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Steve Biko e o Movimento Consciência Negra:  trajetória e atuação de um jovem líder negro na África do Sul (1969 - 1977)
Steve Biko e o Movimento Consciência Negra:  trajetória e atuação de um jovem líder negro na África do Sul (1969 - 1977)
Steve Biko e o Movimento Consciência Negra:  trajetória e atuação de um jovem líder negro na África do Sul (1969 - 1977)
E-book183 páginas2 horas

Steve Biko e o Movimento Consciência Negra: trajetória e atuação de um jovem líder negro na África do Sul (1969 - 1977)

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Sobre este e-book

Steve Biko foi um ativista anti-apartheid na África do Sul, que difundiu suas reflexões formando o movimento Consciência Negra, através do qual mobilizou milhares de estudantes, sobretudo universitários, a partir da ideia de que o fato de serem negros não significava ser menos que os brancos, ideia essa que era difundida pelo Partido Nacional para sustentar o apartheid. Essa luta de Biko custou sua vida, morto pelo sistema em 1977, rapidamente foi construída a imagem de um herói para os negros e militantes contrários a esse sistema. Esse livro propõe investigar como foi narrada a história desse jovem líder sul-africano por meio de seus escritos e de autores sul-africanos, a fim de analisar as formas de construção de sua memória. Os escritos de Biko continuam sendo uma inspiração para os dias de hoje.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de ago. de 2022
ISBN9786525244938
Steve Biko e o Movimento Consciência Negra:  trajetória e atuação de um jovem líder negro na África do Sul (1969 - 1977)

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    Steve Biko e o Movimento Consciência Negra - José Nilton Júnior

    CAPÍTULO 1 - O APARTHEID E A RESISTÊNCIA, UM POUCO DA HISTÓRIA DA ÁFRICA DO SUL

    O sistema do apartheid¹ começa a ser implantado na África do Sul em 1948, quando o Partido Nacional vence as eleições gerais do país, em que somente os brancos puderam votar. Quando o primeiro-ministro Hendrik Verwoerd subiu ao poder, todas as orientações de segregação racial estavam presentes no programa de governo. O que talvez não se pudesse imaginar era o quanto este programa de segregação seria bem-sucedido em tão pouco tempo. Todo esse regime tinha um aparato legal, ou seja, houve um sistema de leis que corroborava com todo esse processo e dava-lhe um caráter disciplinador, ordenador.

    Embora o apartheid tenha sido a sistematização política de um sistema de segregação racial na África do Sul, a origem da segregação não se dá propriamente a partir de sua institucionalização com este, ao contrário, ela é observada desde os tempos coloniais. Os primeiros colonizadores a chegar na África do Sul foram os holandeses, sobretudo protestantes calvinistas, na metade do século XVII, conhecido como bôeres², e se instalaram na Província do Cabo. No início do século XIX, os ingleses, para garantirem o caminho para as Índias, tomaram o Cabo, e com isso os bôeres, no episódio conhecido como Grand Trek, o que significa caminho sagrado, realizaram um grande êxodo em direção ao norte e iniciou-se a história dos agricultores migrantes holandeses e de seu enfrentamento com os xhosas, os suazis e os zulus), súditos do famoso rei nativo Tchaka; todos esses povos nativos do continente africano. O que fez com que os migrantes holandeses, também chamados de africânderes, deslocassem para o norte da África do Sul, é que estes não aceitaram submeter-se às leis britânicas, e também, quiseram conservar sua língua, seus valores e costumes, sobretudo, suas práticas religiosas. Aparentemente, quiseram evitar um conflito com os britânicos.

    Os africânderes, segundo a Igreja Reformada da Holanda, se auto-reconheciam como um povo com a missão de preservar as diferenças naturais de raça, apoiados na fé, que lhes fazia acreditar que igualar negros e brancos contrariava a lei de Deus.³

    Além disso, numa visão totalmente deturpada de cristianismo, acreditavam ainda que o cruzamento de raça também contrariava a vontade divina, da qual eles eram os únicos e verdadeiros intérpretes. Tal crença foi institucionalizada pela primeira Constituição do Transval, em 1858, e sem dúvida pode ser considerada como a origem do apartheid.

    Este livro aborda a trajetória de Steve Biko, relacionando-a à criação da SASO⁴ (Organização de Estudantes Sul-Africanos) e ao desenvolvimento do Black Consciouness Movement (BCM), bem como analisa a importância dessas organizações para a libertação da África do Sul, enfatizando, sobretudo, o papel psicológico e intelectual desses movimentos que tiveram sua origem nas universidades, mas alcançaram outras esferas da sociedade, como as escolas e as townships (comunidades periféricas muito pobres economicamente) etc.

    Como foi dito, o sistema do apartheid era baseado em algumas leis, a saber: a lei da proibição de casamentos mistos (1949); a lei da imoralidade (1950); a lei de registro populacional (1950); a lei de agrupamentos urbanos (1950) a lei dos nativos (1952); a lei de reserva de benefícios sociais separados (1953). Essas e muitas outras leis davam um caráter legal a esse sistema exploratório. Uma dessas leis foi a Lei de Educação Bantu (1953). É preciso observar atentamente que cada uma dessas leis deu ao sistema do apartheid um alicerce sólido para sua consolidação e ao mesmo tempo, tornaram legítima toda e qualquer espécie de violência empregada para manutenção desse sistema. A separação entre brancos e negros na África do Sul tornou-se institucional, e a sociedade passou a ser dividida em brancos, negros, mestiços e indianos. Essas leis visavam impossibilitar o acesso da maioria da população a benefícios sociais fornecidos pelo Estado. E dificultavam o acesso dos grupos subalternizados a empregos mais qualificados e a espaços de educação e lazer, etc. E consequentemente, negros e mestiços, tampouco, ocupavam espaços de poder político.

    Com a instituição dessas leis, não demorou muito para que o aparato do Estado favorecesse cada vez mais aos brancos e, consequentemente, a situação dos negros se tornasse cada vez pior, com salários cada vez mais baixos, trabalhos inferiores, e sem opção de moradia, são cada vez mais aglomerados nos township⁵, equivalentes as nossas favelas aqui no Brasil, criados a partir da Lei da Terra e a lei de áreas por grupos de 1924, na qual foi determinado que as cidades seriam territórios dos brancos e os negros só poderiam estar nelas quando trabalhassem para um branco.

    Frente a essas medidas e a uma situação na qual os negros tinham apenas 13% do território da África do Sul, embora fossem 77% da população, e só podiam circular nas áreas onde tivessem permissão através dos chamados passes que eram emitidos pelo governo, surgiu um forte movimento de resistência por parte dos negros. Em especial dois grupos se levantaram fortemente contra toda esta referida legislação, organizando congressos, protestos e manifestações.

    O primeiro grupo a se manifestar foi o ANC, Congresso Nacional Africano⁶, que foi fundado ainda em 1912. Em 1940, já era um partido forte, formado por negros, do qual fazia parte Nelson Mandela⁷. Porém, em 1960, no contexto da Guerra Fria, com a lei de Supressão do Comunismo, o ANC foi classificado como comunista e toda e qualquer doutrina comunista ou que viesse a subverter a ordem estabelecida na África do Sul foi considerada como ilegal. Assim, o ANC passou agir e se organizar na clandestinidade.

    O segundo grupo que se manifestou contrário ao apartheid, foi o que ficou conhecido como PAC, Congresso Pan-Africano⁸, fundado em abril de 1958 em Soweto⁹. Ele foi formado por alguns membros que romperam com o ANC por não concordarem com a inclusão de outros grupos raciais; discordavam de o ANC haver adotado o multirracialismo como programa e se unido inclusive ao Partido Comunista ainda em 1940. Robert Sobukwe¹⁰ foi eleito o primeiro presidente do PAC. Uma das manifestações mais conhecidas do PAC foi a campanha contra as leis do passe organizada em março de 1960, na qual todos os negros foram convidados a queimar seu passe e saírem sem este. Porém, mesmo sendo um protesto pacífico contra as leis do passe, foi reprimido com violência pela polícia em todo o país, causando uma verdadeira carnificina em Sharpeville, cidade próxima à Johanesburgo, onde, sem aviso prévio ou justificativa, abriram fogo contra a multidão, assassinando 69 pessoas e ferindo quase 200. Este foi apenas um dos exemplos de violência sofrida pelos negros, que sofriam as durezas do regime quase que diariamente. Estas leis fomentavam entra a população negra sul-africana um clima de medo e revolta.

    Foto em preto e branco deitado na terraDescrição gerada automaticamente com confiança baixa

    (Figura 1)¹¹

    Policiais caminham entre corpos de manifestantes mortos em Sharpeville | Foto de UPI/Arquivo

    (Figura 2)¹²

    De fato, os direitos constitucionais da África do Sul foram, até então, definidos com base nas diferenças raciais, e os traços físicos e a cor da pele determinariam, oficialmente, a posição dos cidadãos na hierarquia social. Em síntese, o racismo foi prenotado na Constituição da África do Sul nesse período, ou seja, passou a ser legal. Dessa maneira, desde 1948 até 1961 pode ser observada a implantação do apartheid. Já a partir de 1961 até 1976, o governo iniciou um programa de engenharia social: a política dos bantustões¹³, a ideia era que esses assentamentos fossem criados para limitar os negros dentro deste espaço físico. Essa política começou a ser implementada nos anos 50 do século XX, mas foi na década seguinte, sob as gestões dos primeiros-ministros Hendrik Vermwoerd e seu sucessor John Vorster, que sua execução assumiu um contorno mais definido e brutal.

    O sonho de Verwoerd e de Vorster foi realizar o ‘grande apartheid’, uma república sem negros, exclusivamente branca e dominada pelos africâneres. Negros, só como visitantes temporários, como trabalhadores migrantes, lançando-se no cruel paradoxo de ‘estrangeiros no seu próprio país’.¹⁴

    Após vários protestos feitos pelo Congresso Nacional Africano e também pelo Congresso Pan-Africano, que resultou na prisão de seus líderes ou no exílio, a luta antiapartheid se enfraqueceu durante alguns anos. Mas, em 1969, e, sobretudo, no início dos anos 70, nasceu um importante movimento, chamado de Black Consciouness¹⁵, fundado por Steve Biko. Este importante movimento foi influenciado pelo Black Power americano e pelos livros de Frantz Fanon¹⁶. Biko na época era estudante de medicina e lutou em favor de uma libertação do negro desse sistema opressivo desde o ponto de vista mental e de autoestima. Passou a defender uma libertação psicológica do povo negro oprimido na África do Sul como um meio de alcançar seu renascimento cultural e político. Posicionava-se contra as orientações da educação bantu, que instituíra uma educação de qualidade inferior e destrutiva do sistema de valores dos povos negros. Almejou, com sua militância, unir e consolidar o povo para restituir aos negros sul-africanos seu orgulho e dignidade humana.

    Acredito que, basicamente, a Consciência Negra se refere ao negro e à sua situação, e acho que o negro neste país é submetido a duas forças. Em primeiro lugar, ele é oprimido pelo mundo externo, através de mecanismos institucionalizados, por meio de leis que o impedem de fazer certas coisas, por condições de vida muito difíceis; e por uma educação inferior. Todos esses são fatores externos a ele. Em segundo lugar, e o que consideramos mais importante, o negro desenvolveu, dentro de si, certo estado de alienação. Ele rejeita a si mesmo, exatamente porque liga o significado de branco com tudo que é bom. Em outras palavras, ele iguala bom com branco. Isso provém de sua vida e de seu desenvolvimento desde a infância. Quando a gente vai para a escola, por exemplo, a escola não é igual à escola branca e, ipso facto, a conclusão que você tira é que a educação que você recebe lá não pode ser a mesma que os garotos brancos obtêm em sua escola (...) Então, isso faz parte da raiz de autonegação que nossos garotos recebem, mesmo enquanto estão crescendo. As casas são diferentes, as ruas são diferentes, a iluminação é diferente. Você então começa a sentir que há algo incompleto na nossa condição humana, e que o complemento vem junto com a brancura. Isso continua durante a vida adulta, quando o negro precisa viver e trabalhar (...)¹⁷

    Sem dúvida, esse movimento liderado por Biko deu origem a um florescimento de ideias, e até mesmo de produção cultural dos negros, oferecendo uma nova perspectiva diante da situação opressora. Convencidos de sua capacidade e de sua força, se colocavam cada vez mais organizados na luta contra o apartheid. Foi com base nessa visão de entender que não há nada de errado em ser negro, que alguns militantes então compreenderam que a luta deveria ser inicialmente de caráter psicológico e, só depois de enfrentado esse combate, se poderia encarar o campo político, social e econômico.

    Essa mudança de perspectiva não agradou o poder político dominante, que começou a ver as fragilidades do sistema repressivo e segregador que haviam construído. Porém, a resposta foi de mais opressão e violência. Diante disso, Steve Biko, apoiado principalmente por estudantes negros - o que havia dado a esse movimento um caráter também intelectual - organizou taticamente as manifestações do seu movimento, promovendo momentos de reflexão, e oferecendo bons serviços sociais dos negros para os próprios negros estimulando-os a contribuírem para a libertação de suas próprias consciências, a verdadeira mudança que seria um caminho sem volta: a mudança da própria mentalidade, a libertação psicológica, a afirmação da própria identidade.

    Em 1977, a caminho de um congresso de estudantes que ocorreu na Cidade do Cabo, Steve Biko foi preso, e alguns dias depois, morto. Embora Biko tenha sido assassinado, as suas ideias já estavam sólidas, e seu discurso não conseguiu ser calado. Iniciou-se assim, uma nova fase, de declínio do sistema do apartheid. Sem se dar conta, que ao assassinar Biko, o poder político criou uma espécie de mártir da causa antiapartheid. Com a morte de Biko, não se obteve controle sobre a força do movimento da Consciência Negra. Uma parte da população negra atingida pelas ideias de Biko passaram a não ter mais receio ou medo, pois havia reencontrado seus valores e sua própria riqueza, sua identidade.

    Ao longo deste livro apresento uma análise da história de Steve Biko, através dos seus escritos, especialmente os artigos escritos por ele e publicados na coluna Frank Talk no jornal

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