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Dança com demônios: A rainha da noite
Dança com demônios: A rainha da noite
Dança com demônios: A rainha da noite
E-book621 páginas7 horas

Dança com demônios: A rainha da noite

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Sobre este e-book

Um novo inimigo espreita nas sombras, esperando o momento certo para ocupar seu lugar no palco sangrento

Para Jéssica de Ávila, deixar a cidade natal parecia ser uma boa perspectiva para construir seu futuro longe dos sombrios segredos de sua família. No entanto, questões mal resolvidas do passado surgem mais cedo do que ela esperava.
Na estrada, sombras de um antigo inimigo de seus ancestrais aguardam por ela.
Em Dança com Demônios: a rainha da noite, antigos segredos serão revelados, pesadelos revividos e sangue derramado. Criaturas da noite não deixarão Jéssica em paz, manipulando-a e recrutando-a para um plano supremo, em uma guerra ancestral.
Conduzida a um momento decisivo, deverá escolher o caminho capaz de definir seu futuro e o de toda a humanidade...
Ninguém mais será o mesmo. E quanto a Jéssica?
IdiomaPortuguês
Data de lançamento13 de jun. de 2022
ISBN9786555614176
Dança com demônios: A rainha da noite

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    Dança com demônios - Cristiano Halle

    1

    Cafelândia. Dias atuais.

    Abatalha em Cafelândia fora violenta. Quando tudo parecia estar chegando ao fim, um novo inimigo, até então à espreita nas sombras, apenas esperando o momento certo de tomar seu lugar no palco sangrento, surgiu. Nem mesmo a ocupante de uma caminhonete amassada, seguindo por ruas desertas em direção à saída da cidade, estaria livre de um futuro muito mais aterrorizante.

    No meio da madrugada, essa caminhonete seguia devagar pela estrada deserta, seus faróis mal iluminando o caminho, enquanto as luzes da cidade se tornavam cada vez menores em seus espelhos retrovisores. Por fim, desapareceram por completo. Dentro do veículo, a determinação de antes da jovem motorista, quando tomara sua decisão de sair da cidade e se despedira de Raquel, já não era mais tão forte. Aos poucos, essa força impulsiva transformava-se em dúvida sobre ter feito a escolha certa. Depois, em remorso.

    O som de um tiro reverberava sem parar na mente de Jéssica. A imagem de sua irmã caindo da torre da catedral repetia-se diversas vezes, fazendo-a se sentir pior. A culpa por não ter feito nada para salvá-la a consumia. Lágrimas irromperam pelo canto de seus olhos. O que a jovem mais gostaria naquele momento era de uma nova oportunidade de mudar tudo.

    Por fim, uma tristeza avassaladora a invadiu. Mergulhada em seus próprios devaneios, Jéssica mal conseguia manter o veículo em sua faixa na rodovia. Os feixes de luz corriam de um lado para o outro sobre o asfalto à medida que ela ziguezagueava. Quase invadiu uma fazenda de um dos lados da estrada ou caiu em uma enorme vala do outro. Por sorte, com uma guinada, conseguiu controlar a tempo, evitando o acidente... para quase entrar em outro. Repentinamente, intensas luzes ganharam vida na estrada escura às suas costas ao mesmo tempo em que uma buzina ensurdecedora chegou aos seus ouvidos. No segundo seguinte, o som de uma freada brusca. Por pouco, muito pouco, o outro carro não batera na traseira da caminhonete.

    Jéssica assustou-se com a buzina, o som da freada brusca às suas costas e as fortes luzes em seu espelho retrovisor, cegando-a. Tudo o que ela conseguia ver era o clarão emanado do veículo atrás dela. A claridade contra os seus espelhos retrovisores era tão intensa que ela nem sequer conseguia enxergar muito da rodovia à frente. Se a estrada fizesse curva, Jéssica não conseguiria ver com clareza. Se ela estivesse andando em linha reta ou dirigindo lentamente para um dos lados da estrada, também não saberia, tamanha a desorientação provocada pelas luzes.

    Recuperando-se do choque, Jéssica reclamou para si mesma, em voz alta:

    – Está bem, eu já entendi! Agora pode apagar essa luz.

    Para se livrar do desconforto das luzes, Jéssica desacelerou a caminhonete, esperando que o outro carro desviasse e, por fim, passasse por ela.

    Se fosse assim tão fácil...

    Em vez de desviar, o carro bateu de leve na traseira da caminhonete; o som de ferro arranhando ferro soou estridente em meio ao ruído dos dois motores conforme a empurrava. Jéssica sentiu a trepidação do impacto. O volante girou sozinho entre suas mãos, desgovernando o veículo enquanto ela era empurrada por um desconhecido.

    O que ele queria, Jéssica não sabia. Mas tinha certeza de que coisa boa não era.

    Lutando para se manter no pouco que conseguia enxergar da estrada, Jéssica estreitou o olhar e acelerou, determinada a se livrar daquela ameaça, fosse lá quem fosse. À medida que ia ganhando velocidade, o contato entre os dois veículos tornou-se inexistente. Jéssica recuperou o controle da caminhonete e acelerou ainda mais. Aos poucos, as luzes se afastavam, porém não o suficiente para que ela se visse livre de quem a perseguia.

    Um pouco mais distante, Jéssica conseguiu identificar, pelo espelho retrovisor central, quatro holofotes colocados sobre a capota do que parecia ser uma caminhonete. Para seu alívio, eles estavam ficando cada vez mais distantes. Aos poucos, ela estava conseguindo se afastar de seu perseguidor. Porém, não como gostaria. Sua vantagem crescia muito vagarosamente. Naquele ritmo, seriam necessários muitos quilômetros para conseguir se livrar dele. A não ser que ele desistisse, o que não parecia estar acontecendo, por mais que aumentasse a distância entre os dois veículos.

    Jéssica precisava fazer algo. Entrar em alguma cidade, talvez, ela pensou. Ou em alguma estrada de fazenda. Havia muitas saídas de acesso ao setor rural. Bastaria fazer uma curva brusca e provavelmente seu perseguidor não teria tempo de reação para fazer o mesmo.

    Para sua infelicidade, porém, a caminhonete começou a perder velocidade. O motor, antes gritando em sua potência máxima, tornava-se menos ruidoso. O terreno, até o momento plano, começava a se elevar. O veículo não conseguia mais manter o ritmo de antes. As luzes cresciam novamente em sua traseira. Se ela fosse fazer alguma coisa, teria de ser agora.

    Todos os seus planos, porém, ficaram apenas em pensamento. Ela não teve tempo de fazer nada além de segurar firme no volante e tentar controlar a caminhonete quando seu perseguidor mais uma vez bateu contra sua traseira, com mais força. Seu veículo dançava de um lado para o outro conforme era empurrado morro acima.

    Jéssica tentou frear. Fumaça começou a sair das rodas à medida que ela tentava segurar o veículo de trás. O pedal tremia sob seus pés. A dança da caminhonete tornou-se mais intensa. O volante em suas mãos suadas forçava virar de um lado para o outro, acompanhando o movimento do veículo de trás. Como não era uma boa ideia continuar freando, Jéssica soltou o pedal, deixando-se mais uma vez levar pela força que a impulsionava. Tudo o que podia fazer no momento era se manter firme na estrada enquanto pensava em outro plano.

    Desesperada, Jéssica sentia que estava perdendo o controle. As rodas começavam a derrapar de leve sobre o asfalto, com a caminhonete inclinando-se para um dos lados. Se continuasse assim, ela rodaria. E se isso acontecesse, estando naquela velocidade, com toda certeza, capotaria e teria pouca chance de sobreviver. Mas o que fazer? – Jéssica se perguntou, com os dentes cerrados enquanto tentava a todo custo manter a aderência.

    Quase no final do aclive, a surpresa: as luzes atrás dela se apagaram. A pressão contra a traseira de sua caminhonete cessou. Livre de seu perseguidor, Jéssica pôde recuperar o controle. Só não conseguia entender o porquê de ele simplesmente tê-la deixado ir.

    A resposta veio no momento em que o terreno ficou plano. À frente, vários carros de diversas cores e modelos bloqueavam a rodovia, todos batidos. Alguns pegavam fogo, as chamas tremeluzentes iluminando boa parte da estrada. Outros estavam capotados. Sobre o asfalto, corpos de homens, mulheres e crianças jaziam, ensanguentados; seus olhares sem vida fitando a calmaria das estrelas a céu aberto. Um deles, em particular, chamou a atenção de Jéssica nos poucos segundos em que seus olhos caíram sobre ele. Ajoelhado no asfalto, ao lado de um veículo todo amassado, com a porta aberta, estava um homem com quase dois metros de altura. Ele era troncudo e estava com seus musculosos braços desnudos a partir de cortes na altura dos ombros da jaqueta de couro que usava. Ele se debruçava sem nenhuma preocupação sobre o cadáver de uma jovem morena.

    Assustada, Jéssica pisou forte no freio. Suas mãos seguravam firmemente o volante, tentando controlar o veículo. A traseira de sua caminhonete dançou na rodovia, os pneus deixando marcas no asfalto. O cheiro de borracha contaminou o ar ao redor. O som da freada foi ouvido a distância. O homenzarrão levantou o olhar do cadáver em seus braços e virou o rosto a tempo de mirar a frente da caminhonete a poucos metros. De sua boca aberta, sangue fresco escorria por seu queixo e pescoço até manchar a gola da jaqueta de couro. Duas presas pontiagudas, fixas à arcada superior daquele homem, reluziam contra as luzes dos faróis. Um rugido gutural saiu de sua garganta, sobrepujando todo o som da freada, segundos antes do veículo se chocar contra ele.

    Com o impacto, a frente da caminhonete dobrou-se em torno do homenzarrão, abraçando-o. Fragmentos de peças de metal, plástico e vidro dos faróis espalharam-se pela rodovia. Uma nuvem branca irrompeu para o ar a partir do que outrora fora o radiador. A traseira da caminhonete levantou alguns metros. A arma, até então sobre o banco, caiu no assoalho. Jéssica foi jogada contra o volante, onde bateu a cabeça com força, abrindo um corte profundo em sua testa. Sangue começou a escorrer do ferimento.

    Conforme a traseira da caminhonete caía em direção ao asfalto, Jéssica era jogada contra o encosto do banco, antes de escorregar de lado até o assento; um de seus braços pendia até o assoalho. Sangue escorria pelo ferimento aberto em sua testa, manchando o estofamento do banco antes de pingar no carpete do veículo.

    Apesar da gravidade do ferimento, o peito de Jéssica subia e descia, acompanhando o ritmo nervoso de sua respiração. O coração batia acelerado. Os olhos arregalados miravam o teto da caminhonete. A cabeça doía. Por instinto, ela levou uma das mãos ao ferimento. Seus dedos se encheram de sangue, mas, ao tocar o corte, não sentiu ser tão sério assim.

    Estou viva! – pensou, não acreditando em como conseguira sair praticamente ilesa de um acidente tão grave.

    A imagem daquele homenzarrão com sangue em torno da boca e duas presas pontiagudas não saía de sua cabeça. Um pensamento invadiu sua mente contra sua própria vontade: vampiro!

    As histórias vampirescas que sua irmã tanto lhe contava antes de dormir pareciam ficção. Jéssica nunca acreditara em nada do que fora dito por Janaína, pois sabia que se tratava apenas de entretenimento, um momento agradável entre irmãs. Mas, depois de ver aquele homem e sua expressão, a jovem não tinha mais tanta certeza se as histórias eram apenas fictícias. Havia, naquela figura atropelada por ela, algo muito parecido com tudo o que sua irmã outrora lhe contara.

    Com a mente dividida entre a imagem ameaçadora do homenzarrão e as lembranças antigas, Jéssica se recordou da noite em que, sem ser vista, ouvira uma conversa de seu pai com a mãe e a irmã. Termos como vampiros e Ordem de Ettore foram ditos várias vezes. Na época, ela acreditara se tratar apenas da discussão sobre um filme barato a que os três teriam assistido na televisão. Mas, depois do que acabara de passar e das recordações das histórias contadas por Janaína, Jéssica tinha fortes argumentos para deixar sua mente vagar pela possibilidade de uma nova realidade: a da existência de vampiros.

    Um ruído próximo, vindo de algum lugar à frente da caminhonete destruída, tirou Jéssica de seus devaneios. Com a respiração densa e os olhos ainda arregalados pela adrenalina do acidente, ela se ergueu do banco, ignorando a dor na cabeça, apenas o suficiente para conseguir enxergar na direção de onde desconfiava ter tido origem o barulho. Colocando apenas os olhos por cima do painel todo destruído da caminhonete, a jovem apenas viu a água do radiador arrebentado fluindo com pressão para o alto.

    Você está imaginando coisas, Jéssica – ela pensou, tentando ao máximo se manter na realidade e não se deixar levar pelas histórias de sua irmã ou pela conversa ouvida. Não tem como aquele homem ter sobrevivido. Além do mais, tudo aconteceu muito rápido. O que eu vi segundos antes do acidente pode ter sido apenas fruto da minha imaginação.

    Jéssica estava prestes a deixar o alívio tomar conta de si quando um braço desnudo irrompeu pelo meio da água jorrando e bateu sobre os destroços do capô da caminhonete. Um gemido grave chegou aos seus ouvidos logo na sequência, como o de alguém se esforçando para ficar em pé. Lentamente, à medida que o homenzarrão se levantava, um vulto negro ganhava forma por trás da cortina de água: alto, troncudo, musculoso.

    Como ele ainda está vivo? – Jéssica pensou. E o mais importante: como ele conseguira parar a caminhonete em alta velocidade, fazer esse estrago todo e sair ileso? A palavra vampiro mais uma vez lhe invadiu a mente, contra sua vontade, fazendo-a pensar. Aquela figura, nos poucos minutos que se passaram, tinha demonstrado habilidades inatas às de um vampiro: força, desejo por sangue, autocura e, consequentemente, imortalidade. Mais do que nunca, Jéssica estava inclinada a acreditar que sua família sabia muito mais do que havia lhe contado. Ela, a contragosto, estava inclinada a acreditar que não foram apenas histórias inventadas, afinal de contas.

    Repentinamente, o homenzarrão virou a cabeça para a esquerda, como se olhasse através da cortina de água para uma assustada Jéssica dentro da caminhonete. Um grito gutural, carregado de ódio e sede de vingança, saiu de sua boca. Assustada, Jéssica abaixou a cabeça dentro da cabine, se escondendo. Ela esperava que aquele homem não a tivesse visto. Torcia para que ele acreditasse em sua morte e a deixasse em paz.

    Alguns segundos se passaram sem qualquer sinal de ameaça. Tomando coragem, Jéssica levantou a cabeça por cima do painel apenas o suficiente para ver se aquela figura ainda estava lá. Para seu alívio, o homenzarrão havia desaparecido, colocando novamente em xeque os pensamentos da jovem sobre vampirismo.

    Deixando-se cair mais uma vez contra o banco estofado da caminhonete, Jéssica se permitiu sorrir, aliviada, acreditando ter sido tudo coisa de sua cabeça.

    Mas ela estava enganada...

    Com um barulho ensurdecedor, a porta do lado do motorista foi arrancada com violência e jogada de forma displicente contra a estrada. Mãos enormes e fortes irromperam da escuridão ao redor e a agarraram pelos tornozelos. Jéssica tentou lutar, chutando desesperadamente, mas seus ataques não faziam nem cócegas no agressor. Ela sabia disso. Seu objetivo não era mesmo se livrar da ameaça. Ela estava apenas causando uma distração enquanto virava o tronco de lado e suas mãos tateavam a escuridão do assoalho.

    Quando as mãos fortes largaram seus tornozelos e a agarraram pelos joelhos, prontas para puxá-la para fora, Jéssica endireitou-se no banco e disparou uma, duas, três vezes. Não se viu nenhum clarão característico. Nenhum som de disparo ecoou. Apenas o fraco tic tic tic de uma arma descarregada, enquanto o gatilho era apertado diversas vezes por uma jovem nervosa. Jéssica havia pegado de sua irmã morta uma arma sem balas.

    A tentativa de matá-lo apenas deixou o algoz mais irritado. Dobrando-se um pouco para a frente, enquanto ainda segurava com firmeza os joelhos de sua próxima vítima, o rosto do homenzarrão saiu da escuridão completa, permitindo a Jéssica vê-lo com mais clareza. Seu rosto estava vermelho de ódio. De seu largo nariz, o ar exalado emanava um ruído, entrecortado pelas bufadas do homem. As veias e artérias pulsavam em sua cabeça, visíveis principalmente na porção inferior, onde os cabelos eram mais curtos, no estilo militar. Um grito gutural saiu de sua boca; os dois caninos à mostra reluziam na pouca claridade da cabine. Os enormes músculos de um pescoço troncudo moviam-se enquanto o vampiro gritava.

    Sem ter mais como se defender, Jéssica, em um ato de desespero, atirou a arma sem balas na direção da cabeça do homenzarrão. Com reflexo apurado, ele apenas desviou. Irritado, apertou com mais força os joelhos dela e a puxou com violência. O corpo de Jéssica deslizou pelo banco; seu grito de desespero sendo o último som a ecoar pelo interior da cabine antes de se perder na noite estrelada.

    2

    Enquanto Jéssica se deparava com seu cruel destino, cinco figuras vestidas com mantos negros, os rostos escondidos pelo capuz jogado sobre as cabeças, entravam em Cafelândia pelo leste da cidade. Despreocupados com qualquer ameaça que ainda pudesse existir, eles caminhavam com displicência, seguindo o líder, a figura mais baixa de todas elas.

    – Por aqui! – Uma poderosa voz feminina, carregada de sabedoria, quebrou o silêncio. – Ela não está tão distante de nós.

    A mulher tomou a dianteira, seguida de perto pelas quatro enormes figuras que a acompanhavam na empreitada. O silêncio mais uma vez reinou entre eles. Apenas seus passos eram ouvidos à medida que desviavam dos cadáveres espalhados pelas ruas. Em alguns pontos ao longo da travessia da cidade em direção a seu alvo, chamas de incêndios localizados, resistentes em se extinguir, os iluminavam por breves momentos.

    O calor que temporariamente os alcançava conforme contornavam os inúmeros resquícios de chamas também não os afetava. Eles eram mais fortes e resistentes do que aquela insignificante ameaça. Nem mesmo a fenda aberta na rua por alguma arma poderosa foi suficiente para impedi-los de prosseguir em sua jornada.

    Ao se depararem com o obstáculo, a mulher à frente chamou um dos homens que a seguiam:

    – Mickail, aproxime-se.

    Inocente, o homem encapuzado deixou a formação e aproximou-se da mulher. Ajoelhando-se em reverência, ele respondeu:

    – Senhora.

    A mulher curvou-se na direção do homem ajoelhado e falou baixo em seu ouvido:

    – Eu sinto muito. – Sua voz não trazia mais a força feminina de antes, mas uma falsa compaixão.

    Uma lâmina reluziu as chamas próximas quando a mulher retirou a adaga de seu cinto. Com um movimento rápido e preciso, ela a passou pelo pescoço de Mickail. O corte foi profundo. De imediato, ele colocou a mão na garganta. Sangue escorreu pela ferida, passando por entre seus dedos, sujando sua túnica antes de escorrer para o chão e mergulhar na fenda que bloqueava o caminho de todos.

    O corte, no entanto, não fora o suficiente para matá-lo. No olhar de Mickail estava nítida a dúvida sobre os motivos de ela ter feito aquilo. Havia tantas coisas que ele não compreendia! Ele, no entanto, não teria essa oportunidade. Com mais um movimento tão rápido quanto o anterior, a mulher o chutou no peito. Seu corpo tombou para trás, mergulhando no interior da fenda até desaparecer na escuridão. Segundos depois, o som do impacto de Mickail contra as pedras no fundo chegou fraco aos ouvidos dos sobreviventes na superfície.

    Ela sabia que Mickail não estava morto, mas isso não importava. Seu sangue maculava as paredes da fenda até seu fundo. Tudo ocorrera como ela esperava.

    Fazendo valer o sacrifício de um de seus aliados, palavras estranhas começaram a ser sussurradas pela misteriosa mulher. Seus braços se levantaram; os punhos e as mãos espalmadas para cima, saindo pelas mangas da túnica. Protegidos pelas sombras do capuz sobre a cabeça, seus olhos ficaram negros como a noite. Um enorme poder emanava dela naquele momento.

    Em resposta a esse poder, a terra começou a tremer. O ruído chegou aos ouvidos de todos. Alguns prédios, principalmente ao redor, frágeis depois de tudo que se passara em Cafelândia, não resistiram ao tremor. Destroços foram jogados nas ruas e avenidas ao longo de toda a cidade. As laterais da fenda aos poucos se aproximavam, fechando-se.

    No fundo da fenda, Mickail, ferido e sangrando, sentiu o tremor e as paredes se fechando ao seu redor. Ele tentou se movimentar, mas seu corpo não respondia aos comandos. A mulher fizera mais do que simplesmente cortar sua garganta ou jogá-lo para baixo. Ela, de alguma maneira desconhecida por ele, o imobilizara. Para Mickail, não restava mais nada a não ser gritar insultos contra a mulher enquanto as paredes se aproximavam.

    Segundos antes de a fenda se fechar, o grito desesperado de Mickail ganhou a superfície, acompanhado do som de ossos se esmigalhando. Quando as duas extremidades se encostaram de maneira irregular, possibilitando ao grupo seguir em frente, o tremor cessou. Cafelândia voltou a ser uma cidade pacata e silenciosa.

    Ao perceber que os três homens atrás dela, cujo temperamento instável poderia lhe causar problemas, estavam incomodados, a mulher rapidamente impôs sua autoridade:

    – Nem uma palavra! – disse e seguiu em frente, passando por cima de um pequeno desnível do que antes fora uma enorme fenda.

    Não muito distante do local onde a mulher fechara a fenda, destroços de casas tombadas para o centro da rua bloqueavam a passagem. Esse obstáculo, comparado com aquele com que se deparara havia apenas alguns minutos, era insignificante perante seu poder. Com um movimento displicente de mão e novas palavras sussurradas, os resíduos das construções caídas foram arrastados para os lados, sem oferecer resistência.

    Conforme o caminho se abria, a praça matriz da cidade ganhava forma. A catedral, outrora imponente, estava parcialmente destruída. A torre do sino não existia mais. Dela, restava apenas uma pequena base quadrada sobre um telhado frágil, cuja sustentação estava abalada.

    – Vão! – A mulher quebrou o silêncio quando o caminho se abriu. – O que vocês procuram jaz ao lado da torre destruída, sob os escombros.

    Um rosnado escapou da boca de um daqueles seres misteriosos enquanto, acompanhado de seus dois colegas, seguia, ganancioso, em direção aos escombros da catedral. Por mais que tivesse de escavar alguns destroços para alcançar seu alvo, ele não conseguia segurar o leve sorriso que se abria em sua boca torta. O mestre ficaria satisfeito com sua eficiência em ter resgatado aquele corpo.

    3

    Do outro lado da cidade, não tão distante da praça matriz, três figuras com os rostos cobertos por balaclavas ⁵ negras, vestidas de preto, movimentavam-se de maneira ordenada por uma rua tranquila. Sob o comando do mais adiantado, parcialmente escondido atrás de um carro estacionado, com a balestra em suas mãos apontando para o caminho livre, duas pessoas avançaram pela rua. Como mandava o protocolo de missões em campo, um deles apoiou-se de lado contra um poste de luz, sua arma apontada para a frente. O outro dirigiu-se ao portão de uma casa e, segurando a besta com apenas uma das mãos, apontada para o interior através da grade, colocou a outra sobre a maçaneta.

    Mas não a girou de imediato. Apenas aguardou seus dois parceiros terminarem de averiguar se a rua era segura. Somente quando todos estavam juntos, ele abriu o portão e, dando passagem, deixou seus companheiros tomarem a dianteira, cada um segurando a balestra apontada para o caminho escuro e desconhecido. Por fim, a pessoa que abrira o portão adentrou a garagem.

    Uma caminhonete um pouco antiga estava estacionada. Sinal de que os alvos da missão estavam dentro da casa, apesar de estar toda escura. Os agentes contornaram com cuidado o veículo até a porta principal. O líder, tomando a dianteira, abriu-a e seus dois subordinados adentraram; as balestras apontadas para a escuridão.

    Uma vez dentro da casa, eles se dividiram. O líder seguiu pelo piso inferior, a balestra erguida. A sala à esquerda estava vazia. A cozinha, para além do pequeno corredor à direita, também, apesar dos indícios de que alguém estivera ali não havia muito tempo. Pratos sujos com restos de comida estavam sobre a pia, indicando uma pequena possibilidade de, por algum motivo desconhecido, os moradores terem saído às pressas.

    Enquanto o líder vasculhava o andar inferior, os outros dois agentes, sob suas ordens, subiram as escadas. Ao chegarem ao segundo andar, eles se dividiram, cada um se dirigindo para um dos lados do corredor. Com cautela, com as balestras sempre apontadas para a frente, abriram as portas de todos os aposentos. Nada. Apesar de terem encontrado algumas roupas espalhadas sobre as camas, não havia ninguém ali.

    – Limpo! – gritou um deles do andar de cima.

    – Limpo! – respondeu o outro da outra extremidade do corredor.

    – Limpo! – completou o líder no andar inferior.

    A casa estava deserta. Quem eles procuravam não estava ali. A missão falhara. O líder falhara.

    Quando se reuniram novamente no piso inferior, em frente à escada, um dos agentes, uma mulher, falou:

    – Elas não estão aqui!

    – E agora? – outro agente, um homem, perguntou.

    O líder não sabia o que responder. Ele tinha certeza de que encontraria as duas ali. Fazia muitos anos que não as via, mas recebia notícias regulares delas. De tempos em tempos, um de seus agentes passava pela casa, ora disfarçado de vendedor, ora de corretor de imóveis, ora de agente de saúde, para ter notícias. Nenhum deles, porém, havia relatado alguma intenção de mudança da parte delas. Além do mais, os indícios encontrados por todo o ambiente não indicavam que elas haviam saído em definitivo da casa.

    No entanto, havia indícios de que elas haviam deixado a casa às pressas. Provavelmente pelo mesmo motivo que o trouxera ali, para aquela missão de resgate. Quando o líder soubera que Cafelândia se tornara um ambiente hostil, sua primeira atitude fora organizar uma força-tarefa para adentrar a cidade e resgatar as duas meninas.

    Para onde foram, porém, ele não conseguia sequer imaginar. Conhecendo-as, sabia muito bem que elas não tinham outro lugar para ir, fato que o deixava ainda mais intrigado em relação ao seu paradeiro.

    – Onde vocês estão? – perguntou o líder em voz baixa, preocupado, mordendo, na sequência, o lábio sob a máscara negra.

    Ele conhecia o potencial da mais velha, o que lhe dava um lampejo de esperança, mas também o deixava preocupado, principalmente depois da última vez que se viram, quando um desentendimento deixara o clima desagradável entre os dois. Ele sabia, mais do que ninguém, que ela nunca pediria sua ajuda, por mais que necessitasse. O orgulho e a desconfiança justificável por parte dela tornaram a relação entre eles frágil demais para que ela chegasse a esse ponto.

    Da mais nova, ele tinha pena. E talvez fosse por causa dela que estivesse ali, arriscando-se tanto em uma missão de resgate. Sua maior preocupação era, inconscientemente, com a caçula. Se, por algum motivo, ela tivesse se afastado da irmã em meio àquele ambiente hostil, ele tinha quase certeza de que já estaria morta.

    Mas as pessoas podem se enganar...

    Alimentando seu âmago com essa vã esperança, o líder saiu da casa, seguido de seus dois agentes. Ele não se daria por vencido até vasculhar cada ínfimo buraco daquela cidade.

    Mas isso não parecia ser necessário. Um forte tremor sob seus pés o fez perder o equilíbrio, assim como seus dois comandados. Eles tentaram se levantar, porém a intensidade da terra se mexendo era forte demais para que conseguissem ficar em pé por muito tempo. Os alarmes dos poucos carros estacionados dispararam, quebrando o silêncio enquanto suas luzes amarelas piscavam.

    Para piorar, destroços das casas ao redor caíam para a rua. Um bloco de pedra quebrou-se em pedaços, próximo ao pé do

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