Um Bolinho É Só O Começo
De Ara Mystake
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Um Bolinho É Só O Começo - Ara Mystake
Um bolinho é só o começo
Ame-me como sou
Ara Mystake
1ª edição
Rio de Janeiro – 2013
1
Capa: Mara Sicca
Revisão: Tainah A. Cintra
Contato: umbolinho@hotmail.com
Se exponho a você minha nudez como pessoa,
não me faça sentir vergonha.
Viva com vontade
Acorda sem vontade, arruma-se sem vontade, sai sem
vontade, espera sem vontade, dá sinal sem vontade, sobe
sem vontade, paga sem vontade. Procura um lugar com
vontade, senta com vontade, abre a janela com vontade.
Até a hora de levantar pra descer e chegar ao seu tão
querido trabalho. Sem vontade. Enquanto não chega,
somos obrigados a fazer algo insuportável para os
animais que rondam a selva de pedra, o humano da
cidade, dividir espaço físico íntimo. Somos obrigados a
sentar encostados num estranho! Sentamos, mas a
mente se isola, o olho procura logo a janela, o horizonte,
quer estar longe. O corpo falando que preferia estar livre.
Pessoas duras, pouco contato visual. Eventualmente, se
olha pra uma mancha de suor, pra a bunda da gostosa,
pra o cobrador coçando o nariz com a unha do mindinho,
curiosamente não cortada. E a vida se dá num monólogo.
Não entre o ser e ele mesmo. O ser fica calado ouvindo
os caprichos das falsas necessidades. E isso é o padrão.
E, enquanto estivermos no padrão externo, o padrão
interno se perpetua. "Precisamos da iluminação divina, de
um Buda! Ou de um crente pra quebrar o silêncio do
ônibus e entregar a palavra!" Mas isso já está no padrão.
Assim, a vida se passa sem definição, como um borrão, a
passos largos, sem perceber o universo de cada dia.
Precisamos do curinga! Do Caos! Explosões! Mas calma.
Talvez (como sempre) coisas estranhas aconteçam
debaixo dos nossos narizes, ou dos nossos padrões. O
curinga urbano existe e é mais sutil. Quando um jovem
desce do ônibus para ajudar uma velhinha a descer, por
exemplo, o caos se estabelece! E se estabelece aonde
importa, nas mentes. Os monólogos dos seres dormentes
se quebram, o ser timidamente olha para aquilo e se
pergunta "Como? Ele parou de ouvir as suas
necessidades! Um altruísta! Quero ser como ele! Cala a
boca, outdoor, quero ver este jovem!". Subitamente, um
adulto trabalhador, que fingiria um sono pra deixar a
velhinha passar, dá seu lugar com um sorriso, o cobrador
canta algum samba, o motorista para fora do ponto por
pura gentileza. Exemplos são inúmeros. A quebra de
padrão é uma sacudidela. Como quando o elevador para
e todos que estavam dentro saem conversando, como se
fossem velhos amigos. O caos momentâneo faz esquecer
a falsa impressão que temos que nos proteger de todos.
Coisa legítima da selva de pedra. Mas que não se
sustenta com a realidade que é maior que a cidade. Ah,
se os gurus pop soubessem disso, que a cidade tem um
Deus gentil para ser cultivado. O grande acaso! O
quebrador de padrões. Se a vida fosse pregada como
uma liturgia anti-marasmo para manter o ser acordado,
começaríamos a ver o acaso em todos os lugares, sinais
e mais sinais, que antes eram sinais para engatilhar
padrões, poderiam ser sinais para fugir deles. Rotina,
repetição, ciclo, responsabilidade, deem o nome que
quiser. Esta é a breve fórmula, meio zumbi, de ser do
homo sapiens moderno. Uma vida de sinais, que
engatilham rotinas, sem sinal nenhum de vida. Sem
nenhum sinal de novo. Uma eterna ode ao mesmo, à
vontade de ser o que não se pode ser. Sem vontade. E as
linhas de escape acabam fazendo o mesmo. Ninguém
pode ser Jesus, ninguém pode ser Buda, mas podemos
ser aquele jovem que ajuda a idosa, o cobrador cantor de
samba, podemos ser o cara que dá bom dia pra quem
senta ao lado dele no ônibus. Podemos, sem medo, ser
diferente, sair dos padrões, propagar a desordem,
despertar seres. Somos presas na selva de pedra, mas
podemos viver com vontade.
Texto original de João Gabriel Farias Lima
Adaptação de Karla Gonçalves
Fonte: papodehomem.com.br/apatia-vontade-e-explosoes
Dedico este livro à selva de pedra.
Bolo de Sorvete
Compras. Devia ser divertido, mas não era. Não para ela.
Fernanda passeava pelas ruas cheias de lojas, procurando o
cinto que a amiga queria de aniversário. Sol, calor, pessoas
olhando-a de esgueira, olhares torcidos, reprovativos e de
pena. Não tinha nada de bom nisso. Lana merecia o
sacrifício, mas estava tão quente. Suas pernas já doíam de
tanto procurar o maldito cinto. Tinha que caber a ela o
presente mais difícil. Merecia um belo sorvete com muita
calda de chocolate depois disso. Sim, merecia sim.
Parou, precisava parar, precisava sentir um pouco do ar frio
da loja antes de continuar sua busca. Deteve-se na entrada,
recompondo-se um pouco, deliciando-se com a brisa gelada
do ar condicionado da loja, fingindo observar a vitrine.
Deslizou os olhos pela rua movimentada, os apressados
passos, parando nos dois homens que olhavam em sua
direção. Seguiu com os olhos a mulher que passou a sua
frente. Jeans apertado, blusa modelando a cintura... Era
óbvio o que os homens olhavam e não era ela e seus muitos
quilos acima do peso. Mas, por um instante, imaginou ser o
objeto da admiração dos homens que lançavam olhares de
desejo em sua direção. Principalmente, do moreno alto e
musculoso, cujo olhar era tão quente que a fez sentir-se
desejável, mesmo através de sua fantasia.
Com um suspiro, voltou-se para a loja. Era hora de continuar
sua jornada, parar de fantasiar, parar de sonhar e continuar
vivendo sua vida. Talvez o dia não estivesse tão ruim se
aquilo que estava vendo fosse o cinto que procurava.
Respirou fundo, não conseguindo evitar olhar, mais uma
vez, para os dois homens. Queria guardar só mais um pouco
daquela sensação. Ao virar-se, encontrou os olhos escuros
ainda a encarando. Procurou a mulher, mas não a
encontrou, nem ninguém digno daquele olhar. Olhava-a?
Questionou-se, inundando-se em mortificação ao notar o
quão tolo era esse pensamento. Estava enlouquecendo já.
O sol devia estar fazendo mal a ela.
Dando as costas a bela e musculosa ilusão, entrou na loja,
caminhando diretamente para o cinto. Ignorou a vendedora
que a olhou do balcão, verificando os muros que construíra
ao longo dos anos. Aquele olhar era o que mais odiava.
Pura reprovação, como se ela não tivesse o direito de estar
ali, de sair pelas ruas, de existir. Podia não caber naquelas
roupas, naqueles perfeitos padrões, tinha tentado duramente
e desistido depois de tantos fracassos, mas tinha todo o
direito de viver, de olhar qualquer pessoa nos olhos. Aquelas
roupas podiam estar longe de seu alcance, mas o mundo
pertencia a ela também. Não precisava da aprovação de
ninguém para caminhar livremente por ele, para ser feliz
vivendo nele.
Com a confiança renovada, pegou o cinto escolhido, pronta
para levá-lo ao caixa, assim que a pessoa que tinha se
posto a sua frente lhe permitisse passar. Ergueu o rosto
para encontrar os olhos escuros e o rosto corado, junto com
um sorriso sem jeito, do homem a sua frente.
– Ricardo.
Ela não tinha certeza se ele estava se apresentando ou
falando com alguém atrás dela, por isso se virou. Fernanda
analisou a vendedora que encarava o belo homem, sorrindo
sugestivamente. Cabelos castanhos, longos, corpo esguio,
proporcional, coberto pela alta moda que compunha a loja.
Estava no caminho, mas já sairia. Primeiro, confirmaria se
aquele era mesmo o cinto que Lana indicara com tantos
detalhes, desnecessários detalhes. Então, bastava pagar e
poderia tomar seu sorvete antes de ir pra casa. Mas, para
seu espanto, o homem ainda estava a sua frente e quase foi
de encontro a ele.
– Quer tomar um café? _ Ele perguntou.
Devia ser para a vendedora. Não entendia porque não
passava por ela, tinha espaço suficiente para ele alcançar a
vendedora e parar de impedi-la de pagar o cinto. Ele estava
tão corado que começava a preocupá-la. Por isso, ignorou
que estava de empecilho entre ele e sua próxima conquista,
levou a mão ao rosto dele. Estava quente.
– Você está... _ Começa a vendedora, espantada.
– Bem? _ Completa Fernanda, ainda tocando o rosto dele.
– Não costumo lidar com moças tão bonitas. _ Ele lhe sorri o
mesmo sorriso sem jeito. – Estou meio sem prática, acho.
– Claro. _ Murmura, retirando a mão do rosto dele.
Tinha que pagar pelo cinto, pensou, decidida a passar por
ele e ir embora. E diria a amiga que lhe devia uma por fazê-
la passar por isso. Devia ter ido pra casa, estaria muito
melhor no consolo e na segurança de sua cama. Mas, não,
tinha que decidir caminhar, se aventurar um pouco pela
selva de pedra, sair para o mundo que a via apenas como
uma bola de carne que não podia comer ou jogar fora, que
só queriam esconder. Fernanda não se escondia em casa,
não, de jeito nenhum. Em casa, ela se rearmava. Preparava-
se para enfrentar a todos que queriam confiná-la, escondê-la
como se fosse um erro, uma deficiência da sociedade.
Com o cinto pago e um sentimento de revolta borbulhando
dentro dela, vira-se para ir embora. Mas o homem estava lá
de novo, como se a aguardasse. Por que seguia olhando-a
como se esperasse algo dela?
– Não tomo café. _ Respondeu, tentando passar por ele,
com medo de não ser isso o que ele esperava e passar por
idiota, mas ele não saiu de sua frente, não a deixou passar.
– Outra coisa então. _ Insistiu.
– Talvez um bolinho. _ A vendedora diz maldosamente,
recebendo dele um olhar severo como resposta.
– Um bolinho seria ótimo. _ Responde.
– Sim. _ Ele confirma, voltando seu olhar a Fernanda,
sorrindo. – Em sua companhia, qualquer coisa seria ótima.
Ricardo só queria ir pra casa e descansar, ele tinha que
trabalhar na segunda, tinha uma empresa pra
administrar e não queria ter saído de casa. Mas isso era
algo que seu irmão ou não entendia ou se recusava a
entender. Era tão difícil aceitar que ele não gostava de
sair para azarar, como dizia seu irmão? Era o tipo de
pessoa que encontra o amor no mercado, não em