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Sobreviver na adversidade: Mercado e formas de vida
Sobreviver na adversidade: Mercado e formas de vida
Sobreviver na adversidade: Mercado e formas de vida
E-book481 páginas6 horas

Sobreviver na adversidade: Mercado e formas de vida

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Sobre este e-book

O livro é um estudo das relações entre as formas do controle social e os ilegalismos populares através de uma pesquisa etnográfica desenvolvida em um bairro da periferia de São Paulo. De um lado, a tentativa é perspectivar alguns espaços de incidência do controle social, suas redes econômicas e políticas a partir de três postos de observação: uma pequena birosca, uma linha de transporte clandestino e um ponto de venda de drogas; de outro lado, procurou-se compreender as condutas que se constroem nestes pontos de inscrição dos mercados urbanos informais, ilegais e ilícitos, sua correlativa exposição ao perigo de morte. Nos cruzamentos entre a incidência dessas mecânicas do poder, as tramas dos ilegalismos populares e suas condutas correspondentes, talvez seja possível entender algumas das dinâmicas deste mundo social que se produz entre o informal, ilegal e ilícito, também a vida e a morte.
IdiomaPortuguês
EditoraEdUFSCar
Data de lançamento19 de set. de 2022
ISBN9786586768695
Sobreviver na adversidade: Mercado e formas de vida

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    Sobreviver na adversidade - Daniel Veloso Hirata

    SOBREVIVER NA ADVERSIDADE

    Logotipo da Universidade Federal de São Carlos

    EdUFSCar – Editora da Universidade Federal de São Carlos

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

    Editora da Universidade Federal de São Carlos

    Via Washington Luís, km 235

    13565-905 - São Carlos, SP, Brasil

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    Instagram: @edufscar

    SOBREVIVER NA ADVERSIDADE

    mercados e formas de vida

    Daniel Veloso Hirata

    Coleção Marginália de Estudos Urbanos

    Volume 3

    Logotipo da Editora da Universidade Federal de São Carlos

    © 2018, Daniel Veloso Hirata

    Fotografia da capa

    Tabyta Yas

    Capa

    Thiago Borges

    Projeto gráfico

    Vitor Massola Gonzales Lopes

    Preparação e revisão de texto

    Marcelo Dias Saes Peres

    Daniela Silva Guanais Costa

    Vivian dos Anjos Martins

    Editoração eletrônica

    Bianca Brauer

    Walklenguer Oliveira

    Editoração eletrônica (eBook)

    Alyson Tonioli Massoli

    Coordenadoria de administração, finanças e contratos

    Fernanda do Nascimento

    Apoio

    Fapesp

    Processo no 2017/08635-6, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a visão da Fapesp.

    Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitária da UFSCar

    Hirata, Daniel Veloso.

    H668s           Sobreviver na adversidade : mercados e formas de vida / Daniel Veloso Hirata. -- Documento eletrônico. -- São Carlos: EdUFSCar, 2022.

    ePub: 1.2 MB.

    ISBN: 978-65-86768-69-5

    1. Sociologia. 2. São Paulo. 3. Controle social. 4. Mercados. 5. Ilegalismos. I. Título.

    CDD – 301 (20a)

    CDU – 301

    Bibliotecário responsável: Ronildo Santos Prado – CRB/8 7325

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônicos ou mecânicos, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema de banco de dados sem permissão escrita do titular do direito autoral.

    Sumário

    Apresentação

    Introdução

    Parte I

    Introdução

    Capítulo 1 - Cidade e civilidade

    A Cidade como laboratório

    A análise ambiental de Park

    Região moral e Intervenção

    Capítulo 2 - Fazer a pesquisa urbana

    Parte II

    Introdução

    Capítulo 1 - Piolho e a birosca

    Capítulo 2 - Hernandes, produção da desordem e gestão da ordem

    Capítulo 3 - Paulo e a biqueira

    Conclusão - Vida Loka

    Referências

    Apresentação

    Sobreviver na adversidade não é para qualquer um. O título deste livro que agora Daniel Hirata nos entrega é expressão que circula por entre as quebradas das periferias paulistas (não só paulistas, podemos supor). É a vida loka, expressão que, também ela, circula por essas paragens, título de uma das músicas mais conhecidas dos Racionais MC’s, cuja letra o autor comenta, nas páginas finais, ponto a ponto, tal como um roteiro a deslindar os sentidos de uma vida percebida como guerra, como campo de batalha – enfrentamentos variados e constantes, inscritos nas dimensões cotidianas da vida, tecidas entre os dramas do trabalho incerto e da moradia precária e os riscos da morte violenta. Sobreviver na adversidade é isto, saber lidar com as dificuldades da vida sem se deixar sucumbir sob o peso da pobreza reinante, tampouco se deixar enredar pelas soluções violentas, de morte, dos conflitos que atravessam as vidas de todos e cada um. Lidar com as adversidades da vida é também, ou sobretudo, lidar com os limiares da vida e da morte. Transitar entre as situações adversas supõe algo como um saber prático, também reflexivo, sempre reflexivo, acerca do modo de se conduzir frente aos azares da vida e aos riscos da morte violenta.

    Para quem vive na guerra, a paz nunca existiu, canta Mano Brown em algum momento da longa letra de sua Vida loka. São os sentidos dessa guerra que Hirata trata de deslindar ao comentar esta e outras letras dos Racionais MC’s. E se isso importa ao sociólogo é porque a percepção da vida como guerra, diz Hirata, é um modo de conferir inteligibilidade à trama das relações sociais a partir do conflito, do enfrentamento. Conflitos que perpassam a vida social, que organizam a vida cotidiana: conflitos entre brancos e negros, conflitos entre homens e mulheres, conflitos entre ricos e pobres, conflitos com a polícia, conflitos com o Estado, também conflitos com os tipos sociais que comparecem nessas letras e que circulam nos repertórios populares, o zé-povinho ou o verme, estes que se deixaram sucumbir e se abismam na fraqueza, nas deslealdades, na dissimulação, na traição.

    É no último capítulo, sob o título de Vida loka, que Hirata desdobra suas reflexões em torno e a partir das letras dos Racionais MC’s, tomadas como fonte inesgotável de referências para compreender a vida loka e os repertórios de conduta que circulam nas periferias paulistas. Apresentado como conclusão do livro, é uma reflexão que busca, diz o autor, destacar alguns dos elementos mais expressivos presentes nas músicas dos Racionais e que parecem atar os fios de todo o texto apresentado. De fato, temos aqui a chave das questões que pautam o percurso traçado pelo autor para lidar com os ilegalismos que atravessam e conformam a vida das periferias (não só) paulistas. Melhor dizendo: a chave para entender a perspectiva a partir da qual essa trama dos ilegalismos populares é tratada e as questões em jogo em um mundo social que se estrutura nas fronteiras incertas entre o formal e informal, o legal e ilegal. Este o tema e questão que Hirata trata neste livro.

    De partida, reconhecer a dimensão conflituosa inscrita na trama dos ilegalismos populares não é tão somente acolher evidências postas no mundo social. É mais do que isso, muito mais. É um modo de colocar em perspectiva as relações de poder e os jogos de força que conformam e estruturam as práticas sociais inscritas nos contextos situados, em que os mercados informais e ilegais se estruturam. Nos termos do autor, é perspectivar as relações de poder em torno das quais se processa a dinâmica desses mercados. E isso significa mostrar a mecânica dos dispositivos de poder e de coerção colocados em ação – práticas, agenciamentos, estratégias, pequenas astúcias e artimanhas, sempre em contextos situados, em uma teia complexa de relações, que são afetadas pelos modos oscilantes pelos quais se faz a gestão diferenciada dos ilegalismos, entre acordos pactuados, compra de proteção, práticas de extorsão ou então a repressão aberta, a violência letal, quando não, extermínios, quando esses arranjos são desestabilizados por alguma razão. Pois é nisso, precisamente nisso, que Hirata nos faz ver toda a potência analítica, e crítica, que pode estar inscrita no trabalho etnográfico. Um fino trabalho etnográfico em torno de situações concretas, postos de observação a partir dos quais apreender os modos como esses jogos de poder se processam, colocando em cena moradores, operadores desses mercados, traficantes locais, gente envolvida nos negócios do crime, policiais, fiscais da prefeitura, também políticos e suas bases eleitorais locais. É nesse jogo situado de relações e posições que Hirata mostra os modus operandi da gestão diferencial dos ilegalismos, essa noção cunhada por Foucault e que o autor desdobra ao mostrar a dimensão propriamente relacional – e conflitiva – dessas práticas, agenciamentos, estratégias que, também muito concretamente, afetam os indivíduos envolvidos. Nas cenas descritivas que Hirata nos apresenta, é também nisso que o trabalho etnográfico mostra toda sua potência, ao mostrar os pontos de inscrição das relações de poder, afetando uns e outros, expondo uns e outros, ou todos os envolvidos, aos riscos da morte violenta. E é nessa relação e nos modos pelos quais os riscos da morte violenta afetam corpos e vidas que Hirata situa as artimanhas colocadas em prática para sobreviver na adversidade, a lógica que parece reger as condutas de uns e outros, os códigos morais do proceder, as formas práticas para lidar com os limiares incertos nos quais estão em jogo questões de vida e morte. A gestão dos ilegalismos é também a gestão da violência inscrita no coração mesmo dos jogos de poder que aí se processam.

    Resultado de uma pesquisa realizada por longos anos em um bairro da periferia paulistana, seguindo os traços das redes políticas e econômicas inscritas nas dinâmicas desses mercados, Hirata consegue, nos pontos situados de suas etnografias, fazer aparecer o jogo de escalas e a pulsação das dinâmicas urbanas presentes, seja em uma pequena birosca situada em um ponto estratégico do bairro, de intensa circulação de pessoas e coisas, e que faz dela algo como um retransmissor de vários ilegalismos, dos nebulosos negócios de caça-níqueis à venda de mercadorias roubadas ou produtos de origem duvidosa, e mais as maquinações, alianças e acertos entre uns e outros em torno de seus negócios em meio às conversas à toa próprias do local; seja a teia complexa de relações envolvidas na montagem local de linhas de transporte informal e, depois, na sequência dos anos, os tortuosos caminhos de sua formalização, tudo isso colocando em cena empresários, traficantes locais, organizações criminosas, gestores urbanos, representantes políticos, todos implicados – e interessados – no que então haveria de se tornar o muito rendoso circuito das vans que percorrem as linhas transversais de toda a periferia da cidade; seja, finalmente, essa a terceira cena descritiva, uma biqueira, ponto de venda de drogas ilícitas, e, nesse caso, ao mostrar os modos de funcionamento do negócio local das drogas, é todo um outro jogo de relações e posições que vai se descortinando, entre as regulações locais dos conflitos entre moradores, os acertos negociados próprios aos negócios do crime e a compra da proteção, ou, para colocar em termos precisos, os modos pelos quais se faz a negociação do que Michel Misse define como mercadoria política e que é intrínseca às formas de regulação desses mercados.

    Três cenas descritivas e, em cada uma, questões diferentes são tematizadas. A birosca e as práticas, arranjos, maquinações, acordos e alianças pelas quais os mercados informais operam em suas dimensões cotidianas, inscritas nas vidas e percursos, também sobressaltos, da vida de uns e outros. Os perueiros e algo como a economia política dos ilegalismos, na própria medida em que as estratégias governamentais para regular o chamado transporte informal afeta seus modos de funcionamento, mas também os arranjos diferenciados, em escala urbana, dos mercados de proteção. A biqueira, os modos pelos quais seus operadores lidam e negociam os conflitos que perpassam seus negócios, tensões e fricções com moradores, com parceiros ou inimigos nos negócios do crime, sobretudo com a polícia e seus arranjos, sempre instáveis, em torno da negociação da mercadoria política – é a questão da gestão da violência que está aqui posta em questão.

    Três cenas, três ordens diferenciadas de questões, próprias a cada uma delas, mas que se comunicam e introduzem um jogo de perspectivas, prismas diversos que fazem entrever as tramas urbanas implicadas nesses mercados e que, no mesmo passo, permitem apreender os modos práticos pelos quais se constituem as relações entre ilegalismos e formas de controle, entre mercados e dispositivos de coerção, relações que especificam o lugar da violência nos modos de funcionamento e regulação dos mercados informais e ilegais. Também: em cada uma delas, nos pontos de inscrição das relações de poder, os nexos entre a exposição aos riscos de morte e o modo como os indivíduos lidam com ela elaboram formas de conduta e exercitam a arte de sobreviver na adversidade. Sobreviver na adversidade: mercados e formas de vida, mais do que um belo título, pode ser tomado aqui como fórmula sintética, e expressiva, das questões em pauta neste livro.

    Mas o leitor aqui encontrará mais do que uma fina etnografia dos mercados informais e ilegais em um bairro da periferia paulistana. Trata-se, enfatiza Hirata, de perspectivar as relações de poder inscritas nos modos de funcionamento desses mercados. E isso significa não tomar o crime e violência como objetos já dados, já objetivados, sobre os quais se abate o poder em uma relação de pura exterioridade. Na potência analítica dessa proposição está contida uma potência crítica que diz respeito à prática da pesquisa, ao plano de referência e espaço conceitual a partir do qual o pesquisador formula suas questões e constrói seus objetos de estudo. Não se trata tão somente de seguir as regras de ouro do que se convencionou chamar de construção sociológica do objeto. Como o autor mesmo diz, trata-se de uma certa maneira de se posicionar frente à produção do conhecimento e, no caso, uma certa maneira de se posicionar frente a todo um campo dos estudos urbanos que tomam justamente o crime e a violência como objetos já dados, tomados como sintomas de uma desordem a ser combatida, ou bem gerida. É aqui que ganha todo sentido o longo percurso que o autor, na primeira parte do livro, traça em sua discussão sobre a linhagem de estudos urbanos inaugurada pelos sociólogos da Escola de Chicago, na primeira metade do século XX. Não é uma discussão qualquer, apenas respeitando os protocolos acadêmicos da chamada discussão bibliográfica. Trata-se, isso sim, de indicar as implicações contidas nos modos como o crime e suas patologias são concebidos, medidos, geridos. É uma perspectiva, é sempre uma perspectiva o que está em jogo, e, nesse caso, a perspectiva da gestão das populações, gestão da ordem urbana.

    Na discussão cuidadosa, quase detalhista, da produção dos pais-fundadores dessa linhagem de estudos, sem deixar de enfatizar sua importância e todo o interesse dos estudos então produzidos, Hirata identifica as ressonâncias dos seus axiomas e pressupostos nos modos como hoje especialistas e gestores urbanos lidam com a questão do crime e da violência urbana. Algo como os fundamentos sociológicos do primado da lei e ordem que, nos dias que correm, mais do que nunca parecem primar nas discussões em torno dos problemas urbanos. Mas que seja dito, e enfatizado, pois isto é o mais importante: se há uma reflexão crítica sobre essa linhagem de estudos urbanos, não é para desnudar seus possíveis comprometimentos ideológicos ou políticos a partir de algum critério normativo. Longe disso, Hirata não cai nessa armadilha, o que seria inócuo, não mais do que procedimento autoconfirmativo de seus próprios pressupostos. A crítica se faz sob um outro ponto de vista. Como o autor mesmo trata de enfatizar, não se trata de dizer que estes estudos estão incorretos, que eles não têm interesse, que não nos entregam informações relevantes, e importantes. Muito pelo contrário. O problema está na perspectiva pela qual as questões são postas, um modo de problematizar a cidade e seus problemas sob o ponto de vista da gestão ordem urbana.

    Pois então, ao propor perspectivar as relações de poder e colocá-las como constitutivas do próprio objeto de estudo, Hirata opera um deslocamento do espaço conceitual a partir do qual trata as questões em tela, espaço conceitual cuidadosamente construído pelo autor, mobilizando de forma refletida as referências teóricas que informam seu ponto de vista, perspectiva. As questões não são tratadas na perspectiva das formas de controle do crime, e sim da constituição desses mercados a partir do jogo de forças e relações de poder que estruturam a trama dos atores envolvidos.

    É a partir desse deslocamento que a crítica opera e se mostra fecunda, na medida em que constrói um dispositivo de pesquisa que, a partir de um certo ponto de vista, perspectiva, constrói um outro plano de referências cognitivas – um certo modo de estabelecer conexões e relações, a trama das coisas, pessoas, acasos, circunstâncias e fatos, seguindo as linhas de força de uma cartografia do social que não cabe nesses modos de codificação do mundo social postos pelas categorias circulantes no debate atual – Lei e Ordem, Crime e Violência Urbana. Nessa cartografia estão presentes as assinaturas do Estado, como diria Veena Das, uma autora que compõe o leque de referências teóricas mobilizadas por Hirata. Ao trabalhar as relações entre habitantes, práticas de poder e cidade, Hirata propõe uma sociologia urbana do poder. E isso muda tudo no que diz respeito ao tratamento dessas questões, digamos assim, espinhosas. É um outro ponto de vista, outra perspectiva. E uma tomada de posição em um campo de debate. É esse o sentido de uma sempre necessária reflexão sobre a prática de pesquisa, enfatizada por Hirata, levando em conta que as questões de pesquisa estão sempre implicadas em um campo de problematização, compõem, interagem, são afetadas pelo que Foucault define políticas da verdade, na própria medida em que os saberes construídos sobre o mundo urbano têm efeitos de poder e tomam parte da própria constituição dos objetos de pesquisa.

    Eu não hesitaria dizer que essa é uma das contribuições mais importantes deste trabalho de Daniel Hirata, em sua ênfase na exigência, por parte do pesquisador, de uma reflexão sobre a sua própria prática de pesquisa, seus pressupostos e suas implicações em um campo de problematizações no qual estão cifradas relações de poder e, para retomar o início dessas linhas, os conflitos que atravessam e constituem os espaços urbanos, conflitos experienciados pelos habitantes de suas periferias como campo de batalha, guerra cotidiana que afeta corpos, vidas e formas de vida e que se desenrola por entre as tramas da cidade. Uma prática refletida que está inteiramente implicada na potência crítica do trabalho etnográfico que aqui nos é apresentado.

    Vera da Silva Telles

    Departamento de Sociologia

    Universidade de São Paulo

    vs.telles@gmail.com

    INTRODUÇÃO

    Uma pequena mudança no subtítulo para torná-lo mais preciso, a exclusão de dois subitens (no capítulo 2 da parte I), um ligeiro ajuste nos agradecimentos e este primeiro parágrafo são as mudanças no texto apresentado para a defesa de minha tese de doutorado, realizada na Universidade de São Paulo em 2010. Apesar da generosa indicação para publicação pela banca, nos anos seguintes à defesa não fiz nenhum esforço para levar isso adiante. Incentivado por Gabriel Feltran, finalmente decidi por publicar o texto nesta excelente coletânea. Agradeço a Gabriel por mais esse capítulo da grande parceria construída ao longo desses anos de diálogo permanente. A decisão de não atualizar o texto deixou algumas ausências bibliográficas importantes, seja pela produção que aconteceu no tempo que se passou nesses últimos oito anos ou pela minha ignorância na época mesmo. Há teses que se tornaram livros, artigos que surgiram ou que descobri depois de escrever a tese, discussões que se somaram e tornaram alguns pontos mais precisos, debates que agora estão muito mais assentados, outras coisas que não foram mais discutidas ou que mudaram de direção. Contudo, se tudo isso fosse contemplado, incorporando todas essas discussões de forma mais pormenorizada, o texto teria que ser alterado substantivamente e inviabilizaria a publicação do livro por muitos anos mais. Vejo esta publicação situada em certos debates e embates que continuam, as questões que persigo continuam na mesma direção. Segue então ao leitor o texto original com estas poucas alterações. As duas partes que compõem o (agora) livro são, para mim, absolutamente articuladas, mas podem ser lidas de forma independente, de forma que o leitor pode ler cada parte segundo seu interesse. Como explico nos próximos parágrafos, eu precisava, antes de apresentar o trabalho de campo, deixar claro de que lugar estava falando – questão que, sem ser resolvida, me impedia de começar a trabalhar o material empírico. Tratava-se de problematizar uma questão acadêmica, ética e política sem a qual a intensa experiência com meus interlocutores poderia ser mal compreendida. Ao reler, achei que o que está escrito reflete bem o imenso trabalho de pesquisa e o compromisso político feito em conjunto com Vera Telles ao longo de ao menos doze anos de leituras e trabalho de campo incansáveis, algo que continuamos a fazer agora em outro ritmo, dado o limite de tempo e a distância que se impôs a nós dois. Espero que esse esforço seja de alguma serventia ao leitor.

    Em primeiro lugar, a tentativa deste texto, um tanto quanto tortuoso, é contribuir para a construção de uma perspectiva crítica frente às questões que serão trabalhadas empiricamente. Crítica quer dizer, de forma muito prosaica, entrever a maneira pela qual as relações de poder são parte constitutiva do objeto de estudo, e não algo exterior a ele. No que há de específico neste trabalho, uma etnografia realizada nas periferias de São Paulo, trata-se de expor as relações de poder que são operantes na relação entre os chamados ilegalismos populares[1] e as suas formas de controle social. Isso foi feito a partir de alguns pontos de inscrição dos mercados urbanos chamados informais, ilegais ou ilícitos, sua correlativa exposição ao perigo da morte e suas formas de conduta correspondentes.

    Acredito ter sido um pouco através dessa perspectiva de trabalho frente ao poder que o coletivo de pesquisa que se reuniu em torno da pesquisa coordenada por Vera Telles decidiu realizar seminários sobre um dos pensadores mais agudos das relações de poder: Michel Foucault. Durante mais de três anos nos dedicamos aos cursos proferidos no Collège de France por Foucault durante o período de 1975 a 1978.[2] Os cursos dão acesso a um momento na trajetória de Foucault, que já foi considerado uma espécie de silêncio entre os livros Vigiar e punir e a História da sexualidade, mas de fato foram anos de profundo estudo acerca de um conjunto de questões que se tornaram conhecidas através da noção de governamentalidade. A governamentalidade é um conceito que articula uma pesquisa genealógica do Estado moderno através de um percurso histórico que se inicia na antiguidade grega, a pastoral católica, passando pela razão de estado, para finalmente chegar ao liberalismo clássico e ao neoliberalismo contemporâneo. Este percurso ilumina uma expansão intensiva do oikos, que na Grécia Clássica limitava-se às práticas de gestão da casa e da família e que passa a multiplicar suas formas de incidência em diferentes domínios. No século XVI, esta gestão se aproxima das práticas estatais como uma forma de governo, e, durante o século XVIII, a partir da emergência do fenômeno da população, a economia passa a ser o nível de realidade pertinente para a organização da gestão do Estado.[3]

    O Rei reina, mas não governa. A possibilidade desse enunciado parece chamar a atenção para o momento em que o governo começa a ocupar um lugar central na dinâmica da mecânica dos dispositivos de poder.[4] Mais do que o Rei, é o Ministro que parece ser o personagem central da maneira pela qual o exercício do poder passa a ser realizado, portanto concebendo não mais a decisão soberana como o centro da questão política, mas sim a gestão das populações. A extensão do campo da administração sobre as vidas que compõem o corpo social parece demonstrar a força da racionalidade econômico-governamental que se impõe para todo o sistema de poder, não substituindo a racionalidade político-jurídica, mas sim vitalizando-a a partir de outra forma de exercício do poder. O governo das populações refere-se a um campo de questões distante do voluntarismo legalista das teorias e práticas associadas à soberania, que procurava estabelecer a congruência entre uma vontade soberana e um povo correspondente.[5] No governo populacional, trata-se de gerir uma população (e não um povo) a partir das formas específicas e intrínsecas de sua dinâmica, estabelecendo a correta maneira de conduzir uma multiplicidade de indivíduos em constante movimento, de dispor de um meio que é constituído de pessoas e coisas e que tem suas regras de funcionamento a serem compreendidas. É nesse sentido que, a partir do século XVIII, a população se constitui como o nível pertinente de realidade da gestão governamental: ela é o elemento que deve ser compreendido através de diferentes tipos de saberes práticos, construídos para desvelar seu funcionamento e, ao mesmo tempo, servindo de pontos de apoio à intervenção, ora limitando, ora apontando como deve ser feita a gestão das populações.[6] Através dessa analítica das técnicas governamentais, articuladas em sua composição heterogênea pelo funcionamento de diferentes racionalidades políticas, o autor retoma a sua ontologia do presente, abrindo caminho para toda uma perspectiva crítica do mundo contemporâneo no qual este trabalho se filia.

    Mas afinal, mais uma vez, do que se trata esta crítica? Seguindo o percurso já anunciado de Foucault, na pastoral católica a crítica do governo das almas se realizou por uma recusa do magistério eclesiástico e um retorno às Escrituras; na razão de Estado, a crítica era uma denúncia da injustiça, da ilegitimidade das leis e uma recusa à obediência; no momento atual, em que o governo se efetiva através da gestão das populações assentada pela construção de uma verdade ou desse nível pertinente de realidade, a crítica deveria incorporar também certa indocilidade refletida, não aceitando a verdade em que se organiza a autoridade do governo e disputando os termos da discussão através do que o autor chama de política da verdade.[7] Acredito que nada pode ser mais atual e fecundo para a reflexão sobre a prática sociológica do que esta maneira de se posicionar frente à produção do conhecimento.

    Este livro tem como um de seus objetivos uma reflexão acerca da maneira pela qual a sociologia urbana, que historicamente se construiu como uma das formas dos conhecimentos práticos que serviram como ponto de apoio para a gestão das populações, no caso a população urbana, poderia atentar para os efeitos de poder que são próprios a sua prática. Em seguida, vou procurar desenvolver uma perspectiva crítica em relação à gestão dos chamados problemas urbanos, especialmente no que diz respeito aos ilegalismos populares, fora do quadro do combate à violência urbana, do controle do crime e da punição, ou melhor, incluindo estes últimos como parte da questão que se procura compreender. Sendo a sociologia urbana um campo que frequentemente se constituiu em oposição à pretensa universalidade da lógica econômica, mas por muitas vezes em consonância com a necessidade de realizar a gestão urbana, parece-me importante refletir sobre a prática de pesquisa que realizamos nas cidades. Nesse sentido, em conjunto com a importante reflexão acerca da relação entre o pesquisador e o pesquisado, parece-me fundamental compreender as relações entre o pesquisador, o saber por ele produzido e seus efeitos de poder.

    É por isto que este livro se inicia com algumas considerações acerca das complexas relações entre pesquisa e gestão das populações urbanas. As relações de poder que são constitutivas dos objetos da pesquisa sociológica se fazem igualmente presentes na maneira pela qual a pesquisa é construída sociologicamente. Atualmente, cada vez mais o resultado dos crescentes números da produção científica visam uma espécie de avaliação das políticas que são conduzidas pela ação estatal e seus pontos de apoio:[8] avaliações de programas e suas metas, das flutuações das cifras estatísticas, impactos das boas práticas, sugestões de como atuar frente aos problemas sociais como a pobreza, a segregação socioespacial, a assim chamada violência urbana. Evidentemente que isto não é um problema novo em si, mas parece atingir cada vez mais o centro das preocupações científicas, incluindo a participação frequente em fóruns e conselhos que realizam a gestão desses problemas e que, se constituídas como modelo eficaz, servirão de referência como experiências de boas práticas. Central aqui é a compreensão de um estímulo a uma produtividade cada vez maior por meio de avaliações que incitam a lógica concorrencial, ou seja, o estímulo a uma performance máxima no quadro de um social de competição.[9]

    Nesse sentido, como ponto de partida para esta tese, procurei organizar as pesquisas dos sociólogos de Chicago para pensar a emergência dessa maneira de se posicionar frente à gestão dos problemas urbanos, especificamente no que tange à questão da violência que ocorre nas cidades. Pioneiros na associação entre crime e espaço, esta tradição sociológica parece-me especialmente interessante para compreender o que está em jogo nesta relação entre a pesquisa e os dispositivos do controle social. Partindo da imagem da cidade como laboratório social, onde seria possível identificar as variáveis que constroem o urbano como um meio, esta tradição tem como perspectiva a construção de uma estrutura pragmática, a cidade como artefato, em vista de um ordenamento ou um campo de intervenção possível do homem sobre o homem. É através dessa perspectiva que o crime poderia ser identificado precisamente como fenômeno que ocorre em lugares circunscritos, as chamadas regiões criminogênicas; em seguida, estabelecer quais seriam as condutas desviantes que corresponderiam a esse meio problemático e, finalmente, definir as formas da intervenção nesses lugares. Tudo isto será melhor explicado na primeira parte deste livro, sendo importante nesse momento somente apontar de qual maneira os autores de Chicago serão estudados.

    Veja bem, não se trata de fazer uma acusação ou uma denúncia da tradição sociológica de Chicago como algo falso. A ideia é que a riqueza da análise assim realizada reside no fato de iluminar claramente a maneira pela qual o crime é concebido, medido, organizado e combatido, portanto, oferecendo uma poderosa grade de legibilidade das ações governamentais. Talvez, a lição mais importante do legado de Chicago é a demonstração da pertinência do crime como fenômeno urbano e espacialmente organizado na perspectiva da gestão urbana. É nessa direção que, de forma oposta, começarei a exploração inicial de alguns autores que consideram de forma central a questão do poder em sua prática de pesquisa e como parte constitutiva dos objetos construídos. A tentativa é deslocar a perspectiva de pesquisa de Chicago em direção à inscrição dos indivíduos e dos grupos sociais em um sistema de posições e de relações estabelecidas e definidas na situação e nas circunstâncias de sua relação com o poder e a prática governamental, nisto incluído o próprio pesquisador. Será exatamente nesse sentido que alguns trabalhos, em sua maioria de orientação foucaultiana, serão expostos. De um lado, pensar a pesquisa e seus efeitos de saber/poder, ou seja, a prática de pesquisa como um lugar objetivado e de objetivação inserido nas tramas de dispositivos de normalização das populações que se procura estudar. De outro, perspectivar as práticas governamentais a partir de atitudes, gestos, astúcias, intrigas, enfim, estratégias de ação que são feitas atravessando a incidência do poder em suas múltiplas formas de atuação por meio do enquadramento e dos limites colocados pelo poder que tenta organizar, perseguir, marcar, inscrever, conduzir e dirigir.

    O quanto as intenções deste texto contemplam os seus objetivos somente a sua leitura e discussão futuras poderão dizer, mas o objetivo de todo o trabalho foi sempre crítico em relação à maneira pela qual esta racionalidade se encontra no coração das pesquisas atuais. Esta tentativa de construção de uma perspectiva crítica para a análise sociológica acerca das cidades e dos ilegalismos populares será explorada na pesquisa empírica. A maneira de conduzir a pesquisa de campo, o conjunto de questões que se propõem estudar e as consequências analíticas que se procurou explorar foram pensadas a partir das relações de poder que são constitutivas da prática de pesquisa e dos objetos que se procura compreender.

    * * *

    A primeira vez que fui para a favela da Colina foi em 2001, ainda como bolsista de iniciação científica da professora Vera da Silva Telles. Iniciávamos uma pesquisa que, modificada, ampliada e desdobrada, estava próxima de completar quase dez anos quando este texto foi escrito. O que nos levou a esse lugar foi o cruzamento de duas circunstâncias da pesquisa de campo. Em primeiro lugar, a fama de que esse seria o lugar mais violento da região. Durante uma primeira fase da pesquisa, percebíamos todo um jogo de alteridade entre os moradores dos diversos jardins e vilas que compõem os bairros dessa parte da zona sul de São Paulo, de forma que a violência sempre era considerada pior no bairro vizinho, não no bairro de que as pessoas faziam parte. Achávamos que isto fazia parte de uma dinâmica de representações que envolviam as histórias de violência em que todos estavam envolvidos e, ao que parece, isto em parte é verdade. Mas o curioso é que nesse jogo difuso de referências cruzadas que envolviam a região havia um bairro que fazia convergir as representações da violência e suas histórias. Tratava-se de um lugar que, muito mais que os outros, as pessoas apontavam como o mais violento, o centro onde ocorriam as histórias mais terríveis. Esse lugar, que vou chamar por comodidade de rua X, situa-se ao lado de um conjunto habitacional, no coração do bairro que chamarei de favela da Colina.

    Chamávamos, brincando, esta curiosa cristalização das histórias violentas de mistérios da rua X. Esse mistério nos acompanhou durante grande parte do trabalho que foi realizado nos anos subsequentes e, ainda hoje, não sabemos se conseguimos uma resposta satisfatória. De toda maneira, ao longo desse período, construímos algumas hipóteses

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