Rubi Boto: Letras de música e outros escritos
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Sobre este e-book
Rafael Torres, além de compositor e músico, nos mostra aqui que é também um talentoso escritor, que sabe brincar com as palavras, fazendo uso de diversos artifícios que demonstram sua apurada maestria e domínio da língua portuguesa.
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Rubi Boto - Rafael Torres
M
anual da leveza
Nunca tinha tido essa vontade de
Dançar, de ouvir boleros,
Passear pelas calçadas de manhã
Mas quando te conheci por dentro
Concebi poemas, valsas de Viena
Pop-rocks de Liverpool
Tudo que de azul
Tudo menos blue
Seria capaz de redigir o
Habeas corpus do capeta
Fazer letra pra canções de Tom Jobim
Que a prosódia ficasse de lado
Por alguns versinhos, esse vinho
Esse lençol, essa pele
Esse Vivaldi
Esse Fellini
Pronto, deita tua cabeça
Preta, minha preta
Prova pra que brilham os astros
Num instante o coração tem
A velocidade das asas de
Um beija-flor
De manhã olho pro lado
E não vejo ninguém
Cadê você?
Cadê Rodin?
Cadê Drummond?
Cadê Chopin?
Coração saindo pela boca
Quase solto um grito
Então, lá vem você
Trazendo o café da manhã
Voltam os Chopins
Vai-te em paz, divã
O brioche e o sorriso escancarado
Um fado em Lisboa
O aboio de um vaqueiro do sertão...
2018
Pêndulo
Repare no pêndulo
Sua existência moto-perpétua
Dá razão a um lado
Dá vazão ao outro
Pendurado em nada, flerta
Com o que o tempo lhe dá
Repare no pêndulo
Sua proposta ambivalente
Anuncia um tic
Prenuncia um tac
Se de um lado há joio, o trigo
No outro aparecerá
Sim, não
Vida, morte
Sul, norte
Ponta-cabeça
Claro, que não
Extrema-unção
Metro-nome
Cá-mente
Min-to (minto)
E o centro, existe ou não?
Por ele só se passa depressa
Se bem que, a ele,
Sempre se regressa
No dedo, devoto, o voto
Todo penso é torto
Que botão aperto
Pra esse mundo mudar?
Pra cá, a razão
Pra lá, só conversa fiada
Pra cá, ele não
Pra lá, ele cara lavada
E a grande questão
É onde ficam Deus
E o capiroto
Difícil precisar
Mas preciso falar
Ouvi dizer que Deus
Como eu
Era canhoto
11.10.2018
Por que saber?
fado
Por que saber?
Do meu passado, meu futuro, meu presente?
Por que saber?
Das minhas coisas, meus cadernos, meus caixões?
Por que saber?
De duas, uma: ou és feliz ou consciente
Do que te fiz
Tens que saber que não saber é o que convém
Sei que é cruel
Ser enganado dói no peito tão pesado
Mas vou dizer
Não queira estar no meu lugar de charlatão
Quanto da tua vida foi entregue
Aos meus anseios?
Os meus prantos nos teus seios
Contrabandos, devaneios...
E eis que me rebaixo e barateio a perguntar
Por que saber? Por que saber? Por que saber?
Quando te vi
A descobrir os telegramas, tolas cartas
Eu percebi
No teu olhar o nosso amor desmoronar
Por que saber?
Verdades são como punhais enfileirados
Agora vou
Me submeter, só ter direito, aos teus facões
Do criado-mudo tenho mágoa
Ele, de mudo não tem nada
Na gaveta cabe até mais que a verdade
Sei, meu pedestal ruiu e fico a perguntar
Por que saber? Por que saber? Por que saber?
27.01.2019
Contos britânicos
— Margaret?
— Sim, Dorothy?
— Observe! Não é aquele Argonauta, o Rafael?
— Blimey! É mesmo ele!
— Não é peculiar?
— O quê, querida?
— Ele não tem metade do porte que lhe atribuía!
— Oh, Dorothy! É tão venenosa!
— Margaret?
— Sim, Dorothy?
— Acho que devemos admitir que estamos perdidas.
— Imagine só! Eu sei perfeitamente o trajeto para Kensington.
— Não é Kensington que me preocupa.
— Oh, Dorothy! É tão pessimista!
— Margaret?
— Sim, Dorothy?
— Quando vai finalmente se livrar de Maximilian?
— Não compreendo! O que há de errado com Max?
— Seu queixo é por demais proeminente, se é que me entende...
— Mas isso é nonsense!
— Além disso, Mildred e as meninas têm comentado...
— O quê?
— Ele tem más companhias!
— Mas o que há de errado com Wilfred e Jeremy?
— Verrugas e um nariz notável.
— Chega, Dorothy! Sua terapia com o novo analista espanhol não serve de nada?
— Estebán? Com aquele cheiro terrível de tabaco?
— Oh, céus! Você é incorrigível!
— Margaret?
— Sim, Dorothy?
— Tenho a impressão de que a última opereta de Arnold foi mal sucedida.
— Ora, não é uma questão de achar. Ou ela o foi ou não. E, nesse caso, detesto desapontá-la, mas foi muito bem sucedida.
— Sim, Covent Garden esteve insuportavelmente apinhado por semanas. Mas achei a obra um tanto...
— Sim?
— Silly.
— Mas por Deus! Nada é capaz de agradá-la?
— Claro que sim!
— Dê-me um exemplo convincente!
— A penúltima opereta de Arnold. Sobre o trágico caso com as irmãs Totty. A selvageria, o suicídio... É simplesmente encantador.
— Dorothy, você é hopeless! A opereta era sobre o Brasil, não sobre as irmãs Totty!
— Ah, que desapontador! Achei que o Brasil fosse uma metáfora.
De voos
para minha sobrinha
Pega a condução que desce na primeira estação
Vem e traz na mala aquilo de que fala a escuridão
Pega o avião que faz a trajetória em contramão
Que traz toda uma história do desejo
Sobre o luar
Prega na parede fotos e cartazes de uma atriz
De cabelos roxos, de olhos puxados, Guaranis
Toda a decisão vermelha
A confusão vermelha
A confissão vermelha
A concessão vermelha
A solidão
Pega a minha mão
Me leva pra esse mundo, esse salão
Em que dançaste já tantos balés
Quem sabe que romances já tivestes
Ao sonhar
Nada pelo rio que desemboca em outra dimensão
Em que os orixás estão do nosso lado em profusão
Pega o caminhão que nunca para numa interseção
Que nunca faz retorno, vai direto
Até o luar
2018
Faça seu desenho, por mais, digamos, infeliz que seja, nessa página. Isso haverá de tornar seu exemplar único e você terá criado seu primeiro Rubi Boto!
Ana Luísa
para minha sobrinha
Ana Luísa
Dos carnaubais
Quando cansar me avisa
O que eu queria te dizer
Era tão prosaico
Que nem vou falar pra não te preocupar
Ana Luísa
Deixa de drama
Molhou minha camisa