era pelo noivo da sobrinha que a princesa estava apaixonada! Conteve os pensamentos, surpreendida com uma névoa que se desprendia do alguidar da bruxa e aos poucos, adquiria a forma de um homem.

    Sulemaika não conseguia acreditar. Era Pumawari, o príncipe aimará que surgia à sua frente. Ao lado do rapaz, outra figura, mas de aspecto luminoso, começou aos poucos a aparecer. Kulkucaia arregalou os olhos e gritou:

    — Você não! Não o chamei aqui. Desapareça!

    Ao grito da anciã, as lamparinas se apagaram e um frio intenso tomou conta do local.

    A princesa, sacudindo o corpo, como se mergulhada em um transe, caiu ao solo. Hauka correu, tateando à sua procura, no escuro horrível que tragara o local. Era assustador o barulho dos bichos enlouquecidos tentando escapar dos balaios. 

    A claridade propícia de uma luz surgiu aclarando o ambiente; era um dos anões com uma lamparina. O semblante de Kulkucaia estava assustador. Procurando se recompor, dirigiu-se à princesa, agora restabelecida:

    — Um espírito iluminado protege o rapaz. Ele jamais virá para a senhora. — A princesa a olhou desapontada, Kulkucaia prosseguiu: — Também não posso lhe aplicar um feitiço da juventude, pois seu corpo se encontra enfraquecido.

    — Como? Minha senhora, do que está falando?

    Hauka observou, preocupada. A bruxa, erguendo o rosto e fixando fundo nos olhos da princesa, respondeu:

    — Quisera não ser preciso dizer-lhe isso, princesa, pois me afeiçoei à senhora, mas não posso ocultar que

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