Festival De Uma Cia Só
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Festival De Uma Cia Só - Marcus Villa Góis
INTRODUÇÃO
O projeto de extensão da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS: Festival de Uma Cia Só
; também campo de pesquisa da tese de doutorado: Festival de uma Cia Só – A Dramaturgia do Ator em Improvisações Inspiradas na Commedia dell’Arte
do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas – PPGAC-UFBA; foi selecionado no edital de montagem Manoel Lopes Pontes 2010, da Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB), órgão vinculado à Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, e foi realizado entre os meses de janeiro a abril de 2012.
Esse projeto consistiu na criação de uma série de espetáculos improvisados por um único grupo de atores. Os espetáculos foram criados a partir de roteiros do século XVII da Commedia dell’Arte, adaptados para sete atores e improvisados perante o público. Fizemos um treinamento teatral de 15 dias com os atores. Em seguida, durante 12 semanas consecutivas, ensaiávamos por dois ou, no máximo, três dias (duas ou três horas diárias) e, nos dois dias seguintes, apresentávamos o espetáculo. Foram 11 espetáculos diferentes nos teatros: Gamboa Nova, Martim Gonçalves, Café Teatro Sitorne e Teatro do Sesi, em Salvador, na Bahia. Os ingressos foram a preços populares. A divulgação foi feita por meio de cartazes, da mídia social e da mídia espontânea e difundiu o fato de que em cada semana seria apresentado um espetáculo diferente de maneira improvisada.
Dos sete atores que compunham o elenco original em 2010, somente Maurício de Oliveira (Capitão e Flávio) e maestro Álvaro Lemos (Graciano) permaneceram. Além destes, foram agregados Cristiane Pinho (Isabela e Hortência), Zé Carlos Deus Jr. (Arlequim), Marcos Machado (Pantaleão e Colombina), Marilia Cunha (Flamínia e Francisquinha) e Rogerio Thomas (Horácio e Covielo). Só podemos fazer elogios a este elenco que superou todas as dificuldades financeiras para estar presente, de maneira atuante e harmoniosa. A primeira parte da verba só saiu um mês depois da estreia do Festival, a segunda somente em agosto de 2012. A competente produção foi de Poliana Bicalho conseguindo todo o material necessário para as apresentações semanais. Jean Luís Amorim contribuiu na contra-regragem e na percussão.
O figurino foi concebido e selecionado dos acervos do Studio de Teatro Sitorne e do Boca de Cena por Karina Allata, eram as condições nacionais de atores baianos que queríamos ressaltar como realidade, e, por isso, foram evitados os tecidos pesados ou demasiadamente brilhantes; optamos por tecidos crus e somente os adereços de cores mais vivas.
O cenário, de Maurício Pedrosa, teve um único praticável, quadrado, de 1,80m², com 40cm de altura e três vistas pintadas em cortinas: uma externa da cidade, uma interna de uma casa (com duas janelas laterais) e uma do campo (para as pastorais). Não existiu disfarce, não foi para parecer uma parede, não esticamos o tecido em uma armação de madeira. O cenário foi pensado como dobrável para que pudéssemos apresentar o maior número de vezes possível.
A luz, de Telma Gualberto, era simples, mas diferenciava a noite do dia, o clima romântico, em contraponto ao de tensão ou de confusão e correria, seguindo os momentos improvisados dos atores. O que importou foi a ação destes, imprimindo uma relação viva e dinâmica entre as personagens.
A música, ao vivo, composta pelo maestro e ator Álvaro Lemos, executada também pelos atores, pontuou momentos do espetáculo e criou o clima das cenas, traduzindo ao nosso tempo o que os roteiros e a direção queriam transmitir.
A Commedia dell’Arte serviu como inspiração para o processo de trabalho. Percebemos o quanto os canovacci da Commedia dell’Arte eram de difícil interpretação para os atores, principalmente no que concerne aos improvisos. Portanto, selecionei 12 canovacci, traduzi sete e adaptei todos para os sete atores. Muitas cenas saíram, cortei personagens, criei um sentido para cenas incompreensíveis dos originais e, por fim, enumerei as cenas por entrada de personagem, independentemente do ato a que pertenciam.
Os canovacci não correspondem às expectativas com as quais costuma-se encarar textos dramáticos. Não encontraremos nesses roteiros da Commedia dell’Arte as falas das personagens, a não ser em alguns momentos em "Selva de Conceitos Cômicos de Plácido Adriani (TESTAVERDE, 2007, p.757 e 802), no qual coloca-se tais falas no final do roteiro, como apêndice. Aqui, em
A Falsa Defunta", mantive pequenas frases de Pantaleão porque foram oriundas de uma improvisação anterior, com outros atores. Se é verdade que aqui ou ali encontram-se algumas falas, também é verdade que nas improvisações os atores acabaram por ignorá-las.
A etimologia do termo canovaccio é a mesma de um tecido fabricado a partir do cânhamo por tratar-se somente da trama, do tecido que se liga em várias direções, mas que deixa as pontas de fios expostas. Conforme Barni, tradutora de Flaminio Scala para o português do Brasil, até mesmo a tradução pode complicar a compreensão do significado da representação. Os roteiros de Scala são compostos:
de uma sumária descrição da ação, que já passou por uma espécie de ‘codificação técnica’ [...] mais completo do que costumam ser as rubricas de praxe [além disso] a distância temporal e cultural cria ulteriores dificuldades de compreensão da língua de partida e, consequentemente, à sua tradução na língua de chegada. No que concerne à língua ‘italiana’ utilizada por Scala, de que língua está falando? Afinal, aquela era ainda uma época de incertezas linguísticas (BARNI in SCALA, 2003. p.46-47).
Os canovacci são de difícil compreensão, muitas vezes é complicado até mesmo descobrir qual o significado coerente para o entendimento da cena, eles também são conhecidos como scenari, literalmente: cenários. Diferente de um texto dramático com as falas escritas, o roteiro possui uma imagem primordial que remete à ação dramática, ou seja, antes que as imagens do roteiro se configurem em uma fábula, elas ilustram uma ação cênica. Enquanto as imagens de um texto dramático, com as falas escritas, remetem diretamente ao conteúdo de uma fábula ou história, as imagens de um roteiro de Commedia dell’Arte remetem ao teatro. No primeiro caso, ao ler um texto dramático, pergunta-se o que está acontecendo, ou o que acontecerá às personagens. Já nos roteiros de Commedia dell’Arte, pergunta-se o que deve acontecer na cena para que aquela ação seja crível.
O trabalho do ator não se conclui com a memorização das falas, ele deve criá-las, para isso deve compreender as ações dramáticas. O roteiro é pleno de ações dramáticas que as personagens devem cumprir. Pode-se pensar estas ações representadas em um quadro, ou ainda, imagens das cenas compostas para o palco que formam um cenário, uma organização, uma situação. Esta situação pode se transformar, deixar de ser figura e passar a compor o fundo do quadro. Para isso, surgirá outra personagem, ou mais raramente outra situação, desorganizando o que havia sido construído. Nisto
é uma palavra bastante recorrente nos roteiros de Scala que indica a passagem da figura ao fundo da composição, em uma visão gestáltica. Uma situação criada, como em um quadro onde se vê uma cena. Este quadro é um nó de tensão dramática onde será acrescido um elemento que dominará o próprio quadro, mas não sem traumas. Este elemento trará o conflito. É a própria imagem do teatro.
Além dos roteiros traduzidos por Barni selecionei alguns publicados por Ana Maria Testaverde para criar a coleção do Festival de Uma Cia Só. Os canovacci de Scala têm um núcleo de personagens que se repetem com muita frequência (Pantaleão, Graciano, Horácio, Flávio, Flamínia, Isabela, Francisquinha, Capitão, Arlequim e Pedrolino), no entanto foram usados somente cinco desses roteiros. Os outros sete possuem personagens bem diferentes. Citarei somente os mais importantes: Flavia, Silvio, Zanni, Buratini, Hortência, Oste, Oliveta, Diana, Curzio, Lidia, Ardélia, Tofano, Lelio, Francatripa, Mago, Ponsevere, Eduardo, Roseta, Cola, Ângela, Valério, Pulcinella, Covielo, Niso, Antiminia, Evandro, Dorina, Fileno, Zoroastro, Espírito, Latanzio, Clori, Tisbe. Eu precisei reduzir todos esses personagens a 12, pois contávamos com sete atores. Na adaptação dos roteiros fiz com que o Arlequim ganhasse um destaque que não possuía. Por exemplo, Pedrolino, Zanni, Francatripa, Pulcinella, Buratini se transformaram em Arlequim; Flávia, Oliveta, Diana, Ardélia, Dorina, Clori e Tisbe se transformaram em Isabela ou Flamínia; Oste, Curzio, Lelio, Eduardo, Valério, Evandro, Fileno, Latanzio se tornaram Flávio ou Horácio. O importante era que o mesmo ator não fizesse dois personagens que estivessem em cena ao mesmo tempo.
Além dos 12 personagens principais já descritos, ainda compareceram alguns secundários como músicos, policiais, carregadores, médico, espíritos, leão e orixás o que obrigou a uma intensa troca de figurino e fez da máscara uma grande aliada. Criei uma tabela relacionando o ator e a personagem, por espetáculo, que figura no final deste livro. Acreditei que corresponderia melhor aos roteiros trabalhar com duas atrizes e cinco atores, mas talvez funcione também com três atrizes e quatro atores.
De fato, estreamos o Festival de Uma Cia Só, somente em dois de fevereiro de 2012, no dia de Yemanjá, com o roteiro A Fonte Encantada de Yemanjá. Provavelmente foi a dinâmica de relacionar os espetáculos aos fatos e às datas históricas e