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Espelhos Internos
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E-book459 páginas5 horas

Espelhos Internos

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Sobre este e-book

Vigusto é um garoto enigmático, misterioso, imprevisível. Basta vê-lo uma vez e a curiosidade se instala. Nunca se sabe o que ele há de fazer. Você pode acertar uma ou duas vezes, mas não se acostume, não vai acertar sempre. Ele vai te surpreender e te fazer se identificar com suas loucuras em meio a uma busca: conhecer a si mesmo. Quando você perceber que a loucura não é um acaso, mas uma necessidade, entenderá que Espelhos Internos é o inesperado acontecer na vida de quem decide dar o primeiro passo. Ele se surpreendeu consigo mesmo, não é imprevisível apenas para os outros; é o preço que ele paga por ser do jeito que é: um pensador, um menino, um poeta, que decidiu amar a vida.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de set. de 2018
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    Espelhos Internos - Gustavo Vinícius

    Espelhos Internos

    A Vida de Vigusto

    Gustavo Vinícius

    Aos que mantiveram acesa sua luz em meio a tanta escuridão e entenderam que o amor inexiste sem resistência ao sofrimento, escrevo-vos com a esperança de que a vida ainda pode ser sentida com a profundidade da alma e do espírito.

    SUMÁRIO

    Capítulo 1

    Capítulo 2

    Capítulo 3

    Capítulo 4

    Capítulo 5

    Capítulo 6

    Capítulo 7

    Capítulo 8

    Capítulo 9

    Capítulo 10

    Capítulo 11

    Capítulo 12

    Capítulo 13

    Capítulo 14

    Capítulo 15

    CAPÍTULO 1

    Por trás de todo sucesso existe uma história surpreendente vivida por alguém que resistiu à tentação de desistir.

    – Gustavo Vinícius

    Meu nome é Vigusto Avenigma. É, eu sei, é estranho. Também me pergunto por que fui batizado com um nome tão diferente. Mas não dê importância a isso, seus questionamentos serão outros no decorrer deste livro, de tal forma que meu nome terá importância ínfima.

    Não sei ao certo como devo começar a contar minha história, mas sei exatamente o que quero dizer com ela. Às vezes é ruim perguntar às pessoas, elas costumam dar respostas óbvias. Se uma delas me dissesse para começar do começo, minha mente passaria a detestá-la e seria inundada por cenas horripilantes de agressões verbais ou de lutas sanguinárias, o que é melhor evitar.

    Na verdade, é difícil saber o que eu realmente pensaria, eu tenho uma mente imprevisível demais e que pensa muita coisa em pouco tempo. Portanto, costumo sublimar momentos assim usando sarcasmo: Ah, sua ideia é fenomenal! Precisamos convocar os gênios da sociedade e revelar a sua imensurável descoberta!.

    Enfim, como eu acredito que olhar para fora é a melhor maneira de evitar um erro e olhar para dentro é a melhor maneira de acertar, vou começar do ponto que me agrada: o ponto em que minha vida passou de parada para arrastada; infância que metaforizo como um gato deitado rendido aos encantos saborosos de um belo pedaço de carne jogado ao seu lado: leva um tempo para criar coragem, se levantar e comer, mas, quando come, pede mais e anseia pela sobremesa.

    Percebi que eu não estava entre os mais hábeis e disciplinados, no quesito estudar, na segunda série do ensino fundamental. Com efeitos sonoros estridentes, o professor arrastava o giz branco no quadro-negro – ou lousa, como preferir –, que ele costumava dividir em quatro partes fazendo riscos verticais.

    O completo desinteresse pela aula me levava a pensamentos distrativos. Enquanto o professor terminava de escrever na última parte da lousa, eu ainda copiava a primeira. Logo, ele apagou a parte que eu estava copiando. Tentei chamá-lo, mas falei baixo. Na verdade, quase não falei. Maldita timidez!

    Enquanto amaldiçoava minha timidez em pensamento, o professor arrastava o apagador na lousa com a mesma destreza que minha mãe esfregava a roupa suja na pia do tanque. Tive medo dessa similaridade. Minha mãe provavelmente rangeria a voz e diria: "Estou cansada de ser empregada. É tudo eu nessa casa, tudo eu!".

    Eu não esperava que o professor agisse dessa forma, mas também não esperava ouvir um canto manso a voz de anjo dotado de compreensão, afinal, quando ele se irritava, gritava silêncio! e jogava o apagador com força animalesca no suporte da lousa. Era o suficiente para causar impacto e fazer os alunos se calarem. Sendo assim, não arrisquei chamá-lo novamente.

    Pensei em copiar a segunda parte da lousa, mas não faria sentido com o que havia no meu caderno, e uma suposta falta de lógica seria, para os meus pais, a prova cabal de que eu havia sido um péssimo aluno.

    Eu nunca tinha perdido matéria na escola, então pensei: se meus pais descobrirem vão me dar uma surra ou vão me proibir de fazer algo que gosto, o que seria pior que a surra. Esse é outro problema, resolva o problema da escola primeiro, Vigusto!

    Se o professor percebesse que eu era o único que não estava copiando, poderia querer saber o motivo, e, levando em consideração que eu sou um desastre mentindo, achei melhor evitar.

    É claro que eu não considerava a hipótese de dizer a ele que sua aula era chata, é preciso ser muito ingênuo ou arrogante para acreditar que sinceridade sem filtro é uma boa característica, ainda mais quando se tem verdades difíceis de serem compreendidas.

    Dos vários pensamentos que tive, havia um que eu sequer considerava: pegar um caderno emprestado e copiar a matéria em casa. Primeiro porque eu achava que escola era lugar de estudar, e não é; segundo, porque era o que minha mãe me mandava fazer sempre que eu faltava à aula. Quem é doido o suficiente a ponto de desperdiçar o tempo sagrado de jogar videogame estudando?

    Além disso, se meus pais me vissem copiando matéria de outro caderno em casa eu teria que dar explicações, e dar explicações é a minha definição ápice de chatice!

    Portanto, fiquei fingindo que estava copiando, por mais entediante que fosse. De tempos em tempos eu olhava para o relógio de ponteiro que havia em cima da lousa, aguardando ressoar o sinal que anunciaria o término da aula, mas olhava-o de relance, para ninguém perceber.

    O tempo era lento!

    Eu não fazia o tipo sociável e meu único amigo naquele ano era o Flávio. Raramente digo que uma pessoa é inteligente, costumo dizer que ela tem muitas informações, e esse era o caso do Flávio, ele tinha tudo anotado no caderno. Às vezes nem ele sabia o que fazer com tantas anotações. Puxar conversa com ele durante a aula seria como pedir para um intelectual ler revista de fofoca, não rola.

    Quando soou o tão esperado sinal, fiz jus aos poucos momentos em que me apelidaram de Ayrton Senna¹, sempre o último a chegar e o primeiro a sair, mas é claro que o apelido era devido somente à segunda característica.

    Esse apelido não grudou. Geralmente os apelidos que grudam são pejorativos, principalmente quando o apelidado reage negativamente a eles, e eu não fazia isso, mas não era por falta de vontade.

    Da escola à minha casa levava aproximadamente quinze minutos a passos moderados. Era perto. O problema é que eu ia com o meu irmão mais velho, Leandro, o que tornava o caminho tão longo quanto à distância entre o Monte Caburaí e o Arroio Chuí².

    Entrar na minha casa era sinônimo de encontrar minha família, ou melhor, os outros integrantes dela: minha irmã caçula, Karen; meu pai, Amadeu; e minha mãe, Janaína.

    Se você foi atencioso até aqui, deve ter percebido o alvo que eu carrego na testa. Se ainda não entendeu, eu explico: existem coisas que só entende quem é, e quem não é pensa que todo filho do meio é paranoico, o que é uma grande mentira; se você tiver um revólver carregado com apenas uma bala, tendo como alvo três garrafas alinhadas na horizontal, vai mirar na garrafa do meio, assim, ainda que erre o alvo, terá maior probabilidade de acertar uma das outras garrafas. É assim que a vida de um filho do meio funciona.

    Entrei em casa mansamente, à base de calafrios, como aconteceria com qualquer criança de sete anos ao pensar que fez alguma coisa errada e que precisa esconder dos pais.

    Sentada no sofá da sala de estar, minha mãe lia um livro.

    Tentei evitar contato com ela indo rapidamente para o meu quarto, mas ela me chamou pelo nome, o que me paralisou e fez meu coração acelerar. Percebi certo tom de desconfiança em sua voz, ainda que seus olhos permanecessem fitados no livro.

    – Oi, mãe – respondi, com a voz embargada, quase sem conseguir olhar para ela.

    Ela me olhou e arqueou as sobrancelhas, inclinando levemente o rosto, fazendo aquela cara de tem algo a me dizer?.

    Andei apressado para o meu quarto.

    Minha mãe era psicóloga, mas tinha dado uma pausa na profissão para se dedicar à família, pelo menos enquanto tivesse filhos pequenos, era o que ela dizia. E dizia também que se sentia mais realizada assim, ainda que filhos e profissão fossem insubstituíveis. Ela nunca parava de estudar, parecia que estava sempre se preparando para retornar à profissão, vivia dizendo que um bom psicólogo jamais deve parar.

    Minha mãe tinha muitas amigas que viviam indo à nossa casa para desabafar e pedir conselhos. Apelidamos esses momentos de TGA, Terapia Gratuita das Amigas, mas ela dizia que era apenas amizade e que terapia ia muito além. Era comum ouvi-la dizer às suas amigas frases do tipo: O que acontece na infância não fica na infância, é a fase em que o pai e a mãe devem estar mais presentes na vida de um filho. O que é feito em segundos pode levar anos para desconstruir.

    Eu estava sentado sobre a cama, tentando esconder a preocupação que estampava meu rosto. Não havia sequer tirado o uniforme da escola quando escutei dois toques na porta do quarto antes dela se abrir.

    Colocando apenas o rosto à mostra, minha mãe perguntou se podia entrar e, quando assenti com a cabeça, ela se sentou ao meu lado.

    – Não quer me contar o que aconteceu? – ela perguntou.

    – Nada – respondi, com a voz embargada, cabisbaixo. Convenhamos, nem eu acreditei em mim.

    – Tudo bem, então. Como foi o seu dia?

    Uma das qualidades de minha mãe era a facilidade que tinha em fazer as pessoas se abrirem, mas, naquele momento, eu não queria me abrir, então o silêncio se fez presente.

    Minha mãe me olhava de cima a baixo, sem dizer uma palavra. Parecia esperar alguma reação. Permaneci cabisbaixo, enxergando-a com a visão periférica. Sempre tive dificuldade em retribuir olhares, essa coisa de olhar nos olhos fazia eu me sentir nu.

    Por fim, ela perguntou:

    – Quer jogar videogame?

    Abri um sorriso largo e reluzi meu olhar. Mudei de fisionomia repentinamente e abracei minha mãe. Ela sorriu e retribuiu a intensidade do abraço. Minha mãe sabia que videogame era o meu refúgio e que, depois de jogar, eu contaria tudo a ela, exatamente como aconteceu.

    EU NÃO GOSTAVA de mudar de cidade, mas meu pai dizia que era necessário. Na quinta série eu mudei novamente. Perdi contato com o Flávio e dessa vez não fiz nenhuma amizade na escola. Por não ter com quem conversar, prestei mais atenção às aulas e minhas notas subiram consideravelmente. O tempo foi passando e eu fui me acostumando com aquela cidade e com os rostos conhecidos da minha classe na escola.

    No primeiro dia de aula do ano seguinte, na sexta série, havia papéis grampeados em um mural na escola. Analisei a lista e procurei o meu nome e a minha classe. Quando os encontrei, uma sensação gélida oriunda das entranhas se espalhou pelo meu corpo.

    Fui à sala de aula e fiquei paralisado rente à porta. Respirei fundo e senti as batidas aceleradas do meu coração.

    No primeiro passo porta adentro, os outros alunos foram se calando e olhando para mim, pouco a pouco, um a um, como uma fagulha originando um incêndio.

    Estagnei. Passei os olhos pela sala à procura de um lugar vago.

    A folha no mural dizia que havia quarenta alunos na classe nova, mas eu tinha a sensação de estar entrando no coliseu de Roma³. E, para piorar, só havia um lugar vago na parte frontal da sala, no lado oposto à porta de entrada. Caminhar até ela foi angustiante!

    Não sei por que as pessoas não conseguem apenas pensar: tem um garoto estranho entrando na sala de aula; elas precisam cutucar o amigo, te olhar com estranheza e apontar o dedo para ficar ainda mais constrangedor! Parecia que eu vinha de outro planeta.

    Sei que minhas roupas não eram grande coisa, às vezes eram as mesmas que eu dormia, sei que eu não era muito vaidoso também... é, está bem, eu era estranho. Mas não precisavam me olhar como uma criatura não identificada.

    Naquela época, eu era açoitado pela solidão. Era uma solidão diferente, daquelas que se sente mesmo estando rodeado de pessoas. Um tipo muito ruim de solidão, talvez o pior.

    Assim que a aula terminou, fui conversar com a professora de matemática, a única pessoa que eu conhecia naquela sala de aula.

    – Olá, Vigusto, é bom te ver aqui! – ela disse, entusiasticamente, enquanto eu me aproximava. Para mim, o entusiasmo era forçado.

    – Eu não devia estar aqui – falei. – Deve ter acontecido algum engano, professora, essa não é a minha classe.

    – Não houve engano algum, apenas uma alteração projetada pelos professores e coordenadores.

    – Então devem ter me projetado errado.

    Ela suspirou. Depois esboçou um sorriso de lábios cerrados.

    – Tenho certeza que não. Selecionamos os alunos mais inteligentes e os menos inteligentes e os colocamos em salas compatíveis, assim poderão se adaptar melhor. Você devia se orgulhar...

    Antes que ela concluísse o discurso, compreendi que meu erro foi ter elevado minhas notas no ano anterior. Percebi também certo tom de falsidade nas expressões da professora. Ela disse menos inteligentes, mas queria dizer burros.

    Tentei contornar a situação. Não foi fácil ir até a professora, precisava valer a pena.

    – Acha que sou inteligente? – perguntei. – Tirei aquelas notas no ano passado por acaso.

    – Vigusto, por que não tenta? Se não der certo, a gente vê o que faz.

    A expressão mais usada pelos mentirosos é vou ver e qualquer derivação dela, como a gente vê o que faz. Eles dizem que vão ver e realmente veem, mas é tudo o que fazem. Então me responsabilizei por fazê-la entender o tamanho do erro que estava cometendo.

    Fiz amizade com o Geandro, o garoto mais bagunceiro da classe. No começo eu não entendia o porquê de ele estar ali, já que era um lugar de nerds. Mais tarde descobri que ele era considerado má influência, então o colocaram onde acreditavam que ele poderia ser bem influenciado por outros alunos.

    Porém, para o azar dos professores e coordenadores, ele conheceu a mim. Dia após dia nós conversávamos e bagunçávamos na sala de aula, incansavelmente. Eu, que já detestava fazer tarefas de casa, parei de vez, e, em sala de aula, sequer abria o caderno.

    Depois que criei a meta de voltar para a minha classe, tudo o que me causava medo parou de me afetar. Eu ignorava qualquer coisa que não me ajudasse a conquistar o meu objetivo.

    Duas semanas bastaram para a professora de matemática me chamar para conversar a sós, momentos após a aula.

    – Você precisa parar com isso, você não é burro! – ela disse, em alto tom. – Você é inteligente, tanto que está se esforçando para se fazer de burro!

    Seu tom de voz era ameaçador, mas não me importava. Não baixei a cabeça um segundo sequer, mesmo sentindo ardência no coração. Encarei-a. Olhei-a friamente nos olhos. Ela prosseguiu:

    – Aqueles garotos que estudavam contigo no ano passado não conseguem sequer pensar como você! É a natureza deles, não a sua, e é por isso que você está aqui e não com eles. Eles são burros!

    Sabia que ela queria chamá-los de burros!

    – Eu não quero me separar deles – falei com firmeza.

    – Você não vai voltar – ela retrucou à altura.

    – Mas eu também sou burro. Vou precisar zurrar para você acreditar?

    No desespero, eu comecei a zurrar. Sim, fiz uma imitação barata e espalhafatosa de um animal que tomamos o nome para adjetivar pejorativamente alguns seres humanos.

    A professora logo me interrompeu.

    – Pare! Está ridículo! Você não pode desperdiçar sua vida só porque se sente inseguro em um novo ambiente.

    Ela desviou o olhar, virou-se e suspirou profundamente. Depois tornou a olhar para mim, aproximando-se sem rispidez. Olhou-me nos olhos e falou, de forma suave e inspiradora:

    – Você é diferente. Sei que não entende agora e talvez por isso sinta que não se encaixa no mundo. Tudo o que o mundo diz que está errado em você pode ser o que há de mais inspirador. Você é um tipo de pessoa que existe em cada cem, não queira ser como as outras noventa e nove. Se voltar para o ponto de acomodação, vai acreditar que aquilo é o suficiente para você, que aquele é o seu limite, e não é! Sei que você tem medo de se mostrar ao mundo, mas o mundo precisa ver o que existe na sua mente e no seu coração. Eles precisam sentir a força do seu espírito. Eu vejo essa força em você. Eu sinto essa força fluindo dentro de você! Você possui capacidades para transformar o mundo, mas o sistema no qual você vive não quer que você as encontre, pois você se tornaria uma ameaça para ele. Não reprima suas ideias, não mate seus pensamentos, destrua as amarras do politicamente correto e tenha fé na sua capacidade espiritual! Você vai encontrar respostas que não querem que você encontre, e talvez seja até odiado caso venha a expressá-las, mas é preciso ter coragem para se encontrar consigo mesmo e se tornar a pessoa que você realmente é. A única coisa que eu te peço é para não retroceder. Por favor, pelo seu próprio bem, não recue... siga em frente.

    Minhas emoções se afloraram. Aquelas palavras avivaram meu coração e penetraram minha alma. Fiquei desprovido de reação. Mas bastou um momento para eu reprimir tudo o que sentira.

    – Eu só quero voltar para a minha classe – falei.

    – Você não escutou nada do que eu disse?

    O plano B foi apelar para os meus pais, mas também não deu certo. Bastou-lhes ouvir a professora dizer que eu estava acima da média que meus pais não moveram um dedo sequer para me ajudar. A professora sorria e me olhava de relance enquanto apalpava o ego deles, elogiando o suposto filho de alta inteligência. Argh! A pior parte de ver um sorriso falso é ser o único a perceber a falsidade.

    Mantive minha amizade com o Geandro, mas ele faltava demais à escola para jogar videogame. Às vezes eu faltava junto, mas tinha medo dos meus pais descobrirem, então voltei a prestar mais atenção às aulas.

    Geandro era feliz do jeito dele. Era raro vê-lo reclamando da vida. Apesar de ter diminuído os momentos que passávamos juntos, inclusive jogando videogame, estar com ele era divertido. Ele tinha o dom de fazer a vida parecer uma grande comédia.

    Dias depois, a professora de literatura, Lucinha, pediu aos alunos que fizessem uma poesia. Eu não gostava de copiar nem de decorar, mas de criar, sim. Segundo a professora, a poesia era aberta e sem nenhuma restrição. Depois ela explicou a diferença entre poema e poesia: poema é montado em palavras, seguindo determinadas regras, o que não deixa de ser uma forma de poesia; poesia é todo tipo de arte que produz emoção, profundidade e linguagem poética, seja através de sons, ritmos, significados, imagens ou qualquer forma de expressão.

    Com o coração acelerado, pernas bambas e mãos trêmulas, levei a poesia à professora assim que terminei de escrever. Ainda bem que é difícil uma pessoa comum enxergar por fora o que sentimos por dentro. Eu disfarçava a ansiedade e acompanhava a pupila dos olhos da professora decodificando cada palavra escrita no papel.

    É estranho saber que estou

    Em um caminho perdido

    Frente ao desconhecido

    E com a vida, desiludido.

    Sinto-me só e confuso

    Por ser tão diferente

    É tão difícil mudar

    Começar novamente.

    Quando as opções acabam

    E as forças chegam ao fim

    Rendo-me à infelicidade

    É necessário ser assim?

    Aos onze anos tive minha ascensão poética. A professora da sexta série olhou-me e sorriu ao terminar a leitura, perguntando:

    – Posso ler para os outros alunos?

    Inseguramente, permiti. Ela lia melhor do que eu, e, quando terminou, vi, ouvi e recebi meus primeiros aplausos. Apesar de não saber o que estava acontecendo, sei exatamente o que aconteceu: era o início da história de um pequeno poeta.

    MOREI APENAS DOIS anos naquela cidade. Perdi contato novamente com o meu único amigo, dessa vez o Geandro. Sei que hoje em dia mudar de cidade não significa perder contato, é possível mantê-lo pela internet, mas, naquela época, início do século XXI, a internet não era tão acessível assim, pelo menos no Brasil.

    Com o passar do tempo, fui aprendendo a não sentir saudades. Eu era o exemplo mais claro de que as pessoas podem ir embora a qualquer momento e que ficar nem sempre depende delas.

    Após o meu décimo segundo aniversário, minha família e eu nos mudamos para Nova Cidade⁴. Viajávamos em nosso carro de cor preta e formato curvo. Prevendo seis horas de viagem, a distância não me preocupava. Animava-me saber que o rádio ficaria ligado durante toda a viagem.

    Músicas poéticas sempre me revigoravam. Queria poder expressar o quanto é vívida a sensação de viajar apreciando boas músicas junto à paisagem natural no horizonte das estradas brasileiras.

    Queria poder expressar também o quanto eu me irritei quando meu pai desligou o rádio.

    – Pai, por que desligou? – perguntei, indignado.

    – Ele desliga quando quiser, ele manda aqui! – atravessou Leandro, meu irmão mais velho.

    Franzi o rosto em sua direção.

    – Não falem nesse tom! – disse meu pai. Após uma pequena pausa e um suspiro, mantendo as mãos no volante e o olhar na estrada, prosseguiu: – Não tínhamos escolha. Essa cidade não é melhor do que as outras em que moramos, mas é onde vamos viver os próximos anos. Sei que é difícil, mas precisam aceitar a realidade.

    – Eu aceito – falei. – E aceito a próxima cidade depois dessa, e a próxima e a próxima e a próxima e a próxima...

    – Ah, Vigusto, não seja dramático! – meu pai impôs a voz de forma rude, interrompendo minha repetição de palavras.

    – Amadeu! – minha mãe o repreendeu de imediato.

    Meu pai respirou fundo, bufou e deu uma rápida olhada de canto para minha mãe antes de tornar a falar.

    – Não mudaríamos se não fosse necessário.

    – Por que é necessário? – perguntei.

    – Não acha que está fazendo perguntas demais, garoto? – retrucou meu pai, com uma palha de seu temperamento sanguíneo.

    – Não, ele não está – respondeu minha mãe. – Aliás, não seria má ideia escutar uma resposta convincente.

    Havia um quê de misterioso no meu pai. De repente ele dizia que precisávamos mudar de cidade e a gente mudava, mas nunca sabíamos o verdadeiro motivo, o que era ruim, pois quando não se tem respostas é normal imaginá-las. O problema é que imaginá-las facilita errar a interpretação. Eu achava que era porque meu pai prendia muitos bandidos e os direitos dos manos⁵ sempre os soltavam.

    Eu admirava meu pai. Ele nunca deixava faltar nada para nossa família e estava sempre dando a cara à tapa⁶ por nós. Minha mãe não escondia seus encantos por ele. O problema é que ele ficava muito áspero quando se irritava e acabava magoando alguém.

    Com a cor de pele parda e estatura média para os seus trinta e sete anos de idade, físico em forma, cabelos crespos, curtos e pretos, da cor de seus olhos, meu pai só se acalmava quando minha mãe o acalmava.

    – Precisamos aceitar o rumo que nossas vidas tomaram, não é? – disse minha mãe a todos no carro. Olhou para o meu pai e, sobrepondo a mão em seu ombro, expôs uma voz suave. – Confiamos em você. Vamos fazer dar tudo certo outra vez.

    Seus lisos cabelos loiros enfeitavam suas feições de mulher séria. Seu corpo magro, estatura baixa e olhos castanhos claros conquistavam a atenção de qualquer par de olhos masculinos. Seus trinta e cinco anos de idade passavam despercebidos ante seus traços de menina mulher.

    Minha mãe sempre sabia o que dizer, na hora certa de dizer. Porém, tinha o costume de cuidar muito dos outros e pouco de si mesma, como se seus conflitos fossem menos importantes que os dos outros.

    Vamos fazer dar tudo certo outra vez, grande bosta! – disse Leandro, repetindo as palavras de minha mãe com desdém.

    Meus pais não o ouviram, mas ouvi-lo me irritava.

    Leandro era o tipo de irmão mais velho que ninguém desejaria ter. Ele se achava a última bolacha do pacote⁷ e não conseguia ter uma amizade que durasse ou fosse maior que seu ego, era antipático e não parecia pertencer à família. Tinha o porte físico quase gordo, cabelos castanhos claros enfeitados com um topete, olhos castanhos escuros, cor de pele branca e catorze anos de idade materializando toda sua arrogância e chatice.

    Enquanto nossa ínfima discussão ocorria, minha irmã caçula, Karen, brincava com uma boneca de plástico que parecia um bebê de verdade. Ela não se importava com nada do que dizíamos. Era a única que se divertia após desligarem a música.

    Karen era introvertida, mas todos gostavam de tê-la por perto, seu senso de humor era indescritível! Falava pouco com desconhecidos, mas bastante com quem criava laços. Como a maioria dos filhos caçulas, ela era a protegida da família. Fisicamente, era a versão miniatura da mãe. Naquela época, tinha dez anos de idade.

    – Pode ligar a música agora? – perguntei, após longo silêncio.

    Com o mínimo de expressões possíveis, meu pai ligou o rádio.

    O lado bom de ser um eclético é que as opções aumentam consideravelmente. Porém, no âmbito musical, o Brasil estava passando por um processo de emburrecimento. Era comum passar pelas rádios e escutar composições que se limitavam a louvar prazeres genitais, bundas, ostentação de bens ou qualquer coisa tão fútil quanto essas. Às vezes era necessário procurar muito para encontrar uma boa música.

    E lá estava eu, com pensamentos distantes e o olhar atravessando a janela do carro. Moreno de olhos castanhos escuros, cabelos curtos e pretos, porte físico magro e estatura baixa. Carregando meus doze anos de idade e a dificuldade para me expressar e me encaixar no mundo.

    De repente, meus pensamentos dispersados se alarmaram. À beira da estrada, num outdoor, estava escrito Quem é você? com letras bem expressivas. Logo abaixo, Nosce Te Ipsum em tamanho um pouco menor. Ao lado dessas palavras havia a imagem esculpida do que parecia ser a estátua de um homem barbado da Antiguidade.

    Aquela pergunta se tornou uma porta de entrada para outras. Além de quem sou eu, questionei-me também quem desejo ser, como as pessoas me veem, como eu gostaria que me vissem, por que vivo e o que penso de mim. Por fim, pensei no que cada resposta revelaria a meu respeito. De fato, eu precisava encontrá-las.

    CHEGANDO A NOVA Cidade, fomos recepcionados com simpatia exibicionista, como se o ambiente quisesse nos receber bem. Era uma cidade pequena, habitada por volta de quarenta mil habitantes, e, dentre os quarenta mil, trinta e nove mil tinham a língua solta, algo fácil de descobrir quando se mora em cidades desse tamanho.

    O emprego do meu pai, por exemplo, era muito comentado, algo que fui descobrir posteriormente. Eu nunca tinha visto um delegado de polícia civil dar tanto ibope⁸. Em geral, os delegados não viajam tanto, mas meu pai era um caso à parte.

    Quando chegamos a nossa casa, fizemos tudo o que costumávamos fazer quando nos mudávamos: descarregamento do caminhão de mudanças, faxina geral, organização dos cômodos e móveis, entre outros quesitos de ambientação. Depois saímos em família para lanchar e conhecer um pouco da cidade.

    A casa era espaçosa: havia dois banheiros, um no corredor e uma suíte; uma vasta cozinha; um quintal traseiro com uma sombrosa árvore no centro rodeada por gramado; e havia quatro quartos, o que eu considerava o perdão dos meus pecados, pois não precisaria cumprir a pena de dividir um quarto com Leandro.

    A melhor parte da mudança foi descobrir que a duas quadras de casa havia uma lan house chamada Casa Virtual com computadores e videogames de última geração, e, na esquina adiante, uma locadora de filmes. Era como ter o paraíso na vizinhança!

    Depois de algumas semanas, minha mãe e eu fomos me matricular na escola pública, diferente dos meus irmãos, que ingressaram em escolas particulares.

    O lado bom dessa desigualdade familiar foi que meus irmãos e eu ficamos em escolas diferentes, por isso não me importei quando meus pais começaram a falar da situação financeira da família, da bolsa escolar e blá blá blá. Na verdade, eu não gostava de estudar, e, para quem não gosta de estudar, a melhor opção é a escola pública, o esforço que ela exige do aluno para ser aprovado é o mínimo do mínimo do mínimo do mínimo do mínimo.

    Estávamos no meio da tarde de um dia de semana, ainda nas férias de verão. O cenário de entrada da escola tinha aparência arcaica. Tive a sensação de estar entrando em uma daquelas casas imensas com várias janelas laterais, dois andares e aparência assombrosa dos filmes de terror.

    Ao entrarmos no corredor da área administrativa da escola, o tratamento que recebemos foi inusitado. Parecia que aquela senhora baixinha e franzina, de cabelos curtos tingidos de preto, esboçando um sorriso que me parecia um tanto forçado, de alguma forma nos conhecia.

    – Ah, é muito bom ver vocês! – disse, vindo em nossa direção, estendendo os braços.

    Minha mãe e eu nos entreolhamos. Dei de ombros.

    A senhora nos cumprimentou.

    – Nos conhecemos? – perguntou minha mãe.

    – Ainda não, mas são rostos novos, devem ser da família do novo delegado. Você deve ser a Janaína. – Então olhou para mim, apontando-me o dedo indicador. – E você, mocinho, deve ser o Leandro.

    Fechei a cara. Não considerei

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