Aproximação Dialógica: Cosmogonias Grega e Iorubá
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Aproximação Dialógica - Robson Di Brito
APRESENTAÇÃO
UMA DUPLA RETOMADA: ANÁLISE COMPARATIVA NO ÂMBITO DA TEORIA DA LITERATURA
O livro de Robson Di Brito, Aproximação dialógica: cosmogonias grega e iorubá, promove uma volta ao passado, não tão distante, dos estudos da teoria da literatura, assim como se conecta com a ancestralidade mítica e cultural das cosmogonias. A pesquisa que deu origem ao livro tem, dentre todos os valores que agrega, aquele de mostrar o quanto o passado ressignifica o presente, lança luz, dialoga.
A teoria da literatura tem perdido espaço nos planos pedagógicos dos cursos de Letras, nesta última década, e é preciso compreender este fenômeno em profundidade. Seria mesmo inconcebível pensar em uma articulação entre as teorias e as culturas, elas são de fato dicotômicas? Não são raros os textos que afirmam ser a teoria da literatura uma prática do passado, estéril e incapaz de dar conta das novas perspectivas de compreensão do mundo da vida. Contudo, este livro mostra que esse pensamento é um equívoco e uma compreensão superficial do que seja a teoria da literatura.
Os estudos literários, compreendidos como tal, tiveram início no século XVIII, o berço da primeira configuração de cientificidade, que exigia uma determinação, clara e distinta, como dizia René Descartes, do objeto a ser analisado. Esta determinação implicava, portanto, na definição de metodologias de análise desse objeto, mas estas só surgiriam no século XX. Assim sendo, os primeiros estudos literários pareciam mais como uma opinião
sobre o objeto artístico, que é a literatura. Frequentemente, essas opiniões
eram produzidas pelos homens de letras, isto é, figuradas da sociedade burguesa, em sua maioria, homens, brancos, formados em direito. As análises de romances e poemas, no período mencionado, variavam entre um descritivismo ou uma análise de conteúdo dessa produção artística. No século XIX, podemos identificar uma nova forma de análise surgir incorporando os modelos cientificistas da época, tratava-se de uma ciência literária
ou de uma crítica naturalista
, na qual os parâmetros biológicos determinavam as análises sobre os comportamentos humanos, mimetizados nas obras, estabelecendo relações de causa e consequência, determinismos, hereditariedades, entre outras relações. No extremo oposto, tinha-se a crítica impressionista, que nada mais era do que a análise baseada em impressões pessoais, que valorizavam ou desvalorizavam a obra a partir de caracteres externos à própria obra literária. Grosso modo, esse era o cenário da crítica literária nos séculos XVIII e XIX, que oscilava entre desejar se impor como disciplina, como formação científica, universitária, mas tendo como objeto de análise a arte. É preciso considerar que a arte, como apontou Immanuel Kant, no século XVIII, é um objeto não passível de atribuição de conceito, de conhecimento, porque é, em suma, um significante sempre aberto a receber novos significados a cada novo ato de leitura, em diferentes contextos históricos, por diferentes grupos socioculturais. Para tal objeto plural, complexo, sempre vivo e pulsante, teorias ou métodos de análise limitadores serão sempre o que são, camisas de força
, se não forem utilizados como suporte, mas, sim, como parâmetros definidores.
Vale lembrar, ainda, que no século em que surgem os estudos literários, surge, igualmente, a historiografia literária, que nasce na perspectiva da história como disciplina, como saber produtivo para o conhecimento, que analisa o passado procurando entender os meandros que definiram as escolhas e as ações dos seres humanos. Conhecer o passado é tentar controlar a imprevisibilidade do futuro. Nesse sentido, a historiografia literária, que se apresentava nesta época como dicotômica, em vista das oposições aparentes entre os movimentos artísticos, romantismo versus realismo/naturalismo, por exemplo, chega ao século XIX mais complexa, incorporando a dialeticidade na compreensão da evolução histórica desses períodos. A própria historiografia literária já sinalizava para o fato de que as obras de arte literárias são representações dos enquadramentos espaço-temporais de seus autores e de seus leitores, sendo assim, obviamente, produtos culturais.
No século XX, surgem as teorias literárias, tantas quantas foram possíveis se criar novas formas de se olhar para este objeto complexo chamado arte literária. Os professores e pesquisadores da Pontificia Universidad Católica de Chile – Jaime Blume Sánchez e Clemens Franken Kurzen¹ – elencaram cinquenta modelos do que denominaram críticas literárias do século XX. Percebe-se que ainda hoje se confundem as práticas da teoria literária com as da crítica literária, uma confusão justificada se considerado o fato de que a crítica literária, frequentemente, faz uso de elementos da teoria literária para a atribuição de valor, para tornar explícitos os pressupostos teóricos utilizados em sua avaliação. Mas a distinção se faz na função que cada uma dessas atividades desempenha². À teoria literária cabe a elaboração de uma determinada metodologia de interpretação das obras literárias, já à crítica literária cabe avaliar a obra, isto é, criar um discurso sobre elas. Os professores da universidade chilena defendem o uso do termo crítica, nesse caso, por reportarem à etimológica do termo grego –
crítica" provém de krino, que significa separar e discernir:
De acuerdo com esta etimologia, la funcíon de la crítica se cumple cuando el lector descubre, al interior de la obra literária, los diferentes elementos que la integran y el modo cómo interactúan entre sí. Un ejemplo de lectura de un poema sería el registro de las características formales del mismo (metro, rima, tipo de estrofa, etc.), de los motivos que maneja (amor no correspondido, soledad, comunión con la naturaleza, etc.), de la modalidad del discurso poético (tradición o ruptura), o de los distintos niveles presentes em el texto (fónico, semántico, significativo, estilístico)³.
A definição de crítica, nesse caso, está mais adequada à função da teoria literária, tendo em vista que o leitor descrito não é o leitor comum, mas o leitor crítico, acadêmico, que faz uso de determinadas teorias que estão subentendidas na citação, para avaliar ou mesmo interpretar a obra literária. Os procedimentos descritos no processo de leitura são ou formalistas, ou estruturalistas, ou semióticos, ou seja, fazem parte de determinadas linhas teóricas e não de outras. As linhas mais transcendentalistas, aquelas que valorizam os elementos externos à obra, os que não pertencem à literariedade, não estão contempladas na leitura crítica definida por Sánchez e Kurzen. O que equivale a afirmar que o que os autores denominam como cinquenta modelos de crítica literária do século XX
são, de fato, cinquenta modelos de teorias literárias. Dentre as funções que os autores indicam como práticas da crítica literária têm-se: (I) Captar os distintos elementos que conformam um texto; (II) Compreender o que esses elementos significam no interior do texto; (III) Valorizar axiologicamente a obra como um todo. Os dois primeiros procedimentos críticos fazem uso de metodologias de abordagem do texto literário próprias de algumas das teorias literárias, notadamente, as que se voltam para a estrutura profunda dos textos analisados. O último procedimento é mais amplo e descreve os dois grandes grupos de abordagens críticas das teorias literárias:
Valorar: este tecer momento de la crítica es el más difícil de aplicar por su proximidad com lo subjectivo. W. Shumaker propone un sistema de referencia externa (biografia y psicologia del autor, candiciones socioeconômicas de la época, sistema de ideas vigentes, artes paralelas, contexto, etc.) y outro, sistema de referencia interna (calidad de lãs imágenes, ambigüedad y polivalencias, metáforas y símbolos, tensiones internas Del texto, forma y contextura, caracterizacíon, plan, modelos rítmicos, estilo, manejo del tiempo, puntos de vista, técnicas, intenciones, etc.)⁴.
Na descrição da terceira função, os autores dão a justa medida da crítica literária, a que considera como prática o diálogo entre as teorias e uma compreensão mais complexa desse objeto artístico, observado em sua estrutura e em seu entorno.
As teorias que dão conta do sistema de referência interno são aquelas que se voltam para os elementos dispostos na obra e não fora dela, já as teorias que se voltam para os elementos externos à obra, para os quais os próprios elementos internos direcionam o olhar, pertencem ao sistema de referência externo. Outra denominação bastante utilizada é a que divide as teorias críticas em imanentes, que se voltam para os elementos estruturais da obra, e em transcendentes, as que se interessam pelas condições que circunscrevem uma obra literária. De uma maneira geral, as teorias literárias poderiam ser divididas em três grandes grupos: imanentes, transcendentes e imanentes/transcendentes. Ao se considerar o levantamento realizado pelos professores Franken e Blume, pode-se dividir os cinquenta modelos indicados nesses três grandes grupos em: imanentes – Formalismo Russo (Viktor Chklovsky, Boris Tomashevsky), Escola de Praga (Roman Jakobson, Tinianov), Análise linguística (Saussure, Émile Benveniste) e Semiótica (A. J. Greimas, Julia Kristeva); transcendentes – Teoria psicanalítica (George Poulet, Gilbert Durand, Freud), Escola de Frankfurt (Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Walter Benjamin), Crítica feminista (Hélène Cixous, Elaine Showalter), neomarxista (Frederic Jameson, Stuart Hall), Crítica pós-colonial ou Crítica cultural (Edward Said, Homi Bhabha); imanentes/transcendentes – Estética da recepção (Wolfgang Iser, Hans Robert Jauss), Estruturalismo (Roland Barthes, Vladimir Propp, Jouri Lotman), Desconstrutivismo (Jacques Derrida, Michel Foucault, Paul de Man). Ainda faltam a ser consideradas as poéticas de prosa (Tzvetan Todorov, Gérard Genette, Percy Lubbock), as poéticas de poesia (T. S. Eliot, Michel Riffaterre, Jean Cohen), assim como as filologias alemãs (Friedrich Gundolf, Ernst-Robert Curtius, Leo Spitzer, Erich Auerbach). É preciso considerar ainda uma outra linha teórica que vem, desde os anos 70, ganhando força e adeptos – a teoria teológico-religiosa (Karl-Josef Kuschel, Hans Urs Von Balthasar, Georg Langenhorst). Evidente que se trata de uma lista de teorias literárias que ainda poderia ser acrescida de outras formas, menos evidentes, de metodologia de abordagem crítica dos textos literários, assim como poderiam ainda ser elencados outros tantos autores.
Tendo em vista essas subdisciplinas dos estudos literários – crítica literária, historiografia literária, teoria literária – criou-se então, no século XX, como bem apresenta Antoine Compagnon, em O demônio da teoria, a disciplina acadêmica Teoria da literatura, cuja função era abordar esses diferentes campos de possibilidades, entrecruzando esses saberes. Mas então o que explica essa disciplina ter desaparecido dos projetos pedagógicos dos cursos de Letras? O livro da Maria Elisa Cevasco – Estudos literários X Estudos culturais – explica o motivo.
Tanto os estudos literários quanto os de cultura passam por tempos de entrincheiramento nas universidades. De práticas oposicionistas, que de um ponto de vista idealista – como na militância de Leavis – ou de um ponto de vista materialista – como no momento da formação dos estudos de cultura – se contrapunham à organização social e buscavam influir nos rumos da sociedade, passam a bem-sucedidas disciplinas acadêmicas. Como em outros momentos de institucionalização, o que se ganha em rigor técnico acaba se perdendo em envolvimento social. A crítica literária se refugia em um momento de boom de teorias em que uma moda teórica sucede a outra, muitas vezes em um arremedo de luta discursiva⁵.
Antes de abordar os entrincheiramentos entre estudos literários e estudos culturais, é preciso que se compreenda que estes últimos lutam, legitimamente, contra um conceito monolítico de cultura
, que, via de regra, não incluía a diferença, a diversidade, a cultura popular, a cultura de rua, enfim, um mundo de culturas plurais que não era, até os anos de 1990, reconhecido como tal. Foi na perspectiva de romper com este silenciamento do pluralismo cultural que os estudos sobre a literatura passaram a assumir a perspectiva da Escola de Birmingham, que foi importada e adotada pelos pesquisadores brasileiros, assim como foram importadas todas as demais teorias literárias europeias e norte-americanas, nas décadas anteriores. Como bem apontou Cevasco, o boom de teorias seguia o movimento da moda teórica nos departamentos de Letras, o que se observou, igualmente, com a importação dos estudos culturais britânicos. Entretanto, com uma sutil e significativa diferença: o fato de os estudos culturais chamar a atenção para o particular, para o específico da cultura, fez com que os objetos culturais, que nunca antes tiveram espaço nas universidades como objetos legítimos de análises, passaram a ter espaço e atenção.
Outro ponto importante, herdado dos Cultural Studies, foi a abertura para a perspectiva interdisciplinar, como bem sinalizou Maria da Glória Bordini:
Nesse intento, que tem sido denominado no mundo de língua inglesa de Cultural Studies, convocam-se interdisciplinarmente aportes de outras ciências, como a filosofia, a psicologia e