Até Que A Brisa Da Manhã Necrose Teu Sistema
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Pré-visualização do livro
Até Que A Brisa Da Manhã Necrose Teu Sistema - Ricardo Celestino
Capa
Fernando Marcatti
Diagramação
Gustavo S. Vilas Boas
Preparação de textos e revisão
Lilian Aquino
Leitura crítica
Luiz Brás
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Celestino, Ricardo
Até que a brisa da manhã : necrose teu sistema /
Ricardo Celestino. – 1. ed. – São Paulo : Ricardo Celestino, 2021
ISBN 978-65-00-15859-5
1. Ficção brasileira I. Título.
21-54380
CDD-B869.3
Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção : Literatura brasileira B869.3
Aline Graziele Benitez – Bibliotecária – crb-1/3129
"(…)
Cada vez mais ponho na essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça."
Fernando Pessoa
C a p í t u l o I
O B A T I S M O
I
(8h38)
M4594
O número de atendimento
A espera
Um longo trajeto até chegar em
M4594
Não há acesso preferencial
Não há mais de um guichê
Não há consultas para ordem de chamada
M4594
O tempo. A espera
Uma vontade não preenchida
Expectativa diária
M4594
Ainda não…
Ainda não…
mais um dia…
outro dia…
Quem sabe hoje?
Hoje?
Talvez hoje seja o dia!
M4594
7
Às dez da manhã você não sente o pulso vibrar. Há momentos em que você até imagina um
formigamento estranho
Talvez seja o inconsciente pregando-lhe uma peça Mais uma peça
E tem outra… não adianta sentir o pulso vibrar,
sem o enfeite dos leds verdes
no teu antebraço orgânico
em brilho intervalar
das luzes natalinas
Não.
a prova necessária de que
você é (e deixará de ser)
M4594
são as luzes natalinas
piscando
na camada subcutânea
do teu antebraço orgânico. (o braço de Natal)
Você não gosta de torradas.
Nem do sabor da geleia proteica.
Isso é tudo que tem para comer.
Talvez tudo que tenha para comer
até o fim do dia de hoje.
Seria bom aproveitar, não acha?
Talvez tenha a sorte de encontrar provisões
até o final do dia
Sinceramente,
eu não entendo essa tua restrição alimentar.
A longa espera provoca na gente
uma sensação de pertencimento lacunar:
tudo por aqui é passageiro
não há nada teu aqui
8
Dez e dois
Nada
Não foi teu dia de sorte
O dia do sorteio.
M4594
Do teu lado, outros lamentos
Outros tantos
M… sei lá o quê!
Semblantes duros
Ninguém nota a dureza de ninguém
Cada rocha focada em tua própria sensação
Cansaço…
Corpo dói…
O passo à frente, seguido de outro…
isso enche o saco!
Enche o saco ficar em pé
Enche o saco ouvir os outros
Enche o saco este lugar
Então, você reage ao som…
Todo mundo de pé! Todo mundo de pé!
(aquela voz)
Preparar para a contagem! Ninguém sentado! Todo mundo acordado!
Todo mundo de pé!
(um homem com casaca militar e chapéu ianque. no corredor do ônibus, há também um drone assistente. daqueles que você estava acostumado a programar na capital. um drone-faz-tudo. integrado com câmeras de reconhecimento.
ligado ao PÁTRIA AMADA. enquanto o milico-ianque berra, o drone agita os tentáculos-fotografia. cuida do registro de cada passageiro. o registro facial que endereça dados ao PÁTRIA AMADA.)
Todo mundo de pé! Eu não vou falar de novo!
a torrada e a geleia proteica pressionam tua barriga…
você vai vomitar…
você com certeza vai vomitar…
9
( o drone continua registrando os passageiros no PÁTRIA AMADA. é um grande ônibus. duas cabines. sanfonado. não se vê veículos como aquele circulando na capital. não todos os dias. pelo menos não onde você costumava morar. você está ali, em pé. obediente. respeitando o milico-ianque. do teu lado direito, um preguiçoso. um maldito preguiçoso. não escolhe hora do dia menos inapropriada para os minutinhos de resistência. não precisa ser poeta para perceber o desejo imediato do milico-ianque. aqui não é a capital. aqui não é lugar para resistência e teimosia.)
Todo mundo de pé! Filho da puta não entendeu ainda?! Não entendeu, não?!
TODO
MUNDO
DE
PÉ!
(a voz do milico-ianque)
A voz do milico-ianque…
filha da puta! Ela jurou!
No teu último encontro casual, ela disse que havia resolvido aquele problema
Resultado:
a única refeição do teu dia
está jogada na calçada da rua
em dejeto biliar
Você sente tudo novamente
como em rede de alta imersão
(olá. eu sou a dor. estou dentro de ti e acompanho, em tuas entranhas, as lembranças sinestésicas da corrente elétrica percorrendo teus órgãos via devices sintéticos. eu te fodo todas as manhãs. tenho impedido, nos últimos dois dias, que você absorva os nutrientes necessários de tua alimentação diária. a minha presença só é possível devido à resistência daquele filho da puta teimoso e preguiçoso que você nunca mais viu.)
10
no horizonte da apertada via pública você é o único M com aqueles sintomas
Ms passam por você
Sobre você
sem te pisotear
(protegido pelo acaso)
(não pela elegância)
(os tentáculos-fotografia tornam-se tentáculos-taser-de-choque-super-potente. cada um dispara uma onda de corrente elétrica em todos os devices internos e externos de cada passageiro. a corrente elétrica bagunça muitos chips integrados a órgãos vitais de muita gente por ali. parece estourar os tímpanos de um senhor na tua frente. pegou de jeito o organismo de uma jovem há dois assentos de distância.
tudo por conta de um filho da puta preguiçoso. um filho da puta que gosta de dormir mais do que pode. um filho da puta que não consegue entender enunciados simples do tipo: todo mundo de pé.)
Todo mundo de pé!
Já não era hora desta crise acabar?
Parece que não
Parece que você foi
feito de bobo.
Parece que você precisa visitar tua hacker novamente.
Parece que você está sob o efeito
de um pacote placebo
incapaz de agir contra
memórias traumáticas
de devices infectados
11
II
(10h37)
O Irmão das Almas
não é um bar
não é um hotel
não é uma clínica clandestina de biogenética
não é uma confraria de hackers
não é um ponto de drogas para anestesiar danos traumáticos permanentes.
Todos chegam no Irmão das Almas.
Todos precisam de registro de entrada
garante sigilo identitário
garante estadia
das dez e meia da manhã de hoje
às oito e meia da manhã do outro dia
não garante estadia dos clientes
no intervalo entre as oito e trinta e um
e as dez e vinte e nove
Acaso um cliente sofra danos permanentes
o Irmão das Almas
tem gente o suficiente para
recolher o que sobrou
não é uma casa de caridade
Quando você entra na recepção, M0327 sorri
(parte da configuração orgânica de M0327 é um conjunto de peles
e músculos mal cicatrizados)
Eu procuro M4433.
Não podemos identificar nossos clientes a outros clientes.
M0327 e você conhecem o protocolo. Você tenta. Faz parte. Vai que cola. Um dia. Talvez. Hoje não deu.
12
Você retira de uma bolsa a tiracolo um punhado de fontes proteicas de segunda.
(dedos. os carniceiros dão pouco valor aos dedos) Quarto 410. Quarto andar.
Obrigado.
Passa pelo balcão
amaldiçoa o elevador em manutenção
amaldiçoa a quantidade de pessoas nas escadas
(detesta multidões)
Dificilmente você não esbarra em alguém no trajeto até o quarto 410
Dificilmente esse alguém não te olha com vontade de te violentar pelo encontrão acidental.
Ms vêm e vão em todas as direções
Uma encruzilhada de Ms com rumos diversos
Ms ciscando no mesmo miolo
Ms em miolos distintos
No Irmão das Almas
você deve olhar um horizonte e seguir
Você sabe como é
Você não se acostumou muito bem com isso
Você escuta vozes
Você enxerga personas etéreas
Familiares
Amigos
Lembranças registradas em seus devices internos
Você ativa um antiviral
que não te deixa mais tão exposto assim
Sobe o terceiro lance de escadas
escuta um M gritar
as pessoas ignoram
você tenta ignorar
até o barulho se materializar
13
um M deitado sem um braço orgânico
muito sangue no carpete
sangue fresco no carpete
O que houve, Irmão?
Arrancaram um braço meu, Irmão!
Vingança, Irmão? Dívida do destino, Irmão?
Vingança, Irmão! Esses filhos da puta queriam minhas fontes proteicas, Irmão!
Você precisa que eu te leve para algum quarto, Irmão? Não quer um lugar para tratar disso aí, Irmão?
Eu quero… Irmão. Perdi muito sangue, Irmão! Eu quero tomar alguma coisa.
Eu preciso de alguém que cauterize essa porra, Irmão! Eu preciso de um braço novo! Eu preciso… senão eu…
Irmão… eu não quero ser rude, Irmão… só que esse braço que você perdeu… esse braço… vendo agora… é o braço de Natal… você perdeu teu braço de Natal…
Irmão! Não! Irmão! Não faz isso com teu Irmão! Levaram meu braço de Natal?
Levaram teu braço de Natal!
Coitado daquele M
Aquele M foi embora com o braço que lhe tiraram
Coitado daquele M
Arrancaram-lhe o braço inviolável
Desculpa, Irmão. Desculpa. Eu tenho que ir…
Você segue o destino. Você escuta
Filho da puta! Irmão é o caralho! Filho da puta!
Até a voz ser abafada
pelos barulhos secos
dos golpes repetidos
das machadinhas dos carniceiros
Carniceiros
demoram, mas chegam
O quarto andar. O quarto 410
Aquele Irmão
14
agora fonte proteica comercializada
clandestinamente nos andares do
Irmão das Almas
não te ocupa mais a cabeça.
Você fecha a mão
Bate três vezes na porta
Nada
Mais três vezes
Nada
Mais três
Nada
Desgraçada! Tem dívidas com todas as aberrações possíveis Nada
Aquela filha da puta te deu mais um nó?
O terceiro em menos de dois dias?
Quantas vezes você vai abaixar a cabeça e permitir que esses hackers de merda te passem a
perna desse jeito?
A cabeça, nessas horas, começa a ferver
Não é dor
É ódio
Você toma distância
Você emenda duas soladas certeiras
um pouco abaixo da frágil fechadura
que tranca a porta
Não há nenhuma política de segurança clara
no Irmão das Almas
Se o dano for permanente,
mas pouco significativo,
ninguém liga
A fechadura se desfaz
e a porta abre
Não pelo impacto da bicuda
(franzino. fraco. mal alimentado)
15
A porta revela a qualidade de uma madeira
constantemente violada
O quarto 410
Pequeno
Como todos os quartos do Irmão das Almas
Um corpo
Convulsionando
A desgraçada
ingeriu mais drogas do que deveria
você precisa salvá-la
III
Você nunca teve vocação para carniceiro
Você caminha pelo corredor do quarto andar
(corpo coberto de sangue não é agredido por ninguém) O braço decepado carregado pela tua mão orgânica chama a atenção das pessoas.
(o braço de Natal, que não é seu, pisca-pisca verde) Dois Irmãos te seguem
(você sabe disso)
ninguém naquele lugar esconde nada de ninguém
buscam presas
lutam por ela
talvez saiam vivos
talvez saiam mortos
Aê Irmão! Aê Irmão! Ô arrombado!
O desjejum que você vomitou faz falta.
está sem forças para uma luta
está em desvantagem
ninguém ali quer saber do problema de ninguém
você não optou em estabelecer laços
você é um M solitário
16
(quando a desgraçada convulsionou, o braço de Natal dela começou a piscar.
o paradoxo da liberdade: ela ganhou dois bilhetes premiados. a capacidade de selar destinos, em duas vias simultâneas.)
Segura esse filho da puta aê! Segura ele! A gente não pode perder ele!
(a língua engrossou ou enrolou dentro da boca. você tentou salvar a desgraçada.
ela te deu uma mordida. por reflexo, talvez. um corte fundo no dedo indicador fez a porra toda sangrar.)
Você precisa se livrar desses dois imbecis
Onde ele tá? Cadê aquele cuzão?
Na capital
você se acostumou correr doze quilômetros por dia em uma esteira na sala de estar
no apartamento da última empresa
que te contratou
uma exigência
política interna da empresa
acaso não cumprisse com as metas
e exercícios diários
estaria na rua
O cara sumiu! Maluco desapareceu! Puta que pariu!
Aquele antebraço
continua piscando
até o tecido esfriar
até o sangue coagular?
até os circuitos eletrônicos entenderem que aquele pedaço de corpo morreu?
A desgraçada não está