Fazer estado, produzir ordem: Gestão do conflito urbano em projetos sociais para a juventude vulnerável
De Luana Motta
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Fazer estado, produzir ordem - Luana Motta
Fazer estado, produzir ordem
Logotipo da Universidade Federal de São CarlosEdUFSCar – Editora da Universidade Federal de São Carlos
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fazer estado, produzir ordem
gestão do conflito urbano em projetos sociais para a juventude vulnerável
Luana Motta
Coleção Marginália de Estudos Urbanos
Volume 6
Logotipo da Editora da Universidade Federal de São Carlos© 2021, Luana Motta
Imagem da capa
Samuel Benjamin Liebmann
Capa/Projeto gráfico
Vitor Massola Gonzales Lopes
Preparação e revisão de texto
Marcelo Dias Saes Peres
Vitória Ferreira Doretto
Editoração eletrônica
Alyson Tonioli Massoli
Editoração eletrônica (eBook)
Alyson Tonioli Massoli
Coordenadoria de administração, finanças e contratos
Fernanda do Nascimento
Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitária da UFSCar
Motta, Luana.
M921f Fazer estado, produzir ordem: gestão do conflito urbano em projetos sociais para a juventude vulnerável / Luana Motta. -- Documento eletrônico. -- São Carlos: EdUFSCar, 2022.
ePub: 11.3 MB.
ISBN: 978-65-86768-74-9
1. Sociologia urbana. 2. Conflito urbano. 3. Juventude vulnerável. 4. Práticas estatais. 5. Projetos sociais. I. Título.
CDD – 307.76 (20a)
CDU – 316.334.56
Bibliotecário responsável: Ronildo Santos Prado – CRB/8 7325
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônicos ou mecânicos, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema de banco de dados sem permissão escrita do titular do direito autoral.
Para o Pedro e para o Paulo Roberto, separados por uma desigualdade brutal.
Na esperança de um mundo onde vocês sejam simplesmente felizes.
Sumário
Lista de siglas
Apresentação
Introdução
A triagem territorial nos projetos sociais
As bases da autoridade dos policiais-professores
Classificar os jovens vulneráveis, produzir legibilidade
As origens da vulnerabilidade
Como intervir sobre a vulnerabilidade e explicar os fracassos
da intervenção
Notas finais
Referências
Lista de siglas
APs Apartamentos
BM Banco Mundial
CDD Cidade de Deus
CRAS Centro de Referência de Assistência Social
CMJ Caminho Melhor Jovem
CRJ Centro de Referência da Juventude
CPP Coordenadoria de Polícia Pacificadora
FMI Fundo Monetário Internacional
ONU Organização das Nações Unidas
PMERJ Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro
PNAS Política Nacional de Assistência Social
SEBRAE Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
SETRAB Secretaria de Estado de Trabalho e Renda
SINE Sistema Nacional de Empregos
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
UPP Unidade de Polícia Pacificadora
Apresentação
Este livro conta pequenas histórias de vidas que não se tornariam conhecidas não fosse pela sua publicação. Mas ao fazê-lo, o livro destrincha nada menos do que o centro da subjetividade política que se expandiu silenciosamente pelo Brasil durante os anos 2000, tendo como base o Rio de Janeiro e, mais ainda, as favelas do Rio de Janeiro. Favelas ocupadas militarmente, há de se lembrar, e por projetos
sociais precários, intermitentes, mas com uma direção clara. Eram projetos tocados por policiais militares.
Luana Motta nos narra, de dentro, o período em que essa subjetividade se tornou projeto político, fortalecendo-se nas margens das grandes cidades, que ela estuda, e nas elites do interior, onde ela vive. Etnografando a rotina de policiais-professores na Cidade de Deus, Rio de Janeiro, a autora nos mostra onde estamos, hoje, em qualquer lugar do Brasil.
Em primeiro lugar, este livro nos mostra que as margens das metrópoles, estudadas pela autora, e as elites do interior do Brasil têm muitas semelhanças, ao contrário do que se pensa. A política nesses territórios, onde se fortaleceu o projeto autoritário recente no Brasil, não é organizada por direitos ou civilidade pública, nem por uma Constituição Federal, mas pela família, pela igreja e pela comunidade. Famílias, igrejas e comunidades cristãs, na imensa maioria, em diferentes vertentes do cristianismo. Esta política marginal e interiorana, a princípio, mais recentemente confronta o Estado tal qual o pensávamos antes, e este é o centro argumentativo do livro.
Vejamos como esta política se estrutura. Em primeiro lugar, ela é majoritariamente velho-testamentista no mundo das favelas pesquisadas por Luana Motta, na medida em que nelas se compreende a vida como uma guerra, e o sujeito individual como um guerreiro em busca da redenção pessoal. A associação entre família, comunidade e cristianismo guerreiro se mostra, então, como a nova face do projeto de mobilidade social das periferias migrantes, tomado como redentor. Tudo terá valido a pena se a vida pessoal melhorar. Os policiais-professores que conhecemos no livro entregam os melhores anos de suas vidas a esse projeto.
O arquétipo do homem pobre que se engaja nas tentativas de melhorar de vida não é mais, como já foi um dia, o do revolucionário que liberta uma classe; agora é majoritariamente o do empresário de origem humilde que venceu na vida. Vencer no mercado, para ajudar a família
, quem sabe também a comunidade, é o fim último desse projeto. Não se trata de mudar o jogo, portanto, mas de sair da reserva e virar titular. Não se trata de mudar o mundo, mas de se salvar nele.
A aposta é conservadora e pragmática: não dando para resolver tudo, resolvemos a nossa vida. Se todo mundo fizer a sua parte, dá certo. No fundo, sabemos que não vai dar certo porque nem todos fazem a sua parte. Então estes é que são os culpados de o mundo não dar certo, e é preciso se diferenciar deles. Vamos pelo menos sair dessa guerra vivos, enquanto os outros, que não fazem o que devem, tombam pelo caminho. Esse projeto de mobilidade não pressupõe, portanto, nada de universal, nada de público. Passa longe de direitos universais ou democracia. É o empreendimento individual no mercado que se ensina nas oficinas dos policiais nas favelas, e toda a disciplina necessária para esse empreendimento, que se bem-sucedido levaria também sua família ao comando (do 01 ao 04, se tudo der certo). A parte moral da sua comunidade, a que ajuda
, pode também vir junto (militares e policiais, por exemplo, cabem nos governos animados por este projeto político, enquanto artistas e intelectuais, que só reclamam e não ajudam em nada, ficam de fora). A igreja também cabe, mas nem precisa chegar tão perto, porque Deus já está nos corações.
Se aquele empresário arquetípico venceu a guerra, dia após dia, eu posso vencer também. As aspirações são individuais, não de redenção de classe, mas há algo que nos une: eu e o empreendedor. Não há emancipação social, que implicaria uma passagem gramsciana do momento egoístico-passional ao momento ético-político. Mas há redenção e emancipação neste projeto conservador, embora ambas inteiramente egoístico-passionais. A redenção é me sentir do lado de quem venceu na vida. De quem, portanto, está no direito de legislar a ordem comum, como eu estaria se tivesse vencido, claro.
Fazer a ordem, não por acaso uma frase do título deste livro, é evidentemente fazer essa ordem conservadora, amparada na divisão sexual do trabalho social que constrói a masculinidade hegemônica dos homens de bem, simbolizados pelo policial fardado, ajudando
a comunidade carente. Masculinidade heteronormativa e descrente da categoria raça, já que todos poderiam ser brancos a depender da performance social e da posição de classe (menos os negros, claro, ou seja, menos os que não aproveitaram a oportunidade de se tornarem brancos e, assim, melhorarem de vida).
Na moralidade de base deste projeto, que embala as ações dos personagens descritos por Luana Motta, aquele que venceu a guerra, se for um bom comandante (a escolha seria individual e moral), deve oferecer oportunidades
aos seus pares. Como a ordem social idealizada é sempre concorrencial, religiosa e moral (se ele venceu na vida, seguramente foi com o consentimento de Deus e por meio de Seus desígnios), não cabe questionamento sobre a substância do projeto ou a hierarquia de comando. Cabe adequar-se a essa ordem divinamente concebida, tornando-se um cidadão ordeiro, de bem, à imagem de seu comandante, de seu superior. Adequar-se à ordem hierárquica e natural, retenhamos esta noção, é o modo de ter progresso. Os dois conceitos de nossa bandeira nacional, portanto, exprimem com exatidão este projeto; a bandeira nacional se torna, claro, vestimenta política dos seus apoiadores.
Pois bem, não há nada mais adequado a este projeto, guerreiro e ordeiro, do que invadir um antro de perdição, como as favelas são vistas neste projeto, e transformá-lo em lugar de cidadãos de bem por meio da disciplina das armas e do militarismo policial. A guerra é pela ordem, contra o mal, e propiciaria o progresso àquela gente hoje preta, amanhã ordeira. O militarismo nos prepara para a guerra cotidiana, a polícia mantém a ordem. É por isso que ao lado do exército que ocupa os morros cariocas, a partir de 2008, quando se experimenta o modelo político das Unidades de Polícia Pacificadora, chegam também os policiais militares, que produziriam a ordem cotidiana. Vamos transformar esse lugar, libertando seu povo. Nada mais típico de nossa história.
Luana Motta, amparada em Michel Foucault e em sua teoria genealógica, vai nos mostrar, página a página, como este dispositivo militarista estende-se das operações militares de ocupação guerreira às salas de aula e oficinas de atividades ordenadoras na Cidade de Deus, produzindo justamente aquilo que em seguida deveria governar: a juventude vulnerável
. Sim, a juventude vulnerável
não é um fato dado, natural, neste livro. Ela é construída justamente como justificativa e legitimação dessa guerra justa
, que encaminharia o bom governo comunitário feito, na vida cotidiana que se pretendia instituir, por policiais militares.
O projeto desses policiais novos, engajados de corpo e alma em sua missão, não é o de exterminar essa juventude vulnerável. Jamais. Espera-se discipliná-la, tirá-la da mão do crime, ordená-la ao caminho do bem, educá-la nos princípios da ordem e do empreendimento autônomo. Todos os jovens que se esforçarem nesta direção serão abençoados por Deus e terão sucesso. Não serão mais perseguidos pela própria polícia, que agora os ensina. Mas como se sabe que nem todos vão seguir o bom caminho, é bom ter a polícia que mata ali do lado, de prontidão.
Como todos esses jovens vão melhorar de vida? Como vão caber no topo da pirâmide, se o jogo segue sendo piramidal? Esta é uma não questão
no interior deste projeto político, porque no jogo não se mexe e a escala da análise – mecanismo cognitivo – é sempre privada (individual, familiar ou, no máximo, comunitária, mas nunca a da sociedade como um todo). A sociedade, aliás, é abstração que passa tão longe desse projeto quanto a ideia de um Estado democrático, o que Luana Motta nos demonstra com maestria.
O fazer Estado que se mostra neste livro é baseado na produção de ordem cotidiana, depois institucionalizada como princípio moral-religioso. Os conteúdos substantivos deste Estado seriam os já elencados: militarismo, tradicionalismo de costumes e valores, empreendedorismo individual. O fazer Estado é, então, institucionalizar a guerra ordenadora que ajuda aos que se ajudam, que oferece direitos humanos a quem os merece, os humanos direitos. Fazer Estado é produzir ordem, completando o título do livro.
Classificar quem ajuda e quem atrapalha o projeto, quem é amigo e quem é inimigo, quem é vulnerável e quem é bandido, como demonstra Luana Motta, é o fundamento do governo dos pobres proposto por este projeto de Estado, não de governo, que se subjetiva politicamente no Brasil, contemporaneamente. Aos vulneráveis a disciplina, aos ordeiros a paz, aos rebelados a guerra. O projeto mata seus inimigos sem dó, aos milhares no Rio de Janeiro que governa faz tempo, na exata linha do racismo de Estado
que Luana Motta recupera de Michel Foucault: a linha de matar para recuperar a soberania, para defender a sociedade
(traduzida em família, em comunidade, portanto algo da esfera homogênea da vida privada).
O privatismo tornado político, nesta lógica subjetiva da guerra policial tornada pública
, radicaliza a radicalidade, nas palavras precisas de Luana Motta, do projeto autoritário de poder no Brasil. Projeto que se estende em várias ditaduras e que era germe localizado nas UPPs, em 2014, quando a autora foi viver na Cidade de Deus. Nos anos que se seguiram, esse privatismo político, militarista e policial, guerreiro e empreendedor, expandiu-se de modo centrípeto e chegou ao governo federal, mudando os rumos do país na década que agora acaba.
Este livro, através de histórias minúsculas, conta a história desse projeto e de seus mecanismos de expansão pelos cotidianos da nação, atravessando classes e construindo suas bases moral-cognitivas, para delas atingir as instituições. As consequências políticas do que vivemos são graves e, antes da aparição pública deste livro, brilhante, era mais difícil compreendê-las. Depois de lê-lo, temos a dimensão da relevância de nossos cotidianos e da resistência que podemos fazer neles, se quisermos disputar os pressupostos de uma vida coletiva mais livre e igualitária, garantida por um Estado de direito.
Gabriel Feltran
São Carlos, 15 de dezembro de 2020
Introdução
Principalmente em lugares como a Rocinha, o Vidigal, a Cidade de Deus, o Complexo do Alemão, porque são áreas que se você for colocar assim por família: famílias limpas que não têm influência ou simpatizante, eu diria 20%; famílias que têm influência no tráfico, influência forte, têm raiz no tráfico, 40%; e simpatizantes que têm algum amigo, não chega a ir para o tráfico, mas têm algum amigo e admira aquilo ali, mais 40%. Então, eu diria assim: se você for calcular os envolvidos diretamente no tráfico, é a minoria, 40%. Mas faltam os simpatizantes por aquilo ali, que eu acho, na minha perspectiva, que eu converso com os alunos etc., que me contam, é mais 40%; é uma totalidade gigante de pessoa que não quer nem atrapalhar a polícia, mas também não quer ajudar, está confortável daquele jeito. E têm as pessoas a qual [sic] não acham que está confortável, ainda não está confortável com o sistema da UPP, que poderia ser ampliado, que poderia ser melhorado, são os 20%, são pessoas que não têm nem familiares, nem envolvimento nenhum, nem são simpatizantes. Então quando a gente faz os cálculos, as pessoas dividem os cálculos no que é bandido e no que não é bandido. Se for no que não é bandido, não tem passagem, não tem marcado nada na delegacia, com certeza é mais da metade. Então, se você tirar por aí ah não, 60% são de pessoas, as comunidades são feitas de 60% de pessoas boas, honestas e feita de 40% de pessoas, de vagabundos, de bandidos
. Eu diria que têm mais divisões, têm subdivisões das pessoas, dos grupos, entre as pessoas, entre aspas, que não têm passagem, que são muitas pessoas boas, então eu diria que o contingente é bem menor.
(Vinícius, policial-professor do Centro de Referência da Juventude)
Este livro trata do conflito urbano no Brasil contemporâneo. Conflito urbano compreendido aqui, teoricamente, como a soma dos inúmeros conflitos cotidianos – relacionados a questões de classe, raça, gênero, sexualidade, pertencimento territorial – que se manifestam como diferença na cidade e que, nas últimas décadas, têm tido a violência como o cerne de sua figuração. Como esse conflito é lido por aqueles que implementam políticas? Como é administrado por agentes estatais? Este foi o eixo em torno do qual gravitou minha tese de doutorado, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, que após edições dá origem a este livro.[1]
Meu ponto de partida empírico para essa reflexão é a favela Cidade de Deus (CDD), no Rio de Janeiro. Ali, me tornei moradora durante quatro meses e acompanhei em etnografia, entre 2014 e 2016, a rotina dos projetos sociais de policiais militares cedidos pela Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) no Centro de Referência da Juventude (CRJ). São chamados aqui de policiais-professores porque sempre frisavam que o policial sempre estava presente em sala de aula; antes de serem professores, eram policiais. A partir da descrição da rotina desses policiais-professores e de como significam o trabalho que realizam, espero, portanto, mostrar como o conflito que emanaria da Cidade de Deus e dos territórios de pobreza é lido por esses agentes estatais na ponta
da política em termos de violência urbana.[2] Em um esforço de intervir sobre este problema – o que, em si, será objeto de debate –, esses policiais-professores constroem leituras sobre suas causas, suas fontes.
É a cultura da favela – que inclui as relações familiares e sexuais, os projetos de vida e de futuro, a higiene e a disciplina, os gostos musicais, os hábitos cotidianos e, sobretudo, a proximidade com o crime – que estaria no centro do problema da violência urbana e, portanto, dos esforços de intervenção para transformação e pacificação. Seria preciso, antes de tudo, transformar esta cultura. Como esses policiais-professores o fazem? Que características desta suposta proximidade entre crime e população pobre lhes saltam aos olhos e são concretas, imediatamente notáveis? Que práticas são produzidas a partir desta leitura? Que efeitos esta leitura e suas práticas subsequentes produzem para a vida local? Estes questionamentos, iluminados pela etnografia com os policiais-professores, norteiam e sustentam um debate mais amplo sobre estado, violência, juventude e conflito urbano no Brasil contemporâneo.
A literatura sobre as periferias urbanas argumenta que, nas últimas três décadas, o conflito urbano teve seu cerne radicalmente deslocado do problema da integração das classes trabalhadoras das periferias urbanas para a questão da violência que emanaria desses espaços.[3] Nos termos de Castel, temos assistido a uma mudança nos conteúdos da nossa questão social, ou seja, de nossa aporia fundamental que ameaça fraturar nossa sociedade e põe em questão a capacidade de existir como um conjunto ligado por relações de interdependência
.[4]
Se entre as décadas